O sentimento, essa corrente sutil que nos eleva aos céus da euforia ou
nos arrasta aos abismos da melancolia, pulsa em nós como um eco do divino. Em
tempos onde a racionalidade busca aprisionar a alma, a verdade visceral do
sentir clama por reconhecimento. O amor, especialmente entre homem e mulher,
frequentemente reduzido a efêmeros prazeres ou conveniências passageiras,
carrega em si a centelha de um mistério ancestral. Ele é hieros gamos, encontro
sagrado, união de energias cósmicas refletindo o próprio Deus, agape, amor
incondicional que nos modela à Sua imagem e semelhança, não para a possessão do
outro, mas para a comunhão profunda das almas.
Como ensinou Agostinho, imerso na busca pela Verdade e pela
transcendência: "Ama e faze o que quiseres." Pois quando o amor
genuíno floresce, enraizado na caritas cristã, ele se manifesta como respeito à
alteridade, jamais infligindo dor, manipulação ou cativeiro. A liberdade se
torna o leito natural desse amor.
Não podemos fragmentar a tríade essencial do amor humano, separando o
eros da philia e do agape como se cada um habitasse um domínio isolado da
psique. Na dança intrínseca do amar:
·
sentimos o chamado da
carne, o fogo primordial do desejo, o prazer tátil que nos conecta ao outro em
nível físico — a manifestação terrena do eros
·
aspiramos ao bem-estar do amado, transcendendo o egoísmo, desejando sua
felicidade mesmo à revelia de nossos próprios anseios — a ressonância do agape
em nosso espírito;
·
estendemos a
mão protetora, oferecendo cuidado e nutrindo o florescimento do outro — a
expressão da philia, a amizade profunda que alicerça laços duradouros.
Essas dimensões não competem, mas se entrelaçam no coração que ama
verdadeiramente. O conflito surge na mente, essa teia de racionalizações que
tenta dissecar o que a alma anseia unir. Como Paulo, o apóstolo das gentes,
compreendeu em sua jornada espiritual: "O amor é paciente, é benigno, não
se ensoberbece, não busca o seu próprio interesse, tudo suporta" — uma
sabedoria que transcende a mera emoção, adentrando o domínio da virtude.
Para iluminar a complexidade labiríntica do amor e suas reverberações em
nossa jornada humana, um velho pajé da tribo nahua, guardião de saberes
ancestrais e intérprete dos sussurros da floresta, compartilhou uma narrativa
ao crepúsculo, quando o véu entre os mundos se torna mais tênue. Seus olhos,
mapas de incontáveis luas, cintilavam com a memória de tempos imemoriais. A
fábula que proferiu carregava a aura de um mito vivo, e em seu âmago, cada
ouvinte pressentia o eco de uma experiência pessoal profunda, um segredo
acalentado em silêncio.
Um jovem, inquieto diante das expectativas de seu povo, partiu floresta
adentro para caçar. Queria provar a si mesmo e aos anciãos que nascera para
guerreiro, e não para pajé, como muitos pressentiam. Carregava consigo a
bravura de sua linhagem, mas também o desejo de fugir do destino que o chamava
para o invisível.
Foi então que o fio do destino o conduziu à proximidade de um povoado,
onde uma jovem vivia sob a proteção patriarcal. Ela também se encontrava na
floresta, movida por pensamentos de fuga — uma tentativa de respirar fora dos
muros do destino que lhe fora imposto desde o nascimento.
Um nahual em forma de lobo — ou talvez a própria essência selvagem da
floresta em fúria — a atacou, rompendo a harmonia do lugar. O jovem investiu
contra a criatura, oferecendo seu corpo como escudo. A luta foi brutal, mas
algo dentro dele — uma força ancestral, talvez mística — emergiu. E foi esse
sopro invisível, essa centelha espiritual que dormia em seu íntimo, que
derrotou e expulsou a fera.
Ferido, foi acolhido por ela. Nos dias que se seguiram, cuidaram um do
outro. Entre gestos simples e silêncios cheios de sentido, um laço foi tecido.
Não havia cantos nem rituais, apenas o toque humano, a atenção, o abrigo. Como
um eco do axis mundi que conecta os céus e a terra, a reciprocidade do cuidado
floresceu.
Naquela noite, sob a abóbada celeste pontilhada de mistérios, o amor
floresceu com a pureza edênica dos primeiros seres. Seus corpos se tocaram em
um ritual de entrega mútua, despojados de culpa, movidos por uma fome ancestral
e uma reverência instintiva.
Mas, ao amanhecer, veio o peso da consciência. Ela recordou o pai, os
laços que a prendiam à sua comunidade, os códigos que sustentavam sua estrutura
social. O medo e o respeito a esse mundo a chamaram de volta. Ela partiu em
silêncio, levando no ventre o mistério daquela noite e no coração o conflito
entre liberdade e pertencimento.
Sete anos se esvaíram — um ciclo carregado de simbolismo místico e
espiritual em diversas culturas. O jovem ascendeu à posição de pajé,
tornando-se um elo entre o visível e o invisível, um intérprete dos sonhos e
dos sinais da natureza. Cresceu em sabedoria silenciosa, nutrindo sua alma com
a oração e a contemplação. E foi em um retiro solitário, buscando a água
primordial em um poço ancestral — um portal para as profundezas da terra e do
inconsciente —, que o destino, com sua ironia cósmica, os reuniu novamente.
Ela irradiava uma beleza serena, vestida com a simplicidade da terra.
Seus olhos, outrora hesitantes, agora portavam a profundidade de quem
atravessou as provações da vida. E ao seu lado, uma criança emanava uma aura
inexplicável.
A alma do pajé estremeceu, como uma folha ao vento de um presságio. O
menino fitou seus olhos com um brilho enigmático, uma faísca de reconhecimento
que transcendia a lógica. Uma força invisível pulsava naquele olhar cruzado,
uma ressonância de almas que desafiava o tempo e o espaço. Ou talvez algo mais
profundo, enraizado em um mistério que nem ele nem ela ousariam desvelar,
aprisionados pelas malhas de seus mundos e pelas promessas que sustentavam suas
existências.
Ela se aproximou, movida por uma força magnética. Seus lábios quase se
encontraram, suspensos na iminência de um beijo que romperia as barreiras do
destino. Mas o instante fugiu, como um sonho ao despertar. E então, como se uma
força superior, um deus ex machina cósmico, interviesse no tecido do destino,
ele apenas a contemplou.
Seus olhos carregavam a sabedoria silenciosa de quem compreendia que a
maior ferida não fora a infligida pela fera há sete anos, mas aquela que,
invisível e profunda, jamais cicatrizara. Como nos versos melancólicos que
ecoam em canções como "Monte Castelo", onde a fé, a lei e o amor se
entrelaçam em um nó complexo, a dor da ausência persistia, suave e lancinante.
E como sentenciou Agostinho em sua busca pela compreensão da alma humana:
"Havia em mim uma ferida secreta provocada pelo amor, e a dor era
suave."
Certos laços transcendem a efemeridade do tempo e do espaço. Alguns
amores não se extinguem; eles se metamorfoseiam, tornando-se parte indelével da
tapeçaria de quem somos.
Pois aquilo que vibra na frequência da verdade essencial, que emana sinceridade e autenticidade, não necessita de explicações. Sua existência basta, como um mistério que se revela na profundidade do sentir...
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigado pelo seu comentário.