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sexta-feira, 8 de agosto de 2025

Um breve olhar sobre Mateus 17,14-20

“Do Monte à Luta: a fé que desce para libertar”

O relato de Mateus 17,14-20, proclamado no sábado da 18ª semana do Tempo Comum, e ecoado com variações em Marcos 9,14-29 e Lucas 9,37-43, nos coloca diante de um ponto decisivo da vida cristã: a fé que se prova no confronto com o sofrimento. Liturgicamente, ele surge no tempo comum, mas seu alcance ultrapassa esta moldura: encontra ressonância em ritos penitenciais, momentos de libertação e catequeses sobre oração perseverante. O texto se abre quando Jesus desce do monte da Transfiguração — cenário de luz e voz divina — e encontra no vale um pai aflito, um filho atormentado, discípulos impotentes e uma multidão confusa. É o choque entre o alto e o baixo, o êxtase e a dor, lembrando Moisés que, ao descer do Sinai, depara com o povo adorando o bezerro de ouro (Ex 32). Toda experiência autêntica de Deus é provada no chão da história. 

O pai se aproxima: “Senhor, tem piedade do meu filho” (Mt 17,15). No grego, selēniazetai, “sofrer influência da lua”, revela uma mentalidade antiga em que o mal físico, psíquico e espiritual eram entrelaçados. Mateus narra de modo sintético; Marcos amplia, mostrando que o mal o atormenta “desde a infância” (Mc 9,21), e registra o clamor paradoxal: “Eu creio! Ajuda a minha falta de fé!” (Mc 9,24). Aqui a psicologia se entrelaça à teologia: fé não é ausência de dúvida, mas entrega confiante mesmo no medo. É a coragem de se lançar na escuridão confiando que há mãos que sustentam.

Jesus responde com dureza: “Ó geração incrédula e perversa! Até quando estarei convosco?” (Mt 17,17), ecoando Deuteronômio 32,5. É denúncia contra a fé domesticada, que prefere fórmulas e aparências a um abandono real em Deus. Lucas acrescenta que, após a cura, “todos ficaram maravilhados com a grandeza de Deus” (Lc 9,43), lembrando que o milagre não é espetáculo, mas sinal do Reino. Os Padres da Igreja liam o “demônio” tanto como realidade espiritual quanto como símbolo das forças que desintegram a pessoa e a sociedade: paixões desordenadas, idolatria do poder, sistemas de opressão. No mundo de hoje, essas forças têm rostos concretos: redes que exploram vulneráveis, economias que descartam vidas, discursos que incendeiam ódios. São realidades que continuam a lançar muitos “no fogo e na água” (Mt 17,15).

Os discípulos, intrigados com seu fracasso, ouvem de Jesus: “Por causa da pequenez da vossa fé” (Mt 17,20). No original, oligopistía designa uma fé atrofiada, não a falta absoluta, mas a que não se desenvolve por falta de exercício. Jesus fala então do grão de mostarda, a menor das sementes cultivadas, mas que, plantada, torna-se abrigo para aves (Mt 13,31-32). Aqui o arco bíblico se expande: Ezequiel 17,22-24 anuncia um ramo que se torna árvore; Daniel 2,35 descreve a pedra que cresce e enche a terra. Sempre, o pequeno que, nas mãos de Deus, se torna grande. É também a fé de Davi diante de Golias (1Sm 17), que não confia em armaduras, mas no Senhor.

Marcos acrescenta que “esta espécie só pode ser expulsa por meio da oração” (Mc 9,29), e alguns manuscritos incluem “e jejum”. A tradição, desde a Didaché (cap. 8), une oração e penitência como prática de libertação. Orígenes via nisso o chamado a um vínculo profundo com Deus; São João Crisóstomo via a “montanha” como as provações que só cedem diante da perseverança; Santo Agostinho recordava que fé sem amor operante (Gl 5,6) é estéril. A Gaudium et Spes (n. 43) reforça: fé que não se traduz em compromisso com a vida social é incoerente com o Evangelho.

Essa passagem desmonta distorções modernas: a teologia da prosperidade que faz de Deus um fornecedor condicionado; a teologia do domínio que sacraliza autoritarismos; o individualismo espiritual que busca salvação privada sem tocar o sofrimento alheio; e o clericalismo que concentra carismas e apaga o protagonismo dos leigos. A Fratelli Tutti (n. 222) adverte contra ideologias que sequestram a fé para reforçar divisões. Tudo isso são formas de incredulidade prática: proclamam Cristo, mas não confiam no seu caminho.. 

O pai do Evangelho é hoje o rosto de pais e mães que lutam com filhos em depressão, dependência química, risco de violência, sem rede de apoio. O menino é imagem de quem carrega traumas, feridas sociais, dores herdadas. Psicologicamente, representa o aprisionamento interno; sociologicamente, o fruto de sistemas injustos; espiritualmente, a humanidade carente de libertação. A fé que Jesus exige não é fé de palco ou slogans religiosos, mas aquela que se ajoelha, chora, suplica, espera e age.

O Papa Francisco, na Evangelii Gaudium (n. 262), afirma que a fé verdadeira traz “um profundo desejo de mudar o mundo, de transmitir valores, de deixar algo melhor atrás de nossa passagem pela terra”. Se não enfrenta as montanhas do racismo, da corrupção, da desigualdade, do ódio ideológico, é apenas religião de superfície. E o Evangelho de hoje nos lembra: não se trata de medir a fé pela intensidade das palavras, mas pela coragem de plantar, no chão mais seco, a semente minúscula e acreditar que a raiz encontrará água.

Quando nossa fé for pequena, poderemos repetir com o pai do menino: “Eu creio, Senhor! Ajuda a minha falta de fé!” — oração que é confissão, súplica e decisão de não recuar. Porque a fé do tamanho de um grão não se mede na mão, mas na coragem de plantá-lo em meio ao deserto, crendo que Deus ainda faz brotar vida.



DNonato – Teólogo do Cotidiano


segunda-feira, 14 de julho de 2025

Quando amar se confunde com matar: escutas críticas de My Mistake

Por DNonato – Teólogo do Cotidiano


Há músicas que não apenas tocam: elas denunciam. My Mistake, lançada em 1972 pela banda brasileira Pholhas, é uma dessas canções que, por trás da suavidade melódica e da estética do rock romântico internacional, revela o abismo afetivo de uma masculinidade adoecida. Escrita em inglês, a música narra, em tom confessional, um crime passional — o assassinato da esposa — seguido por prisão e por um arrependimento tardio que ecoa como um lamento sem consolo.
Mas o verdadeiro horror não está apenas no ato cometido: está na lógica que o torna possível — uma lógica em que amar se confunde com possuir, em que a perda do outro é tratada como ofensa pessoal, e a dor é convertida em punição. My Mistake é, portanto, mais do que um relato de um erro: é o retrato de uma cultura que ensina o homem a dominar antes de sentir, a controlar antes de escutar, a punir antes de elaborar. Ao mergulhar nessa canção e colocá-la em diálogo com outras narrativas musicais, culturais e sociais, como Camila, Camila da banda Nenhum de Nós, buscamos escutar o que tantas vezes é silenciado: as estruturas que naturalizam a violência afetiva, os afetos que implodem sob a lógica do controle, e as vozes — femininas, ancestrais e insurgentes — que insistem em sobreviver.

O Brasil da década de 1970, embora já em transformação, ainda era profundamente marcado por um imaginário patriarcal, em que o homem era educado para dominar, e não para sentir. A masculinidade era medida por força e controle, e o amor confundido com posse. O “crime de honra” era tolerado, romantizado e, muitas vezes, legitimado. A Ditadura Militar (1964–1985), ao reforçar a lógica da obediência e do autoritarismo, encontrava eco dentro dos lares. O silêncio doméstico era parte da engrenagem repressiva. Narrativas como a de My Mistake emergem desse solo: o ciúmes e a dor da traição são tratados não como sentimentos a serem elaborados, mas como justificativas para a violência. A morte da esposa torna-se, assim, a consequência trágica de uma cultura que ainda confunde virilidade com brutalidade.

Sociologicamente, essa masculinidade hegemônica se alimenta da socialização patriarcal, que desde a infância ensina meninos a suprimir vulnerabilidades, a não chorar, a “ser forte” a qualquer custo. Esse modelo, sustentado por tradições familiares e por uma cultura que naturaliza o controle masculino, gera uma dicotomia fatal: a força se apresenta como poder sobre o outro e não como autocontrole ou empatia. Dados recentes confirmam a persistência dessa lógica: índices alarmantes de violência doméstica e feminicídio no Brasil revelam que esse padrão não foi superado; ao mesmo tempo, o elevado número de suicídios entre homens expõe o custo emocional dessa repressão.

Psicologicamente, a raiz do crime narrado em My Mistake está na incapacidade emocional de lidar com sentimentos intensos como ciúme, vergonha e rejeição. Quando o sujeito não encontra canais saudáveis para expressar sua dor, ela se converte em raiva e violência. A vergonha tóxica, que paralisa o sujeito na culpa e no isolamento, impede que haja reparação e crescimento. Sem ferramentas para elaborar o sofrimento, o homem é preso num ciclo que pode levar ao extremo da destruição — tanto do outro quanto de si mesmo.

Culturalmente, essa masculinidade violenta é muitas vezes reforçada por discursos religiosos e políticos conservadores que naturalizam a submissão feminina e romantizam o “controle” como expressão legítima de amor. O clericalismo e a fé vazia reproduzem, sem crítica, modelos autoritários e excludentes que aprisionam afetos e ampliam as violências simbólicas e reais. É urgente uma releitura ética das tradições espirituais que valorize a vulnerabilidade, a justiça e o amor libertador.

Essa lógica do “melhor matar que perder” não é exclusiva do Ocidente. Ela ressoa, por exemplo, na tradição japonesa do seppuku — o ritual samurai de suicídio como forma de preservar a honra após uma falha. Em diversos contextos culturais ao redor do mundo, a honra é colocada acima da vida, e a dor, em vez de ser elaborada, é encerrada num gesto final. O desafio está em promover culturas que valorizem a dignidade de permanecer inteiro diante da perda, capazes de viver a dor sem destruí-la.

Décadas depois, a música brasileira voltaria a ecoar os efeitos dessa masculinidade doente — mas, desta vez, pela voz feminina ferida, ainda que velada. Em 1986, a banda Nenhum de Nós lançava Camila, Camila, também baseada em fatos reais, que narra a história de uma jovem vítima de violência doméstica e psicológica. A letra é pungente: "E eu que tenho medo até de suas mãos / Mas o ódio cega e você não percebe... Da vergonha do espelho / Naquelas marcas... E eu que tinha apenas dezessete anos / Baixava a minha cabeça pra tudo..."

Se em My Mistake ouvimos a voz do homem que destrói e depois lamenta, em Camila escutamos, ainda que por entre silêncios, a voz da mulher que sobrevive à tentativa de apagamento. Ela não é assassinada fisicamente, mas é marcada em sua dignidade, no corpo e na alma. A juventude, a submissão, a vigilância constante: Camila é o retrato de tantas mulheres que não têm voz nem escolha, silenciadas por uma masculinidade que vigia, controla, machuca.

Na sabedoria popular feminina, ecoa um ditado provocador: “mulher não trai, se vinga.” Longe de incentivar a retaliação, essa frase escancara a desigualdade estrutural. Em muitos contextos, o gesto da mulher que “trai” é, na verdade, uma resposta tardia a anos de humilhação e apagamento. Não é desejo de vingança, mas um grito por dignidade, uma reação à asfixia emocional. Porém, mesmo essa reação, quando mal compreendida, pode ser usada como justificativa para novas violências. O ciclo se fecha — e, tragicamente, se repete.

A mulher que reage à opressão, como Camila, carrega em si a força de Iansã — orixá dos ventos, da rebeldia e da justiça, na cosmologia afro-brasileira. Ela não destrói por vingança, mas se levanta para não morrer em silêncio. Sua “traição”, muitas vezes, é apenas um gesto desesperado de sobrevivência. Porque viver inteira, para muitas, já é um ato de guerra.

A arte, especialmente a música popular, tem sido um espaço de denúncia, lamento e resistência frente a essas violências. A confissão e o lamento, como em My Mistake e Camila, funcionam como espelhos que revelam feridas sociais e pessoais, convidando à empatia e à reflexão crítica. A arte, assim, não apenas registra, mas pode ser agente de transformação social e cultural.

É nesse ponto que se impõe a necessidade de um deslocamento ético: a dor não justifica a violência. A frustração, por maior que seja, não dá licença para destruir o outro. A verdadeira coragem não está em reagir, mas em conter. Não em punir, mas em elaborar.A maior coragem talvez seja essa: suportar o peso dos sentimentos da derrota, da perda, do amor rejeitado — mas seguir livre.

Não matar por fora e, sobretudo, não matar por dentro. Porque essa é a pior morte: aquela que damos a nós mesmos quando deixamos que a dor nos endureça, nos feche, nos destrua em silêncio.

Como diz um provérbio iorubá: “aquele que segura sua raiva é mais forte que o guerreiro que vence cem batalhas.” A bravura verdadeira é interior. Ela não se revela pela força da resposta, mas pela grandeza de quem, mesmo dilacerado, escolhe não dilacerar o outro. A liberdade mais profunda não consiste em não sofrer, mas em não fazer do sofrimento um altar para justificar a violência. Ser livre é atravessar a dor com inteireza, sem transformá-la em culpa projetada. É recusar-se a repetir o ciclo de feridas mal curadas.

O mito grego de Orfeu e Eurídice narra a descida desesperada de um homem ao submundo para resgatar a amada morta. Mas, ao romper a única condição imposta — não olhar para trás — ele a perde para sempre. A tragédia não está no amor, mas na incapacidade de confiar, de esperar, de elaborar a perda. O amor que não aceita seus limites pode se tornar destrutivo — mesmo quando nasce de um desejo legítimo.

É necessário reconhecer que há sempre escolhas. Da mais fácil — que é explodir, culpar, destruir — à mais difícil, que é aceitar o fim, aceitar que o outro não nos pertence, aceitar até mesmo que talvez nunca nos tenha amado. Isso dói. Mas é nessa dor que mora a possibilidade de liberdade. A coragem maior não está em matar, mas em continuar humano — mesmo ferido.

Mesmo quando não há morte física, há formas de matar simbolicamente: quando se silencia, se humilha, se apaga o outro. A cultura da vingança e da possessividade ainda permeia muitas relações afetivas, e isso exige uma reconstrução coletiva: da afetividade, da escuta, da maturidade emocional.

O erro narrado em My Mistake não começa com o disparo de uma arma: começa muito antes, nas estruturas culturais que confundem amor com controle, nas tradições que ensinam que perder é inaceitável, e que o outro deve ser extensão da própria vontade. A masculinidade que mata não nasce do nada — ela é cultivada no silêncio, legitimada pela religião sem alma, normalizada por discursos que santificam a posse como amor.

O verdadeiro arrependimento, se quiser ser caminho de redenção, precisa romper com esse ciclo. Precisa transformar vergonha em escuta, dor em aprendizado, perda em liberdade. Porque é possível amar sem dominar, sofrer sem ferir, perder sem destruir. E é essa possibilidade — ainda rara, ainda revolucionária — que precisa ser aprendida, ensinada, cultivada.

Que My Mistake e Camila não sejam apenas memórias musicais — mas espelhos incômodos de uma cultura que precisa urgentemente escolher entre amar ou dominar, entre sentir ou endurecer, entre a coragem de perder e a covardia de matar.

Nota:  "Se você precisa gritar, controlar ou ferir, isso não é amor. É dor disfarçada. É hora de parar, olhar pra dentro e pedir ajuda — a psicólogos, a amigos de confiança. E, se for preciso, denuncie. Antes que  se machuque mais  e machuque quem você ama."

Amar não deve doer. E, quando dói, é hora de cuidar e se preciso pedir ajuda."