O evangelho proclamado por Jesus frequentemente entra em choque com os modelos de poder de líderes religiosos que buscam manter estruturas hierárquicas e riqueza, distanciando-se do espírito do Evangelho, tal como Ele denunciou aos escribas e fariseus: “Ai de vocês, mestres da lei e fariseus, hipócritas! Pois dão o dízimo da hortelã, do endro e do cominho, mas negligenciam os preceitos mais importantes da Lei: a justiça, a misericórdia e a fidelidade” (Mateus 23,23). Tentam mascarar o sentido profundo do texto com interpretações superficiais. O termo “pobre em espírito” é muitas vezes reduzido a uma virtude abstrata, individual e desligada da realidade social. No Antigo Testamento, porém, o termo hebraico ‘ebyôn’ designa o necessitado, o indivíduo maltratado, aflito, marginalizado, como nos lembram os Salmos: “O Senhor protege o aflito, mas humilha os ímpios até o pó” (Salmo 34,7-10), e Isaías: “O Espírito do Senhor Deus está sobre mim, porque o Senhor me ungiu para anunciar boas novas aos pobres” (Isaías 61,1-3). Historicamente, a morte do chefe da família podia significar, aos olhos humanos, o abandono de Deus. Jesus subverte essa lógica: ao proclamar bem-aventurados os pobres em espírito, Ele anuncia alegria, felicidade e afortunamento – o makários grego –, reafirmando que a santidade tem dimensão social, política e ética, e não apenas interior É preciso também denunciar a santidade da alienação e da hipocrisia, aquela que se disfarça de piedade enquanto defende o extermínio, as chacinas e a opressão dos mais vulneráveis. São aqueles que se acham santos e justos porque repetem moralismos e preceitos formais, mas fecham os olhos ao sofrimento humano e à injustiça estrutural. Celebram a fé enquanto naturalizam a violência, a fome e a exclusão, e se vangloriam de cumprir rituais sem jamais tocar a realidade concreta do outro. Essa santidade é uma máscara de poder, clericalismo e dominação, oposta à misericórdia, à justiça e à verdadeira paz que Jesus proclama. Como disse Isaías, “ais dos que justificam o mal e chamam o que é ruim de bom” (Isaías 5,20), e como lembra Jesus: “Não todo aquele que me diz: Senhor, Senhor, entrará no Reino dos Céus, mas aquele que faz a vontade de meu Pai” (Mateus 7,21). A fé que mata, que julga e que oprime não é santidade, é perversão do espírito, deformação da imagem de Deus, e precisa ser confrontada com coragem e clareza ética..
Por isso qur o evangelho inicia-se com a palavra “bem-aventurados”, expressão que ultrapassa o simples conceito de felicidade. Ser bem-aventurado é viver em consonância com o projeto divino, caminhar com coragem mesmo quando o mundo desvaloriza a vida, a dignidade e a esperança, como reafirma Lucas: “Felizes vocês que agora têm fome, porque serão saciados. Felizes vocês que choram, porque serão consolados” (Lucas 6,21). A santidade proposta por Jesus não se reduz a isolamento espiritual; é engajamento ativo no mundo, resistência à opressão e solidariedade com os que sofrem. Cada bem-aventurança é um chamado ético e profético, convocando-nos a subverter as lógicas de dominação, rejeitar a fé como mercadoria e viver a santidade como compromisso social e político.
“Bem-aventurados os pobres em espírito, porque deles é o Reino dos céus” (Mateus 5,3). A pobreza aqui não é apenas ausência de bens, mas vulnerabilidade que revela dependência de Deus e abertura ao próximo. É reconhecimento das próprias limitações e solidariedade com os marginalizados, perseguidos e desprezados, como enfatiza Tiago: “Ouçam, meus amados irmãos: Deus escolheu os pobres deste mundo para serem ricos na fé e herdeiros do Reino” (Tiago 2,5). Psicologicamente, desenvolve humildade e empatia; sociologicamente, fortalece coesão comunitária; historicamente, remete aos primeiros cristãos perseguidos (Atos 4,32-35). Gregório de Nissa ensina que a pobreza voluntária liberta a alma e aproxima do divino. A santidade se manifesta nos que resistem ao clericalismo, ao poder econômico e à fé mercadológica.
“Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados” (Mateus 5,4). O choro é linguagem da empatia, reconhecimento do sofrimento alheio e denúncia silenciosa das injustiças. Chorar é enfrentar o mundo, testemunhar que a dor do outro nos toca e transforma. Santo João Crisóstomo lembra que o luto verdadeiro aproxima-nos da misericórdia divina. As lágrimas tornam-se sementes de consolo, esperança e transformação, como afirmam os Salmos: “Os que semeiam em lágrimas, colherão com alegria” (Salmo 126,5-6). A teologia da prosperidade ignora o choro; o Evangelho o celebra como força ética, resistência e cuidado.
“Bem-aventurados os mansos, porque herdarão a terra” (Mateus 5,5). Mansidão não é fraqueza, mas força contida, coragem modulada, poder submetido à justiça. Psicologicamente, exige autocontrole; sociologicamente, desafia sistemas autoritários; historicamente, recorda profetas e líderes sociais que mudaram o mundo sem dominar, como Moisés: “Moisés era muito humilde, mais do que qualquer homem sobre a face da terra” (Números 12,3). João Crisóstomo e Tertuliano nos ensinam que a mansidão ativa é virtude capaz de subverter o mal e construir o Reino. Ao contrário do clericalismo que impõe hierarquias, a mansidão de Jesus inaugura autoridade servidora.
“Bem-aventurados os que têm fome e sede de justiça, porque serão saciados” (Mateus 5,6). A justiça proclamada por Jesus é concreta, distributiva e restaurativa. É luta por equidade, direitos humanos e dignidade. Filosoficamente, representa ética e coerência; sociologicamente, engajamento comunitário; historicamente, ecoa a fidelidade de profetas e mártires, como Amós: “Quero ver justiça correndo como um rio e a retidão como um riacho perene” (Amós 5,24). O Papa Francisco, na Evangelii Gaudium, lembra que a fé verdadeira transforma a sociedade, denuncia exploração e resiste às estruturas injustas. O Reino sacia a sede, mas exige coragem para agir.
“Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia” (Mateus 5,7). Misericórdia é ação concreta, presença que toca feridas, solidariedade que não se limita a palavras (Lucas 10,30-37). Psicologicamente, desenvolve empatia; sociologicamente, fortalece a vida comunitária; historicamente, santos e santas cuidaram dos marginalizados. Santo Agostinho lembra que a misericórdia nos une a Deus e ao próximo. A fé mercadoria promete bênçãos fáceis; o Evangelho exige engajamento, entrega e transformação ética.
“Bem-aventurados os puros de coração, porque verão a Deus” (Mateus 5,8). Pureza de coração é coerência interior, integridade e transparência. Psicologicamente, revela autoconhecimento; sociologicamente, confronta hipocrisia; historicamente, santos e mártires demonstram que a pureza abre a visão do divino (Salmo 24,3-5). Santo Ambrósio ensina que a pureza permite que a alma reflita a luz de Deus sem distorção. O clericalismo, ao priorizar formalismos, mascara a pureza; Jesus propõe autenticidade ética.
“Bem-aventurados os pacificadores, porque serão chamados filhos de Deus” (Mateus 5,9). A paz aqui é dinâmica, construída e profética (Lucas 6,27-36; Romanos 12,18). Psicologicamente, desenvolve empatia e discernimento; sociologicamente, fortalece o tecido comunitário; historicamente, líderes e profetas desafiaram estruturas violentas. Fratelli Tutti nos lembra que a paz é projeto coletivo, que exige coragem, ética e amor.
“Bem-aventurados os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos céus” (Mateus 5,10-12). A perseguição é consequência da fidelidade à verdade e à justiça. Psicologicamente, molda coragem moral; sociologicamente, evidencia o conflito entre sistemas de opressão e resistência; historicamente, mártires e profetas são testemunhas vivas (Atos 5,41; 2Timóteo 3,12). Tertuliano afirmava que o sangue dos mártires é semente de cristãos. A teologia da prosperidade ignora esse risco; Jesus o valoriza e transforma em bem-aventurança.
O Apocalipse mostra a multidão fiel que lava suas vestes no sangue do Cordeiro, resistindo ao império e à injustiça (Apocalipse 7,9-17). É a santidade resistente, engajada e transformadora. Celebrar a Solenidade de Todos os Santos é reconhecer que somos sustentados por aqueles que vieram antes, testemunhando com suas vidas a fé viva, e somos chamados a continuar sua obra. A santidade é coletiva, social e política, manifesta na justiça, misericórdia, paz e coerência ética.
Entre esses santos, devemos lembrar também os santos anônimos, aqueles que não frequentam a igreja formalmente, que não aparecem nas listas oficiais ou nas festividades litúrgicas, mas vivem a santidade no cotidiano. São professores, enfermeiros, vizinhos solidários, trabalhadores e trabalhadoras que lutam por justiça, cuidam dos doentes, acolhem o marginalizado, praticam misericórdia e mantêm integridade ética mesmo quando ninguém os observa. Eles não buscam reconhecimento, mas são afortunados diante de Deus, como lembram as palavras de Jesus: “Quando fizerdes tudo isso a um destes meus irmãos menores, a mim o fizestes” (Mateus 25,40). A santidade deles é silenciosa, mas transformadora, e confirma que o Reino de Deus se manifesta também fora dos templos, nas ações concretas e silenciosas de amor e serviço.
Celebrar todos os santos é assumir que a santidade não é retiro espiritual, mas engajamento ético e profético, resistência à opressão, solidariedade com os marginalizados, defesa da vida e da justiça. Cada bem-aventurança é um chamado à ação: lutar contra injustiça, promover paz, exercer misericórdia, manter integridade, apoiar marginalizados e resistir à opressão. Celebrar a Solenidade de Todos os Santos é afirmar que o Reino é real, mesmo diante da perseguição e da dor, e que a graça de Deus nos fortalece para viver como bem-aventurados, gerando esperança, justiça e vida nova.
Como dizia Dom Helder Câmara, “somos minorias abrâmicas, chamadas a gerar um mundo novo.” A santidade é este compromisso, esta coragem, esta presença profética no mundo, testemunho vivo de que justiça, paz e misericórdia não são utopia, mas caminho concreto aqui e agora. As Igrejas históricas – Católica, Ortodoxa e algumas tradições evangélicas – celebram hoje a festa de todos os santos, agradecendo a Deus por pertencer a essa comunidade e escutando novamente o chamado divino para a santidade, que se manifesta de modo diferente em cada época. No Credo, a Igreja proclama: “Creio na comunhão dos santos e das santas”, compreendendo-os não apenas como pessoas santificadas pela graça do batismo, mas como detentores de bens espirituais que nos contagiam com fé, amor e esperança.
Nas celebrações, a primeira leitura, tirada do livro do Apocalipse, revela um mensageiro divino ordenando que as energias que fazem mal à terra sejam contidas. Sejamos alertas para que estas forças não apenas combatam pandemias, mas também os vírus do indiferentismo egoísta e da política de morte que nos cerca. O Apocalipse descreve uma multidão que atravessou a tribulação sem se vender, que não aceitou a marca do império, e lavou suas vestes no sangue do Cordeiro. Estes são os santos e santas vivos e resistentes, lutadores sociais que transformam o mundo. A festa de Todos os Santos é ação de graças pela Páscoa de Jesus, que manifesta a força da ressurreição nesta comunhão dos santos do céu com os da terra, de cuja energia todos recebemos graças e bênçãos.
O evangelho proclamado nesta festa é Mateus 5,1-12, o Discurso da Montanha, também proclamado nos domingos do Tempo Comum (anos A, B e C), especialmente em celebrações que recordam a santidade como testemunho de vida. As bem-aventuranças aparecem em ecos nos sinóticos e em outros livros bíblicos, como Salmos 34,15-18, Isaías 61,1-3, Lucas 6,20-23 e Tiago 2,5, celebrando misericórdia, consolo e justiça como expressão concreta da presença de Deus no mundo. Pedro Casaldáliga, em suas Bem-aventuranças contemporâneas, traduz esta visão para nossos dias: os pobres, aflitos, mansos, buscadores da justiça, misericordiosos, puros de coração, pacificadores e perseguidos são afortunados e portadores do Reino. Eles demonstram que a santidade é social e política, manifesta-se no cuidado pelos marginalizados, na luta por paz e justiça, na resistência ao poder corrupto e à fé mercadológica. São pessoas comuns, mas marcadas pelo selo divino, capazes de transformar a realidade em fidelidade ao projeto de Deus, tal como Abraão “esperando contra toda esperança” (Hebreus 11,17-19).
O evangelho de Mateus nos desafia a reconhecer a santidade em nossas práticas quotidianas, cultivar coragem ética, empatia, mansidão ativa, justiça restaurativa, misericórdia operativa, paz profética e resistência diante da perseguição. Celebrar a Solenidade de Todos os Santos é afirmar que, mesmo em meio a crises políticas, sociais e ecológicas, Deus nos fortalece para viver como bem-aventurados, testemunhando o Reino, gerando vida, esperança e transformação.
DNonato - Tentando ser santo


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