quarta-feira, 13 de agosto de 2025

Entre o Egito e o Terreiro: A Voz da Identidade Negra

Identidade”, de Jorge Aragão, lançada em 1992, não é apenas um samba memorável; é uma crônica cantada sobre a dignidade, a afirmação e a luta contra o racismo estrutural. Seu surgimento se deu num Brasil em redemocratização, recém-saído de uma ditadura militar e imerso nas promessas e frustrações da transição política. Era o governo Collor, marcado por crises econômicas e pelo aprofundamento das desigualdades. Nesse cenário, a canção ecoava como manifesto, dialogando com a força do Movimento Negro Unificado, do movimento de valorização do samba e de outras articulações que denunciavam que a “abolição” não havia, de fato, libertado — apenas mudado as formas de opressão. A letra, que proclama com firmeza “meu cabelo é assim”, transforma características físicas em bandeiras de resistência, desmontando o imaginário racista que tentou por séculos reduzir corpos negros a padrões alheios à sua própria história.

A música carrega, em seu balanço, a consciência de que o racismo brasileiro é sutil, muitas vezes negado, mas presente em cada índice social. Estudos do IBGE e do IPEA mostram que, ainda hoje, a renda média de pessoas negras é cerca de 40% menor que a de pessoas brancas, que a taxa de homicídios contra jovens negros é quase três vezes maior e que a presença de negros em cargos de liderança permanece ínfima. Como observou o geógrafo Milton Santos, “o racismo no Brasil é uma perversidade sistêmica, pois se disfarça de cordialidade enquanto mantém intactas as estruturas de exclusão”. Esse é o pano de fundo contra o qual Identidade se ergue, convidando cada ouvinte a se reconhecer e se afirmar.

Do ponto de vista da ciência política, a canção é um lembrete de que cidadania plena não se conquista apenas com o direito ao voto, mas com a efetivação de direitos sociais, econômicos e culturais. A sociologia confirma: a construção de uma democracia real exige enfrentar o racismo não como um problema moral individual, mas como uma engrenagem que organiza o mercado de trabalho, a educação, a moradia e o acesso à justiça. Sueli Carneiro, pensadora e militante, lembra que “o mito da democracia racial é o maior obstáculo para que o Brasil enfrente de frente a desigualdade racial”. Nesse sentido, a canção é mais que arte — é pedagogia política.

Ainda no campo simbólico e espiritual, o versículo que ecoa em Identidade convoca uma reconexão com uma teologia que não seja cúmplice do racismo. A Teologia Negra propõe justamente isso: desfazer a teologia colonial que cantava a Deus numa missa e chicoteava corpos negros no mesmo instante. Essa teologia busca um Cristo que liberta, identifica-se com a luta e retorna ao negro sua divindade — tal como Steve Biko resumiu ao dizer que precisamos de um “Cristo lutador, e não um Deus passivo”. Essa é a obra também da Pastoral Afro-Brasileira, que busca na Igreja um compromisso real com a ancestralidade, a identidade e a reparação — ainda hoje a presença de padres negros é mínima, mesmo entre uma população majoritariamente negra. E há ainda o livro Deus Negro, de Neimar de Barros, que reconfigura espiritualmente essa indignação: “Deus não é branco, não é vermelho, não é amarelo, não é negro. Deus é Amor… Mas também podemos dizer, com a mesma verdade, que o Amor é branco, é vermelho, é amarelo, é negro. E Deus também”. Nesse verso, vemos ecoar a mesma inquietação de Identidade — reivindicar que o divino, assim como a dignidade, não pode ser aprisionado a um padrão eurocêntrico, mas deve ressoar em nossa ancestralidade, em nossa cor, como resistência radical.

Esse debate ganha nova dimensão com a fala do pastor Kleber Lucas, que criticou o hino “Alvo Mais Que a Neve” por conter ideias de embranquecimento. Segundo ele, a letra sugere que, ao aceitar Jesus, a pessoa se tornaria “branca como a neve”, o que ele interpreta como uma mensagem racista disfarçada de espiritualidade. Kleber Lucas defende uma “teologia preta”, que reconheça a negritude e a identidade do povo afro-brasileiro no âmbito religioso, desafiando visões coloniais de pureza e santidade. Essa reflexão ressoa diretamente com o embranquecimento que também atinge os terreiros e as religiões de matriz afro-brasileira, onde práticas ancestrais, cantos, orixás e líderes são muitas vezes invisibilizados ou reinterpretados segundo padrões eurocêntricos e midiáticos, enfraquecendo a ancestralidade e a memória cultural.

No horizonte ecumênico, o diálogo inter-religioso entre padres, pastores e líderes religiosos negros fortalece essa perspectiva de resistência e afirmação da identidade. Eles compartilham experiências, promovem debates sobre justiça social e racismo, e buscam reafirmar que a espiritualidade não pode ser dissociada da história, da cultura e da cor do povo que a vive. Ao mesmo tempo, essas lideranças apontam para a necessidade de combater o apagamento e a distorção das tradições afro-brasileiras, mantendo vivas suas práticas, ritos e saberes como forma de resistência e afirmação identitária.

A própria Bíblia nos conecta a esta narrativa de resistência e identidade. O povo de Israel viveu no Egito como escravizado, sustentando memória e fé mesmo sob opressão (Êxodo 1–14). E Jesus, ainda criança, foi levado por José e Maria para o Egito para escapar da perseguição de Herodes (Mateus 2,13-15). Esse episódio mostra que a história da salvação se cruza com a África — terra de refúgio, de sobrevivência e de vida preservada — e reforça a ideia de que Deus se manifesta na experiência dos oprimidos, nos lugares onde a vida é ameaçada, mas a dignidade insiste em florescer. Assim, a memória africana e afro-brasileira se conecta à própria narrativa bíblica de libertação e resistência. E não é só no Brasil que a música encontra ressonância. Tal como Fight the Power do Public Enemy nos Estados Unidos ou Redemption Song de Bob Marley na Jamaica, Identidade insere-se numa linhagem de hinos musicais que transformam ritmo em consciência, melodia em militância. Mas o seu diferencial é falar com a cadência do samba, gênero que nasceu da resistência cultural afro-brasileira e que carrega, no compasso, a história de um povo que fez do sofrimento poesia e da exclusão um ato de criação.

O Brasil contemporâneo, entretanto, ainda expõe as contradições que a letra denuncia. Se de um lado há avanços nas discussões sobre diversidade e inclusão, de outro, vemos o crescimento de discursos que relativizam ou negam o racismo, reforçando práticas discriminatórias e atacando políticas de ação afirmativa. A realidade das estatísticas mais recentes mostra que o país ainda está distante da igualdade substantiva. Como na metáfora do “elevador social” presente na canção, ainda há quem queira barrar o acesso, redefinindo as regras para manter privilégios intactos.

Por isso, a escuta de Identidade não deve ser passiva. É convite à ação concreta: apoiar e exigir políticas públicas antirracistas, fortalecer a educação crítica e plural, denunciar discriminações e ampliar espaços de poder para a população negra. Ao reafirma: "Quem cede a vez não quer vitória. Somos herança da memória. Temos a cor da noite Filhos de todo açoite. Fato real de nossa história."

Jorge Aragão não apenas canta, ele reivindica, inspira e incomoda. E, como toda boa arte engajada, nos lembra que mudar o mundo começa por reconhecer e amar a própria história, mas não termina aí: é preciso transformar estruturas. O samba, a teologia negra, a memória dos terreiros e a ancestralidade africana são vozes que se entrelaçam, exigindo atenção, cuidado e ação — uma convocação para que a identidade não apenas seja celebrada, mas vivida plenamente, com justiça e dignidade.



DNonato - Teólogo do Cotidiano 


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