terça-feira, 4 de novembro de 2025

Olhando novamente para Lucas 14,25-33.

 
O texto do Evangelho segundo Lucas 14,25-33 é proclamado no 23º Domingo do Tempo Comum com reflexão  em noss blog em 2022 e 2025 também na 31ª quarta-feira do mesmo tempo litúrgico. Ele nos apresenta um Jesus radical, que exige de seus seguidores um compromisso total com o projeto do Reino de Deus. Trata-se de um dos textos mais duros e, ao mesmo tempo, mais libertadores da tradição lucana, pois nos obriga a perguntar: somos apenas frequentadores de igreja, participantes de grupos e pastorais, ou realmente discípulos que vivem o mistério de construir o Reino aqui e agora? O texto nos provoca a olhar para dentro e ao redor, e, à luz de João 15,4-6.14-15, compreender que o discipulado é permanência e fidelidade, não entusiasmo passageiro.

Lucas nos apresenta Jesus cercado por uma grande multidão. É significativo que, ao invés de aproveitar o momento de popularidade, Ele se volta para essas pessoas e lança um desafio quase desconcertante: “Se alguém vem a mim e não odeia seu pai, sua mãe, sua mulher, seus filhos, seus irmãos, suas irmãs, e até mesmo a sua própria vida, não pode ser meu discípulo.” A palavra “odiar”, na língua semítica, não expressa ódio afetivo, mas prioridade. Significa “colocar em segundo lugar”. Jesus está dizendo que, para segui-lo, é preciso inverter a lógica dos laços e dos valores. Nada pode estar acima do Reino.

A multidão, movida talvez pelo fascínio dos milagres e da novidade do pregador da Galileia, é confrontada com o real sentido do seguimento. Jesus desilude as ilusões. Ele não quer fãs, mas fiéis; não quer admiradores, mas discípulos. Por isso fala da cruz, da renúncia, do cálculo. “Quem não carrega sua cruz e não me segue, não pode ser meu discípulo.” É uma advertência à coerência. Jesus não quer seguidores movidos pela emoção, pela busca de recompensas, ou pelo conforto religioso. Ele quer gente consciente, capaz de planejar a construção e discernir o combate.

O Evangelho nos ensina, assim, que seguir Cristo é entrar em um processo de maturidade espiritual, que envolve planejamento, discernimento e coragem. Ser discípulo é estar mergulhado na realidade, com todas as suas dores, e nela testemunhar o amor de Deus. Esse Cristo que muitos usam para justificar discursos de poder, autoritarismo ou vaidades religiosas, nada tem a ver com o Jesus do Evangelho. Ele não está nos sapateados religiosos, nos templos lotados de emoção, nem nas mesas fartas onde a fé é negociada.

Ao ouvir esse texto, lembramos dos profetas e santos que escolheram a coerência com o Evangelho acima da aparência de santidade. Recordamos Dom Adriano Hipólito, que dizia que o céu começa aqui; lembramos de Irmã Dulce dos Pobres, Dom Pedro Casaldáliga, Dom Valdir Calheiros, Dom Helder Câmara, Desmond Tutu, Martin Luther King, Padre Júlio Lancellotti, Padre Renato Chiera, e tantos outros discípulos anônimos de nossas comunidades que, pela renúncia cotidiana, testemunham o Reino. Citamo-los sem títulos eclesiásticos porque muitos que ocupam cargos na Igreja têm muito de cargo e pouco de Cristo. Como dizia um velho padre, há religiosos tão presos ao próprio status que já não reconhecem o Cristo Servo, chagado, ferido, crucificado — e, pior ainda, acabam gritando com a multidão: “Crucifica-o!”.

O Reino inaugurado por Jesus exige coerência. O contexto histórico de Lucas mostra uma comunidade perseguida e pobre, marcada por tensões com o Império e com o judaísmo oficial. Dizer “sou discípulo” custava caro. Era pôr-se em rota de colisão com o poder. Por isso, o evangelista insiste na necessidade de calcular o custo da construção e da guerra. A torre é símbolo do projeto de fé: quem começa a construir deve terminar. A guerra é metáfora da luta interior, da batalha contra o ego e as estruturas de pecado que escravizam a alma e a sociedade.

Nesse sentido, a cruz é o preço da liberdade. A palavra “renunciar”, usada por Jesus, vem do grego apotássomai, que significa “romper alianças”. O discipulado, então, é rompimento com tudo que nos prende à lógica do mundo — o egoísmo, o poder, o lucro, a vaidade — e adesão a uma nova aliança de amor. Paulo expressará isso em Filipenses 3,8: “Tudo considero perda diante da sublimidade do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor.”

Do ponto de vista psicológico, o chamado de Jesus é uma travessia do “ter” para o “ser”. O discípulo amadurece quando deixa de medir a vida pelo acúmulo de bens ou pela aprovação social. A sociologia denuncia essa cultura de consumo e espetáculo, onde até a fé se torna produto. Lucas, o evangelista dos pobres, confronta a religião do prestígio com a espiritualidade da compaixão. A filosofia, por sua vez, recorda que a liberdade exige escolha, e toda escolha implica renúncia. O amor verdadeiro é sempre renúncia: não por dor, mas por coerência.

A teologia afirma que o seguimento de Cristo é ato de liberdade e amor. E o amor, como ensina Santo Agostinho, “não pesa o que dá, mas se alegra em dar”. Amar Cristo acima de tudo é viver em estado de dom. É negar-se a si mesmo para que o Reino floresça nos outros. É resistir ao clericalismo, às vaidades religiosas e ao carreirismo eclesiástico que transformam o altar em trono.

As teologias da prosperidade e do domínio distorcem o Evangelho porque vendem um Cristo sem cruz, sem periferia, sem compaixão. Prometem bênçãos como prêmio, transformam a fé em investimento e o altar em vitrine. Esquecem que Jesus disse: “Ai de vós, ricos, porque já recebestes a vossa consolação” (Lc 6,24). A fé-mercadoria é a negação do discipulado. A Igreja não é empresa; o Evangelho não é produto. Quando a espiritualidade se torna performance e o pastor se torna astro, o Cristo desaparece.

Jesus, ao pedir que calculemos o custo, não quer desanimar, mas purificar a motivação. O discípulo consciente sabe que a cruz não é adereço, mas caminho. Ele entende que o Reino é construído com suor, lágrimas e esperança. Na hermenêutica do texto, “carregar a cruz” não é buscar sofrimento, mas aceitar a solidariedade com os crucificados do mundo — os pobres, os injustiçados, os invisíveis.

O Magistério da Igreja ecoa essa verdade. O Concílio Vaticano II, em Gaudium et Spes 24, recorda: “O homem não se realiza plenamente senão pelo dom sincero de si mesmo.” E a Evangelii Gaudium insiste: “A missão é paixão por Jesus e paixão pelo seu povo.” Seguir Cristo é sair de si, é viver uma mística do encontro, como pede Fratelli Tutti: “O amor constrói pontes e nós somos feitos para o encontro” (n. 215).

Na patrística, São João Crisóstomo dizia: “Nada há mais frio do que um cristão que não se preocupa com a salvação dos outros.” E Santo Inácio de Antioquia lembrava: “O cristianismo não consiste em palavras persuasivas, mas em grandeza de alma quando somos odiados.” Eis o eco do radicalismo de Jesus: uma fé que não se acomoda, que prefere a coerência à conveniência.

No horizonte antropológico, essa renúncia é um chamado à plenitude humana. Renunciar a tudo é reencontrar-se. É libertar-se da posse para viver o dom. É tornar-se humano à imagem do Cristo Servo. É uma espiritualidade encarnada, ecológica, política, que cuida da vida e da criação. O Papa Francisco, em Laudato Si’, nos convida a essa conversão integral — espiritual e ecológica — que nasce da compaixão.

O clericalismo, ao contrário, é a antítese do Evangelho. É a idolatria do poder revestida de piedade. Jesus desmonta essa farsa ao lavar os pés dos discípulos. Quem quiser ser grande, que sirva. A autoridade no Reino é o serviço, não o prestígio. O padre, o bispo, o teólogo, o leigo — todos são chamados à mesma conversão: descer do pedestal e caminhar com o povo.

A cruz, neste contexto, é sinal de fecundidade. Ela é o ponto onde o amor toca a ferida do mundo e a transforma em esperança. O seguimento de Cristo é permanecer nesse ponto, entre a dor e a ressurreição. É ser fiel quando tudo parece ruir. É amar quando o amor parece inútil.

O radicalismo de Jesus é o caminho da liberdade. O cálculo do custo é discernimento da fé. A renúncia é o outro nome do amor maduro, aquele que sabe permanecer. O Reino não se constrói com discursos nem com marketing religioso, mas com gestos concretos de justiça e misericórdia. Jesus não busca multidões; busca fidelidade. Ele não quer templos cheios de ruído, mas corações inteiros.E quando a noite da fé chega, quando tudo parece se apagar, o discípulo se recorda: “Quem não carrega sua cruz e não me segue, não pode ser meu discípulo.” (Lc 14,27) É essa lembrança que o sustenta — não uma cruz de peso, mas de sentido; não uma fé de emoção, mas de permanência..

Assim, o convite de Jesus é radical porque é libertador. O discipulado é o caminho dos que amam até o fim, dos que constroem o Reino nas margens da história, dos que se levantam a cada queda e continuam acreditando que o amor é mais forte do que a morte.

DNonato – Teólogo do Cotidiano

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