Não havia sofá, a sala era o quarto dos meninos. A cozinha, o quarto dos meus pais e das meninas. Vivíamos em dois cômodos. Tinha dia que não havia pão, e o café era puro. Mamãe fazia um angu, às vezes nem isso. Nescau era luxo, coisa de propaganda de televisão. Mas o milagre acontecia toda manhã, quando a tela acendia e se ouvia: “Bom dia, amiguinhos, eu estou aqui...” e depois “Café da manhã da Xuxa, quem quer pão?”. Era magia..
Eu estudava das 2h20 da tarde às 6h05. Então, pela manhã, podia ver os desenhos. Era quando o mundo podia ser diferente — e eu também. O Xou da Xuxa abria o portão de outros mundos: Superamigos, Homem-Aranha e seus Amigos, Os Smurfs, Os Ursinhos Gummy, Jajão e o Pequeno, Scooby-Doo, A Caverna do Dragão, Rambo e a Força da Liberdade, She-Ra e, claro, He-Man. Também Thundarr, o Bárbaro, Centurions, Galaxy Rangers, Capitão Planeta e tantos outros. Era nessa mistura de fantasia e vida dura que a gente crescia. Acreditava na justiça — mesmo quando ela parecia morar longe da gente, e não matar era chamado de ato heroico. Sonhava em ser forte — mesmo sem ter os dons dos heróis.
Quando começava Rambo e a Força da Liberdade, eu me transformava. Na escola, cada um da turma da terceira série era um personagem. Eu, claro, era o Dragão Branco, o ninja do grupo. Não sei o motivo — só sei que o apelido pegou. E com ele vinha a sensação de ser alguém. Depois virei o Professor Raimundo, mas isso é outra história. Não tínhamos brinquedos caros e nem existia a tal internet. A espada era um pedaço de madeira improvisado; o escudo, a tampa de uma panela velha; e a imaginação junto com o desejo de ser herói, ou melhor, super-herói — era o combustível.
Ser o sétimo de dez filhos foi uma escola de resistência. A roupa passava de um para o outro. Não existia espaço nem silêncio, mas existia amor escondido nos gestos: o pedaço de pão dividido, o cobertor que passava de um pro outro, o olhar do meu pai arrumando a velha televisão pra gente poder assistir — já que ele nos proibia de soltar pipa. Enquanto muitos tomavam Toddy e comiam bisnaguinha, eu tomava café puro e aprendia que o sabor da vida não vinha do que se tinha, mas do que se acreditava. E eu acreditava em heróis — e ainda acredito. Nos heróis da educação, da segurança, da saúde, da limpeza urbana, pais e mães que dão a vida por seus filhos. E sei que alguns vilões estão em Brasília e infelizmente no poder de alguma forma.
Os Ursinhos Gummy saltavam com sua fórmula mágica e ensinavam que coragem também se bebe, não em poção, mas em fé. Os Smurfs viviam juntos, brigavam, se perdoavam e mostravam que ninguém é feliz sozinho. E os jovens perdidos na Caverna do Dragão me ensinaram o que é desejar voltar pra casa — talvez porque, mesmo estando em casa, às vezes eu também queria encontrar um lugar onde coubesse inteiro.
Mas o que eu mais gostava eram os Superamigos. Batman e Robin, Mulher-Maravilha, Superman… e aquele narrador com voz de justiça: “Enquanto isso na Sala da Justiça...”. Aquilo me ajudou a moldar o desejo de ser melhor. O bem sempre vencia — e eu ainda creio nisso, de verdade. E não era só a vitória que importava, mas a maneira como ela vinha. Os vilões escapavam sempre — Lex Luthor, Gorila Grodd e outros, mas o esforço dos heróis mostrava que a justiça exige perseverança. Cada fuga era uma lição: o mundo real também tem obstáculos, mas a coragem de tentar novamente é o que nos define.
“Eu tenho a força!”, gritava He-Man, e . Aquilo não era só um bordão, era uma oração. Eu repetia, levantando minha espada improvisada: “Pelos poderes de Grayskull!” E acreditava que tinha a força mesmo. Hoje, depois de alguns anos, às vezes ainda repito.
E como esquecer do Esqueleto, o inimigo que parecia invencível e que desafiava He-Man a cada plano? Ele era a sombra que nos lembrava que nem todo mal se dissolve facilmente, que a vida nem sempre dá respostas rápidas e que a luta exige coragem, estratégia e perseverança. Mesmo quando Skeletor parecia dominar Etérnia, o esforço dos heróis nos ensinava que resistir e levantar a espada — mesmo que de madeira, mesmo que imaginária — era o que nos tornava fortes. Ele não era apenas um vilão de desenho; era a personificação dos obstáculos que todo ser humano enfrenta, e a certeza de que a justiça, a bondade e a coragem podem prevalecer mesmo quando o medo tenta se instalar.
E, de algum modo, ela vem.
E, de algum modo, ela vem. Galaxy Rangers me ensinou que, até nas galáxias mais distantes, a justiça é possível, mesmo em um mundo dominado pelo mal da Rainha e de seus lacaios. Eram quatro pessoas, cada uma com sua força e sua singularidade: havia o negro, gênio da computação, que fazia os sistemas funcionarem mesmo quando tudo parecia perdido; o loiro transmorfo, capaz de se transformar em qualquer forma para enfrentar o perigo; a mulher com poderes psíquicos, que via o invisível e guiava o grupo com sua mente; e o líder de meia-idade, com braço mecânico que se transformava em arma, experiência e coragem concentradas em uma pessoa só. Juntos, mostravam que diversidade, inteligência, força e união podiam enfrentar qualquer tirania, e que até nos lugares mais sombrios, a luz da coragem insiste em aparecer. Thunder, o Bárbaro, lembrava que o mal pode destruir, mas que a coragem persiste mesmo em terras devastadas. Cada dia trazia um inimigo diferente, e nunca se sabia para onde ele cavalgaria, acompanhado da princesa Ariel e de Ucla. Por onde passava, enfrentava o mal, misturando magia e tecnologia, como se cada batalha fosse também uma lição de resistência, de imaginação e de fé na força que nos faz seguir adiante.
Centurions, da Força Extrema, mostrava que a união é mais forte que qualquer máquina. Cada um tinha seu talento — na água, na terra, no ar — e dominava seu ambiente com veículos incríveis, mesmo quando Doc Terror e Hacker pareciam invencíveis. A lição era clara: juntos, somos mais fortes, mesmo diante dos desafios que parecem não ter solução. .Scooby-Doo e sua turma me ensinaram a rir do medo — e também a entender a engenhosidade da necessidade. Lembro como Salsicha e Scooby eram movidos por fome, e era essa mesma fome que os fazia tropeçar, fugir, mas também acabar pegando os bandidos. Cada sanduíche roubado, cada tropeço inesperado, cada corrida desesperada era uma lição: a vida nos obriga a improvisar, e até o mais atrapalhado pode se tornar herói quando age por sobrevivência e amizade. A coragem deles não vinha da força, mas do desejo de continuar, de rir no caminho e de transformar o medo em oportunidade — e, no fim, era essa mistura de riso, fome e lealdade que sempre os levava a vencer.
E cada desenho tinha uma moral: os Ursinhos Gummy mostravam que amizade é coragem. Os Smurfs, que a união vence o feitiço. O Homem-Aranha, que poder vem com responsabilidade. Thunder, o Bárbaro, ensinava que mesmo na escuridão, a luz da coragem guia o caminho. Galaxy Rangers mostrava que mesmo quando o mal parece invencível, a persistência é o que salva. Superamigos lembravam que juntos, podemos derrotar qualquer vilão, mesmo aqueles que sempre escapam. O Xou da Xuxa era o palco, mas o aprendizado estava nos bastidores: na criança que aprendia a sonhar em meio à falta e no menino que descobria que a imaginação era o primeiro passo da fé.
Quando o documentário pausou porque eu precisava trabalhar, saí em silêncio. Não por saudade da Xuxa, mas por gratidão ao menino que fui e ainda sou. Não tenho vergonha: voltei à infância e me permiti chorar. Não um choro de tristeza, mas de reencontro e alegria por ter vivido — e ainda estar vivendo.
Chorei por lembrar que, mesmo sem pão, sem brinquedo e sem luxo e sem existência da Internet, consegui ser feliz, de um jeito simples, genuíno, quase teimoso. E foi aí que a música voltou à mente, como quem abre uma janela: “Doce, doce, a vida é um doce, vida é mel...”. Cantei no coração e me emocionei de novo, agora rindo, completando, sem medo da diabetes (como costumo brincar), mas com a doçura real de quem olha pra trás e diz: valeu a pena. Depois veio a memória o Trem da Alegria: “Do mundo de Etérnia um guardião vai surgir...”. E agora eu entendo: eu preciso ser o guardião das pesssoas que eu amo, essa é a nossa força verdadeira. Não terminei de ver o documentário ainda, mas a memória da infância me fez celebrar algo bom que ainda carrego. Porque o maior espetáculo daquelas manhãs não estava na TV — mas dentro da gente.
Chegando novembro, mês do meu aniversário, percebo que continuo lutando. A espada agora é a palavra. O castelo é o coração. E os inimigos têm outros nomes: medo, injustiça, o ódio, o cansaço, o esquecimento. Mas o espírito é o mesmo. Aquele menino pobre, sétimo de dez filhos, ainda mora aqui. O menino ainda acredita. Ainda luta. Ainda canta: “Doce, doce, a vida é um doce...”. E ainda levanta sua espada de madeira imaginária quando o mundo tenta desabar..
Eu ainda não acredito que já fui da Força da Liberdade, dos Superamigos, e lutei ao lado do He-Man e da She-Ra, da princesa Ariel, de Ucla e Thunder. E, de alguma forma, ainda sou dessa equipe como uma criança. Porque quem aprendeu a sonhar sem ter nada, aprendeu também a agradecer por tudo. E se hoje a vida tem rugas, boletos e cansaços, ela também tem força, risos e fé.
Afinal, a vida continua doce — e eu continuo acreditando. Do meu jeito. Com gratidão. E com a força que, mesmo depois de tanto tempo, ainda não me deixou. Ariel, Ucla... em frente! Isso é um trabalho para o Super-Homem! São frases certas que vêm à mente e como não lembrar do Smurf Ranzinza: “Eu odeio isso, eu odeio aquilo!”, do smurf desastrado e da eterna tentativa de descobrir quem era o monstro do Scooby-Doo...
Em resumo, o documentário sobre a Xuxa abriu um portal: um reencontro do homem de hoje com o menino de ontem — que já está ficando idoso, mas ainda tem a força de sonhar.
✍️ DNonato – do Salão da Justiça ao altar do cotidiano


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