terça-feira, 10 de janeiro de 2017

A Questão do sentimento e o Respeito por si mesmo - XX.

Foto do dia do evento  

Vivemos neste mundo como numa travessia: podemos seguir por caminhos de conforto ou enfrentar o percurso no sacrifício. O que narro abaixo aconteceu num primeiro sábado de janeiro de 2017. Não sou homem de indecisões ou hesitações, e talvez meu maior erro seja esperar dos outros aquilo que levo comigo. Sou um teórico da vida — mas, convenhamos, quem não é? Como não se revoltar?

Meu carro passou uma semana na oficina para consertar o ar-condicionado (confio nos profissionais que cuidaram dele). O problema foi resolvido, e não saiu barato. Contudo, o motor superaqueceu no Arco Metropolitano¹, e não havia sinal algum no painel que indicasse isso. Então você encosta, espera o motor esfriar, completa a água e a ventoinha volta a funcionar — como todo dono de carro velho um dia aprende a fazer. Segue viagem como se o mundo fosse cor-de-rosa. Chegando em casa, verifica tudo de novo… e a ventoinha silencia. A alternativa é chamar o reboque. E foi o que fiz.

A verdade é que cada decisão que tomei, mesmo aquelas que me feriram, foi uma tentativa de continuar. Mas prosseguir exige renúncia. Como dizia aquele verso que me atravessa em silêncio: cada escolha, uma renúncia². E nem todo mundo está disposto a abrir mão — nem do outro, nem de si. E o que isso tem a ver com as nossas escolhas? Às vezes, estamos com o motor interno fervendo, e quem está ao nosso lado não percebe — acha que está tudo bem. Então você para, tenta esfriar, segue viagem sem acionar o socorro… e quando enfim alcança o destino, o estrago já foi feito. Talvez sem conserto. (No meu caso, foi uma viagem curta — havia solução. Minha “Lindinha”, como chamo o carro, sobreviveu.)

As  vezes, os sinais estão todos acesos, mas a gente insiste em continuar. Recusamos parar, sufocamos o incômodo e fingimos normalidade. Fazemos uma jornada desconfortável e, no fim, perdemos tudo. Eu, hoje, escolho frear. Não deixarei meu motor ferver, nem abrirei mão da minha paz por situações que não têm volta. Com a convicção de que não há destino, sigo leve, sem as inseguranças alheias e a dor do que nunca se realizará.

Há dias em que o peito parece conversar com um velho samba triste. E eu escuto, mesmo sem querer, aquele conselho murmurado entre amargura e lucidez: ah, se soubessem o que eu sei... talvez não fossem ao inferno em busca de luz³. Porque há sofrimentos que não desejo a ninguém. E há amores que, se voltassem, eu deixaria passar. Somos teóricos, sim. Mas a teoria, quando se mistura ao barro da estrada, não é fuga — é bússola. Ela amplia o olhar, abre a mente às possibilidades. E, às vezes, a possibilidade é essa: ser ou não ser feliz?

E quando penso em tudo o que caminhei até aqui, nos silêncios que suportei, vem uma melodia antiga que me acompanha sem pedir licença: ninguém sabe o quanto eu caminhei pra chegar até aqui⁴. E não sabem mesmo. O mundo aplaude a chegada, mas ignora os tropeços, os atalhos, os dias escuros em que a gente só queria frear. Talvez este texto seja isso: um ponto de parada. Um respiro na beira da estrada. Um lembrete para quem insiste em acelerar com o coração sobreaquecido. Eu escolho não seguir por seguir. Escolho cuidar, frear, se for preciso, até recomeçar com leveza.

Leia tambèm:  A Questão do Sentimento e o Respeito a si mesmo XIX.

DNonato – Teólogo do cotidiano,Graduado em História


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¹ Arco Metropolitano – Estrada que liga municípios da Baixada Fluminense, como Duque de Caxias, Nova Iguaçu e Japeri, ao Porto de Itaguaí. Conecta-se à antiga Rio-Santos e à Rodovia Presidente Dutra. Inaugurada há menos de 15 anos, carrega hoje um histórico de abandono e insegurança.

² Trecho de "Só os Loucos Sabem", da banda Charlie Brown Jr. (2010), música que traduz os conflitos entre razão e emoção.

³ Verso de "Esses Moços (Pobres Moços)", samba de Lupicínio Rodrigues, composto como conselho amargo a um jovem apaixonado. Uma dor transformada em melodia.

⁴ Linha da canção "A Estrada", da banda Cidade Negra (1994), símbolo de resiliência e superação.

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