domingo, 26 de outubro de 2025

Questão do sentimento e o Respeito por si mesmo - XXXVI

 
Chegar perto do amor eterno e não conseguir manter é como tocar o fogo e depois caminhar na cinza. O que antes ardia em presença, agora queima por ausência. O amor, que parecia infinito, se recolheu para algum canto inalcançável, deixando atrás de si um rastro de lembranças que o tempo não dissolve. Fracasso, traição, vergonha, medo — os quatro cavaleiros do fim de qualquer promessa. “Eu sei que vou te amar, por toda minha vida...” — canta Vinicius, e a canção, antes doce, agora pesa como epitáfio. A saudade é uma casa onde todas as janelas estão abertas, mas o vento nunca entra. E há um silêncio que parece mais vivo do que qualquer palavra dita.

O amor que se perde não morre — apodrece devagar, como flor cortada. E nessa decomposição há beleza: uma beleza triste, imperfeita, que cheira à lembrança e à despedida. “For no one”, murmurava Paul McCartney, “your day breaks, your mind aches.” O amor não acabou; apenas deixou de caber no mesmo corpo, no mesmo tempo. E aquele que amou, agora sobrevive — entre a memória e o esquecimento, entre o que foi promessa e o que sobrou de humano.

Quando a fé desaparece, resta apenas o gesto de continuar. Crer sem acreditar é como acender uma vela num quarto sem ar: a chama vacila, mas ainda existe. “E não há nada que eu possa fazer pra esquecer você...” — repete Chris Isaak, e o eco se mistura ao próprio coração. O silêncio vira oração, o vazio vira altar. Deus parece distante, mas talvez a fé seja isso: seguir mesmo quando Ele se cala. “And I will always love you” — Whitney Houston — e cada nota parece dizer: o amor não volta, mas também não vai embora.

A derrota é inevitável, mas ainda assim é preciso enfrentar a batalha. Há guerras que não se lutam para vencer, mas para não morrer por dentro. “I can see clearly now, the rain is gone” — Johnny Nash canta, mas a chuva continua, fina, persistente, como lembrança do que não se cura. O corpo levanta, o rosto disfarça, mas a alma carrega os escombros. “Como nossos pais”, grita Elis, e a frase não é consolo, é diagnóstico. O tempo repete os mesmos gestos, as mesmas dores, os mesmos silêncios herdados.

Tudo está contra, mas ainda se permanece. Persistir é um ato quase absurdo — remar em direção ao nada. “Apesar de você, amanhã há de ser outro dia” — Chico Buarque sussurra, e amanhã chega, igual. A luz entra, mas não ilumina. É uma claridade triste, de quem já entendeu que o mundo não repara os que sofrem. “Gloomy Sunday”, canta Billie Holiday, e o domingo se arrasta como se o tempo também tivesse desistido. Persistir não é esperança, é instinto. É continuar mesmo quando nada dentro pede para continuar.

Quando já não vale a pena, e ainda assim você aposta, descobre-se que a vida é teimosia. “Nothing compares to you” — Sinéad O’Connor chora em cada sílaba, e o coração, mesmo sabendo do fim, insiste em lembrar. O amor perdido se transforma em vício: uma dor que não se quer curar, porque é tudo o que resta. “O mundo é um moinho” — Cartola — e a vida tritura o que antes era sonho. Ainda assim, há um gesto mínimo de ternura que resiste, um sopro de lembrança que recusa o esquecimento completo.

Entre tudo e nada, entre presença e ausência, entre fé e desespero, restamos nós — frágeis e contínuos. “A vida é mesmo coisa muito frágil, uma bobagem” — Toquinho dizia, e nunca soou tão verdadeiro. A existência é um fio esticado entre o ontem e o nunca mais. A fé vacila, o amor se vai, mas o coração continua batendo, cansado, como um relógio que esqueceu o porquê de marcar as horas.

O coração guarda feridas que ninguém vê. As pessoas passam, falam, sorriem, mas não percebem o deserto que habita atrás dos olhos. “Someone like you” — Adele — e o choro não alivia, apenas confirma. A dor, depois de certo ponto, não quer ser curada. Quer ser reconhecida. É a lembrança que ainda pulsa, a prova de que algo um dia valeu a pena. E talvez seja isso o que ainda nos salva: a lembrança do que doeu.

O tempo passa, mas não leva. A saudade se acumula como poeira. “Cais” — Milton Nascimento — e cada nota é um porto que já não existe. A alma procura abrigo, mas só encontra mar. “Mad world” — Tears for Fears — e a loucura parece o único modo possível de permanecer lúcido. A música é a única linguagem que ainda compreende a dor humana, porque ela não pede explicações, apenas escuta.

O mundo segue, e nós seguimos junto, meio vivos, meio ausentes. “Fix you” — Coldplay. A vida tenta consertar o que o tempo quebrou, mas o que se quebra dentro não se cola mais. Mesmo assim, há um resquício de humanidade que teima em respirar. “Meu amigo, volte logo, venha ensinar meu coração” — Gonzaguinha. O apelo não é a alguém, é à própria esperança: volte, ainda que cansada, ainda que muda.

Entre tudo e nada, aprendemos que a vida é feita de resistências sutis. “Hallelujah” — Leonard Cohen — uma palavra antiga, uma súplica cansada, dita mais por hábito do que por fé. E, no entanto, algo ecoa. O som se espalha no vazio, e, por um instante, o vazio parece respirar. “Ne me quitte pas” — Jacques Brel — e cada verso é um espelho: o amor, a dor, a perda, a súplica que nunca é atendida.

Belchior um dia cantou: “Eu quero é que esse canto torto, feito faca, corte a carne de vocês.” A canção atravessa o peito e revela: viver é sangrar em silêncio. Somos o que restou das promessas, os sobreviventes de nós mesmos. Há dias em que a vida parece um quarto escuro cheio de fotografias rasgadas; outros em que o sol entra pela fresta e revela que o pó ainda dança — silencioso, teimoso, vivo.

E então entendemos: talvez não seja sobre vencer, nem sobre esquecer, nem sobre ter fé. Talvez seja apenas sobre permanecer.

Porque a vida, apesar de tudo, ainda pulsa.E o amor, mesmo ferido, ainda canta — baixinho, trêmulo, mas real — nas vozes de Elis, Cohen, Brel, Adele, Milton, Vinicius, Cartola, Chico.

E esse canto, mesmo torto, ainda nos mantém

🖋️ DNonato –perto da eternidade...

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