Não será a primeira vez que nos debruçaremos sobre o encontro entre Maria e Isabel: já refletimos sobre ele em textos anteriores, como em Um olhar sobre Lucas 1,39-56 e em Outro olhar sobre Lucas 1,39-56
Podemos dizer que celebrar a Assunção de Maria, no coração do mês de agosto, mês das vocações, significa contemplar não apenas o destino glorioso de uma mulher que disse “sim”, mas também a vocação de todos os consagrados e consagradas que, como Maria, se colocam a serviço do Reino. É profundamente simbólico que a liturgia do terceiro domingo de agosto, dedicado à vida religiosa consagrada no Brasil, coincida com a festa da Mãe que, ao ser elevada à glória, torna-se sinal de esperança para todos os que caminham. Maria é paradigma de toda vocação: sua vida é um “sim” radical, não ao poder ou ao prestígio, mas ao serviço e ao amor gratuito.
As leituras desta solenidade se entrelaçam como mosaico de esperança. O Apocalipse (11,19a; 12,1-6a.10ab) nos apresenta a mulher vestida de sol, coroada de estrelas, imagem da Igreja perseguida, mas também de Maria, sinal de resistência e vitória contra o dragão da morte e dos impérios. A segunda leitura (1Cor 15,20-27) anuncia que Cristo é primícia dos que dormem, vencedor definitivo da morte, e em Maria, elevada em corpo e alma, essa promessa já se realiza como antecipação do destino de toda a Igreja. O Salmo 44 canta a beleza da rainha que entra na glória, imagem da Esposa amada, que é ao mesmo tempo Maria e a comunidade dos redimidos. E o evangelho de Lucas (1,39-56) nos conduz ao coração da cena da Visitação, onde a glória futura já se antecipa em forma de encontro, serviço e cântico.
Maria parte “apressadamente” para a região montanhosa. O termo grego meta spoudēs indica zelo, ardor, entusiasmo movido pelo Espírito (cf. Rm 12,11). Sua pressa contrasta com a lentidão de Zacarias, que duvidou (Lc 1,18-20) e foi silenciado. Enquanto o sacerdote fica mudo no Templo, a jovem leiga canta no espaço doméstico. A revelação se desloca do centro para as periferias, do culto oficial para as relações humanas, da boca dos sacerdotes para a voz das mulheres. A antropologia do texto mostra como Deus rompe com a lógica das estruturas religiosas de poder, elegendo a margem como lugar da salvação.
A simbologia da montanha ressoa em toda a Escritura: é lugar da Aliança (Ex 19,3), do refúgio do Altíssimo (Sl 121,1-2), do retiro de oração de Jesus (Lc 6,12). Mas, paradoxalmente, em Lucas não é o povo que sobe em busca de Deus: é Deus que desce, carregado no ventre de Maria, como outrora a Arca da Aliança subiu às colinas de Judá (2Sm 6,14-15). A patrística viu aqui uma chave preciosa: “Maria é a Arca verdadeira, em cujo seio habita o Santo dos Santos” (Santo Ambrósio, Expos. in Lucam II,19). Como Davi dançava diante da Arca, João salta de alegria no ventre de Isabel. O Espírito irrompe na casa, transformando a visita em liturgia doméstica: saudação, bênção, profecia e cântico.
O encontro entre Maria e Isabel é também símbolo da cultura do encontro, conforme o Papa Francisco afirma em Fratelli Tutti (n. 215): “O encontro, mesmo quando nos expõe a riscos, é caminho de transformação e construção do Reino”. Duas mulheres, carregadas de promessas e esperanças, acolhem-se mutuamente, e nisso já se antecipa a sinodalidade que hoje a Igreja busca viver: caminhar juntas, ouvir-se, reconhecer a presença de Deus no outro. Como Vinicius de Moraes escreveu em versos que celebram a amizade e a vida: “A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida”, este encontro bíblico nos lembra que cada visita, cada diálogo, cada gesto de proximidade é oportunidade de revelar Deus no cotidiano. Na Visitação, a sinodalidade se manifesta antes mesmo do termo existir: Maria não age isoladamente; ela parte para servir, ouvir e partilhar. Isabel, cheia do Espírito, recebe Maria com alegria e profecia, e o bebê João salta de vida, antecipando a ação de Deus no mundo. Aqui, no lar periférico, longe do Templo e das estruturas de poder, Deus se revela na escuta, na comunhão e na acolhida. Esse é o modelo que a vida consagrada e toda a comunidade são chamadas a viver: uma Igreja em saída, que caminha em rede, que reconhece o outro como sujeito de graça e missão, que vê no encontro a fonte da renovação do mundo.
O Magnificat é a culminância: hino de memória, louvor e denúncia. Maria canta em sintonia com Miriam (Ex 15,20-21), Débora (Jz 5) e Ana (1Sm 2,1-10), mostrando que sua espiritualidade é coletiva, histórica e libertadora. Seu cântico é teocêntrico, não narcisista: tudo nela se refere à ação de Deus. E seus versos são profundamente sociais e políticos: “Derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes” (Lc 1,52). Nessa denúncia, o Magnificat ecoa as bem-aventuranças (Mt 5,1-12) e o cântico de Simeão (Lc 2,29-32), que vê a salvação de Deus despontar em meio aos pequenos.
A hermenêutica sociológica evidencia a subversão: os pobres são exaltados, os famintos saciados, os ricos esvaziados. Por isso, o Magnificat foi temido em tempos de opressão e até censurado em ditaduras que não suportavam sua força profética. Ele desmascara falsas teologias que corrompem o Evangelho: a teologia da prosperidade, que transforma Deus em moeda de troca; a teologia do domínio, que instrumentaliza a fé para projetos de poder e nacionalismo religioso; o individualismo, que fecha o ser humano em experiências espirituais privadas; e a fé como mercadoria, que reduz o sagrado a produto de consumo. Maria anuncia um Deus que não cabe nos altares do mercado, mas se inclina aos pobres.
A filosofia lê no cântico de Maria a superação da alienação: a existência encontra sentido não na posse, mas no dom. A psicologia mostra que a verdadeira experiência espiritual gera alegria, confiança, vida que transborda – João salta, Isabel proclama, Maria canta. A antropologia evidencia que Deus escolhe o improvável: duas mulheres, uma estéril e uma virgem, em um lar periférico. A história testemunha que este hino atravessou séculos como bandeira dos pobres.
A patrística confirma: Santo Irineu afirma que “o nó da desobediência de Eva foi desatado pela obediência de Maria” (Adv. Haer. III,22,4). Eva fechou-se à Palavra, Maria abriu-se ao Verbo; pela primeira entrou a morte, pela segunda a vida. A Assunção é o coroamento desse caminho: aquela que gerou Cristo no tempo é acolhida na eternidade.
As Igrejas Ortodoxas honram Maria como Theotokos, Mãe de Deus, título definido no Concílio de Éfeso (431). Para a teologia oriental, ela é ícone da theosis, sinal de que a humanidade pode ser divinizada pela graça. O monaquismo ortodoxo a contempla como “Hodigítria”, a que aponta o caminho, inspirando monges e monjas a viverem a kenosis, o esvaziamento de si para deixar Cristo viver neles. A Comunhão Anglicana, por sua vez, reconhece em Maria o paradigma do discipulado. O Relatório de Seattle (1991) afirma que o seu “fiat” é modelo da resposta da Igreja inteira a Cristo. Muitos anglicanos a celebram não só como mãe, mas como primeira discípula, aquela que guarda e medita no coração (Lc 2,19). Até mesmo Lutero exaltava Maria, vendo no Magnificat uma das mais belas orações da fé cristã. Aqui Maria se torna ponte ecumênica, ponto de unidade e inspiração para todas as tradições.
A tradição católica retoma essa compreensão. O Concílio Vaticano II apresenta Maria como modelo da Igreja (LG 63-65) e associa a vida consagrada ao sinal escatológico do Reino (LG 44-47). João Paulo II, na Vita Consecrata (1996), chamou Maria de “mestra de consagração”. Francisco, na Evangelii Gaudium (n. 288), a proclama mãe missionária que inspira a Igreja em saída. A Gaudium et Spes (n. 63-66) denuncia estruturas injustas que desumanizam e dialoga diretamente com o Magnificat. A Fratelli Tutti (n. 215) nos lembra que o encontro transforma e edifica, e que a vida consagrada é chamada a criar relações que elevem e unam, como Maria e Isabel na Visitação.
Celebrar a Assunção no domingo dedicado às consagradas e consagrados é reconhecer que sua vocação é encarnar o Magnificat: louvar, recordar, denunciar, encontrar-se e caminhar em comunhão. É ser profecia contra as estruturas de poder e sinal da esperança que já começou. Assim como Maria não se isolou, mas visitou; não se calou, mas cantou; não se curvou ao poder, mas proclamou a justiça, também a vida consagrada é chamada a ser itinerante, alegre, servidora, profética e sinodal.
Se Maria canta, a Igreja não pode calar; se Maria visita, a Igreja não pode se isolar; se Maria denuncia, a Igreja não pode se acomodar; se Maria é elevada, a Igreja não pode viver rasteira aos tronos terrenos. Maria foi elevada à glória porque antes se inclinou aos pequenos. A Assunção é profecia de nosso destino: a vida não termina no túmulo, mas se abre para a comunhão eterna. E por isso, hoje, a Igreja inteira, junto a consagradas e consagrados, canta com Maria: Magnificat!
DNonato - Teólogo do Cotidiano
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