terça-feira, 28 de outubro de 2025

O Sinal de Caim e o Grito de justiça de Deus

Um cristão pode ser a favor da pena de morte? Essa é uma pergunta urgente e necessária, que exige reflexão profunda sobre fé, moral e justiça. Ao longo da história, o Evangelho, a tradição da Igreja e os exemplos da Bíblia nos desafiam a reconsiderar a lógica da violência e da vingança. Neste texto, convidamos o leitor a caminhar pelas páginas da Escritura, desde Caim e Abel até a condenação de Jesus Cristo, refletindo sobre a vida, a misericórdia e a dignidade humana, e a compreender por que a pena de morte — legal ou extrajudicial — jamais se alinha à verdadeira justiça cristã.

A história de Caim e Abel (Gn 4,1-16) é uma ferida aberta na consciência humana. Ela não fala apenas de um irmão que mata o outro — fala de todos os tempos em que a humanidade escolheu a violência como resposta à dor. O sangue de Abel clama da terra (Gn 4,10), mas o que mais escandaliza nesse relato é que Deus não mata Caim. O primeiro homicida da história é poupado. O Senhor o interpela, o responsabiliza, o expulsa, mas o protege: “Se alguém matar Caim, será vingado sete vezes” (Gn 4,15). E o Senhor pôs um sinal em Caim para que ninguém o ferisse.

Esse sinal é o selo da misericórdia divina, o primeiro grito contra a pena de morte. Deus afirma que a vida de Caim — mesmo a vida manchada pelo sangue — continua sagrada. O Criador não anula o assassino, não o devolve à terra como castigo. Caim deverá viver com o peso do próprio ato, mas também com a chance da conversão. O sinal não é prêmio, mas proteção: ele impede que a violência se torne lei. O Deus de Israel não permite que a justiça humana se confunda com vingança.

Em Caim, a Bíblia denuncia o ciclo de morte que atravessa toda história. Cada vez que um Estado ou uma sociedade decide que há pessoas “matáveis”, repete o gesto de quem ignora o sinal. Caim se torna espelho de todos os que são condenados ao esquecimento, à bala, à execução sumária. O bordão “bandido bom é bandido morto” é a reedição moderna da lógica de Lamec (Gn 4,23-24), que se orgulha da violência e multiplica a vingança. O discurso da eliminação legitima o ódio, transforma a punição em espetáculo e a morte em política pública.

Jesus rompe essa lógica quando diz: “Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem” (Mt 5,44). O mandamento do amor não é ingênuo; é revolucionário. Ele não absolve o crime, mas recusa a barbárie. A cruz, símbolo máximo da injustiça legalizada, torna-se o ponto de inversão da história. O justo condenado à morte — Jesus — é aquele que revela o rosto de um Deus que prefere morrer a matar. A pena de morte, seja praticada por tribunais, milícias, ou pela multidão em fúria, é sempre uma blasfêmia contra o Crucificado.

A tradição da Igreja, à luz do Evangelho, amadureceu até reconhecer que nenhuma forma de pena capital pode ser justificada. O Papa Francisco, na Fratelli Tutti (n. 263–270), afirma que “a pena de morte é inadmissível, e a Igreja se compromete com determinação a sua abolição em todo o mundo”. Essa não é apenas uma posição jurídica, mas teológica: o direito à vida é inviolável porque o homem é imagem e semelhança de Deus (Gn 1,27). Nenhum crime, por mais grave, apaga essa dignidade.

Santo Agostinho, ao comentar Caim e Abel, afirmava que “Deus não quis que Caim morresse, para que servisse de exemplo a quem quisesse viver matando” (De Civitate Dei, XV,7). A vida de Caim é, portanto, um lembrete de que a verdadeira justiça não é eliminar o culpado, mas impedir que a culpa se multiplique. Tomás de Aquino, na Suma Teológica (II-II, q.64, a.2), ressalta que a proteção da comunidade deve buscar os meios menos danosos possíveis. Hoje, com prisões seguras e políticas de reintegração, a pena de morte se torna moralmente injustificável.

O Catecismo da Igreja Católica reafirma: “A Igreja ensina, à luz do Evangelho, que a pena de morte é inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade e a dignidade da pessoa” (CIC, n. 2267). João Paulo II, em Evangelium Vitae (n. 56), reforça que as sociedades modernas dispõem de meios suficientes para proteger o bem comum sem recorrer à eliminação. O Papa Francisco, em Evangelii Gaudium (n. 53), denuncia a “economia da exclusão e da desigualdade que mata”, lembrando que a pena de morte frequentemente expressa seletividade social, racismo e opressão.

A história da pena de morte é marcada por erros judiciais que revelam sua extrema vulnerabilidade. No Brasil, embora a pena capital não seja prevista legalmente, diversos casos de execuções extrajudiciais e linchamentos mostram que vidas humanas foram ceifadas injustamente, baseadas em acusações precipitadas ou distorcidas. Fora do Brasil, exemplos históricos são abundantes: Estados Unidos, China, Irã e outros países registram inúmeras condenações à morte posteriormente reconhecidas como injustas, com provas manipuladas, testemunhos falsos ou falhas processuais graves. Em todos esses casos, a pena de morte revelou-se irreversível, incapaz de reparar o erro humano, e deixou marcas permanentes de injustiça, dor e impunidade. Esses fatos reforçam a urgência do Evangelho e do Magistério da Igreja: não há justiça que possa substituir a vida ceifada, e nenhum Estado pode reivindicar soberania absoluta sobre ela.

O episódio da condenação de Jesus Cristo é, por si só, a maior denúncia contra toda pena capital. Jesus foi injustamente julgado, sentenciado e executado sob a lógica do poder humano, da lei manipulada e da vingança coletiva (Mt 27,1-26; Jo 18-19). Ele, inocente e justo, foi condenado à morte por autoridades que buscavam manter ordem e controle, mas que ignoravam a misericórdia e a verdade. O Evangelho mostra que a pena capital falhou em corrigir o erro e apenas aprofundou a injustiça, transformando o crime da acusação em cruz e martírio. Essa condenação revela, de forma definitiva, que nenhum poder humano tem legitimidade para decidir sobre a vida de outro ser humano sem ferir gravemente a dignidade, a justiça e a lei divina.

No Brasil, onde o racismo estrutural e a violência policial moldam a aplicação da lei, o grito de Abel ressoa forte: cada bala disparada contra o jovem pobre é a recapitulação da história de Caim, e cada justificativa para matar é a repetição de Lamec. As operações policiais, as execuções extrajudiciais, o encarceramento em massa são formas modernas de rejeitar o sinal de Caim. O sangue de Abel ainda clama da terra — das vielas, das favelas, das periferias — e Deus continua perguntando: “Onde está teu irmão?” (Gn 4,9).

A Escritura inteira nos ensina que a vida deve ser preservada mesmo diante do mal. Quando Jesus encontra o ladrão arrependido, não o condena; oferece-lhe o paraíso (Lc 23,39-43). O exemplo da mulher adúltera (Jo 8,1-11) demonstra que a justiça não se confunde com a vingança. O Evangelho é sempre uma pedagogia da vida, da conversão e da restauração, e jamais da eliminação.

Isaías denunciava: “Ai dos que fazem leis iníquas e escrevem decretos de opressão, para negar justiça aos pobres e roubar o direito dos humildes do meu povo” (Is 10,1-2). A pena de morte, legal ou extrajudicial, é uma dessas leis iníquas. Ela nasce da covardia dos poderosos e da indiferença dos que perderam a capacidade de se compadecer. A Gaudium et Spes lembra que tudo o que é contrário à vida, inclusive a pena de morte, ofende gravemente a honra do Criador (GS, 27).

Rejeitar a pena de morte é, assim, um ato de fé e profecia. Fé, porque reconhece que a vida é dom de Deus; profecia, porque denuncia a lógica da vingança e do ódio que corrompem a sociedade. Recusar o bordão “bandido bom é bandido morto” é afirmar que a justiça não se realiza no fim de um revólver, mas na preservação da dignidade de todos.

Caim continua a vagar pelo mundo, mas seu sinal nos acompanha como alerta: a violência não se vence com a morte, o mal não se derrota matando, a justiça não se conquista exterminando. A misericórdia de Deus rompe o círculo da vingança e nos chama à coragem de afirmar a vida onde o mundo quer instaurar a morte.

Que a lembrança do sinal de Caim nos ensine a caminhar na contramão da cultura da morte. Que possamos defender a vida de todos, inclusive dos que caíram na violência ou no crime, sabendo que a misericórdia é o primeiro passo para a justiça verdadeira. Que a Igreja, profética e maternal, continue a anunciar que a vida, e não a morte, é o princípio de toda sociedade justa.

E que cada um de nós, discípulo de Cristo, recuse o espetáculo da execução e abrace a paciência da conversão, o rigor da justiça restaurativa e a esperança de um mundo onde o sinal de Caim seja respeitado, e o sangue de Abel seja ouvido.

DNonato – Teólogo do Cotidiano

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