quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Um breve olhar sobre Lucas 9,18-22

O evangelho  de Lucas 9, 18-22, proclamado na liturgia da Sexta-feira da 25ª Semana do Tempo Comum também   proclamado  no 12º Domingo do Tempo Comum do ciclo C até o versículo 24, toca o centro da fé cristã: a identidade de Jesus e a correção da falsa imagem que se pode ter do Messias. O contexto é marcante: Jesus está em oração, sozinho, e os discípulos estão com ele. Lucas sublinha constantemente a oração como lugar da revelação e do discernimento (cf. Lc 3,21; 6,12; 11,1). É nesse ambiente de recolhimento, onde a intimidade com o Pai se torna espaço de revelação, que Jesus interpela os discípulos: “Quem dizem as multidões que eu sou?”. A pergunta não é uma curiosidade, mas uma provocação pedagógica: confronta-os com o contraste entre a opinião popular e o chamado a reconhecer a verdade mais profunda.

As respostas soam variadas: João Batista, Elias, um dos antigos profetas que ressuscitou. Há ecos da expectativa judaica messiânica, enraizada em textos como Malaquias 3,23-24, que anuncia o retorno de Elias antes do dia do Senhor. Contudo, essas respostas revelam apenas fragmentos de verdade. Não tocam a essência. Por isso, Jesus vai além: “E vós, quem dizeis que eu sou?”. Aqui não basta repetir opiniões alheias, é preciso um posicionamento existencial. Pedro, porta-voz dos discípulos, confessa: “O Cristo de Deus”.

Mas Jesus imediatamente adverte com severidade: não anunciem isso publicamente. Por quê? Porque a noção de “Cristo” ou “Messias” estava impregnada de expectativas políticas, nacionalistas e triunfalistas. Era a esperança de um rei guerreiro que libertaria Israel do jugo romano, que restabeleceria a glória davídica e que implantaria o domínio do povo eleito sobre os demais. Essa mentalidade, que hoje poderíamos chamar de teologia da glória sem cruz, precisava ser desconstruída. Por isso, Jesus anuncia o caminho real do Messias: sofrer, ser rejeitado pelos anciãos, sumos sacerdotes e escribas, ser morto e, ao terceiro dia, ressuscitar.

O paradoxo da cruz atravessa toda a tradição sinótica. Marcos (8,27-33) apresenta a mesma cena em Cesareia de Filipe, onde Pedro confessa Jesus como Messias, mas logo em seguida é repreendido por pensar segundo a lógica humana, e não de Deus. Mateus (16,13-20)  proclamado  no 21º Domingo do Tempo Comum,  também proclamado  até o versículo  19 no  dia dos Santos  Pedro e Paulo  ao narrar a mesma confissão, acrescenta a bem-aventurança de Pedro e a promessa das chaves do Reino, mas também não omite a advertência de que o Messias deve sofrer. Em todos os sinóticos, a confissão messiânica está imediatamente vinculada ao anúncio da paixão: não há Cristo sem cruz, não há glória sem entrega, não há ressurreição sem morte.

No coração desse relato, vale recordar os aspectos comuns e as diferenças nos sinóticos. Marcos (8,27-33) apresenta a cena em Cesareia de Filipe, com a mesma confissão de Pedro, mas ressalta de modo mais abrupto a incompreensão do discípulo, a ponto de Jesus repreendê-lo como “satanás” por pensar segundo os homens. Mateus (16,13-20), além de narrar a confissão, introduz a promessa das chaves e o papel de Pedro como fundamento visível da comunidade, revelando uma dimensão eclesial mais explícita, mas igualmente sem omitir a necessidade do Messias sofrer. Lucas (9,18-22), diferentemente, insere o episódio em clima de oração, sublinhando a centralidade do discernimento diante de Deus. Em todos, o eixo é o mesmo: confissão de fé e anúncio da paixão estão inseparavelmente unidos. A diferença está no acento teológico de cada evangelista — Marcos destaca o confronto entre messianismo humano e divino, Mateus ressalta a dimensão eclesial e a autoridade confiada, e Lucas ilumina a relação íntima de Jesus com o Pai como fonte de sua identidade. Ao mesmo tempo, o Evangelho de João, embora não narre essa cena da mesma forma, oferece sua própria maneira de revelar a identidade de Jesus: os sete grandes “Eu sou” (Jo 6,35; 8,12; 10,7.11; 11,25; 14,6; 15,1), que evocam o nome divino revelado a Moisés (Ex 3,14), tornam explícito aquilo que nos sinóticos aparece em forma de confissão. Assim, João apresenta de forma mais direta e teológica o que os sinóticos revelam de modo narrativo e pedagógico: Jesus é o Messias, mas um Messias que carrega a cruz e que é, ao mesmo tempo, o próprio “Eu sou” de Deus no meio da história humana.

Esse é o ponto onde a hermenêutica lucana se torna essencial. Lucas, ao destacar o momento de oração, recorda que a identidade de Jesus não se compreende pela lógica das massas, nem pela manipulação religiosa, mas no silêncio diante de Deus. A oração abre ao discernimento. A confissão verdadeira não nasce da propaganda nem da emoção das multidões, mas da experiência profunda do encontro com o Cristo que se doa.

Hoje, em nosso tempo, a pergunta de Jesus ecoa com ainda mais força: “E vós, quem dizeis que eu sou?”. Vivemos em meio a imagens distorcidas de Cristo. Para alguns, Ele é um ídolo da prosperidade, que garante sucesso financeiro e saúde plena, como se fosse um amuleto mágico. Essa leitura, chamada de teologia da prosperidade, transforma a fé em mercadoria, o Evangelho em empresa, e a cruz em decoração sem escândalo. Para outros, Jesus é apresentado como líder de um projeto de domínio, quase um general que legitima guerras, exclusões e ódio, usado por grupos políticos que se apropriam do cristianismo para justificar a extrema-direita e seus projetos de poder. Há ainda os que reduzem a fé a uma experiência individualista, descomprometida com a realidade social, um “Cristo privado” que consola apenas o eu e fecha os olhos para a dor dos outros.

Essas visões são denunciadas pelo próprio Jesus quando Ele insiste que o Messias deve sofrer e ser rejeitado. O Reino não se implanta pelo poder da espada, mas pela força do amor que se entrega. É nesse sentido que São Paulo fala da loucura da cruz (1Cor 1,18-25): o que para o mundo é fraqueza, em Deus é força; o que parece derrota, em Cristo é vitória.

Hoje como ontem  temos as  falsas imagens de Jesus se enraízam em contextos de manipulação religiosa e política. A fé é transformada em capital simbólico, negociada em palcos que mais parecem shows do que espaços de encontro com o mistério. A religião, quando colonizada pelo mercado, perde sua alma profética e se torna mecanismo de controle. A antropologia, por sua vez, lembra que toda sociedade projeta suas expectativas no sagrado, criando ídolos que confortam seus desejos. Mas a revelação cristã desconstrói essas projeções: Deus não cabe em nossos esquemas. O Messias não é o que esperamos, mas o que precisamos.

Muitos buscam em Jesus apenas uma compensação para suas carências, uma figura que responda a desejos imediatos. No entanto, o encontro autêntico com Cristo passa pela aceitação da própria vulnerabilidade e pelo enfrentamento do sofrimento. A cruz não é um castigo, mas o lugar onde o amor assume até as últimas consequências a condição humana. Nesse sentido, a fé amadurece quando deixa de ser infantil, baseada em recompensas, e se torna adesão responsável ao caminho de Jesus.

Lembrando que o problema da verdade não pode ser reduzido à opinião. Como dizia Sócrates, é preciso sair da doxa (opinião) e buscar a alétheia (verdade). A pergunta de Jesus “E vós, quem dizeis que eu sou?” não busca repetir o senso comum, mas conduzir a uma decisão pessoal e comunitária que exige compromisso. Heidegger lembraria que a verdade é desvelamento, revelação. Aqui, a revelação é o próprio Cristo que se dá, não como mito triunfalista, mas como realidade encarnada, ferida e ressuscitada.

Sabemos que o título de Messias era perigoso na época de Jesus. As autoridades religiosas e políticas viam nele uma ameaça. Por isso, a advertência de Jesus de não divulgar ainda sua identidade messiânica é um recurso pedagógico e estratégico. Ele não quer ser confundido com os messias nacionalistas que se levantaram em Israel, nem com líderes revolucionários que buscavam derrubar Roma pela violência. Seu projeto era radicalmente diferente: instaurar o Reino de Deus pela via da compaixão, do perdão e da entrega.

A patrística nos ajuda a aprofundar ainda mais essa compreensão. Santo Agostinho dizia que “Pedro confessou uma vez por todos, mas cada dia a Igreja confessa Cristo” (Sermão 295). Para ele, a confissão de Pedro é fundamento e também missão permanente: reconhecer Cristo não apenas com palavras, mas com a vida. Orígenes, ao comentar este evangelho, afirma que “dizer que Jesus é o Cristo não é suficiente, é preciso compreender que Ele é o Cristo crucificado” (Comentário a Mateus, XII). Já Santo Irineu recordava que o Cristo verdadeiro não é o fruto da imaginação humana, mas a plena revelação do Pai no Filho encarnado (Adversus Haereses).

O Magistério da Igreja reforça essa visão. O Concílio Vaticano II, em Gaudium et Spes (n. 10), afirma que “o mistério do homem só se esclarece verdadeiramente no mistério do Verbo encarnado”. Em Evangelii Gaudium (n. 93), o Papa Francisco denuncia o mundanismo espiritual que busca a glória humana em vez da glória de Deus, advertindo contra a tentação de transformar a fé em espetáculo ou em poder. E em Fratelli Tutti (n. 272), recorda que a verdadeira grandeza do cristão está em fazer-se próximo, como o Bom Samaritano, não em se colocar acima dos outros.

O clericalismo,  que foi denunciado pelo Papa Francisco como “um dos males mais graves que ameaça a Igreja” (Carta ao Povo de Deus, 2018), também é uma distorção desse evangelho. Quando padres, bispos ou líderes eclesiásticos se colocam como donos da fé, como se fossem os mediadores absolutos, caem na tentação de se fazerem messias paralelos. Mas o verdadeiro Cristo não é posse de ninguém: Ele é dom para todos, especialmente para os pobres e marginalizados.

Assim, diante de Lucas 9,18-22, somos convidados a rever nossas concepções de Messias. Não basta declarar que Jesus é o Cristo; é preciso reconhecer que Ele é o Cristo crucificado e ressuscitado, aquele que caminha na contramão das expectativas triunfalistas. O discípulo, por sua vez, não pode seguir outro caminho senão o da entrega. A pergunta de Jesus continua viva: “E tu, quem dizes que eu sou?”. Nossa resposta não pode ser apenas verbal, mas existencial. É preciso confessá-lo no compromisso com a justiça, na solidariedade com os pequenos, na luta contra toda forma de opressão, na recusa de transformar a fé em mercado, poder ou privilégio.

O evangelho de hoje, ao ser proclamado na sexta-feira da 25ª semana do Tempo Comum, insere-se no ritmo do Tempo Comum, mas já aponta para a radicalidade do seguimento. A liturgia não nos deixa esquecer que cada Eucaristia é memória da cruz e da ressurreição, convite a participar da entrega de Cristo. Não é à toa que a confissão messiânica está vinculada à mesa do Senhor: confessar Cristo é também partilhar seu corpo entregue e seu sangue derramado.

Portanto, diante desse texto, nossa tarefa é dupla: desmontar as falsas imagens de Jesus e viver a verdadeira confissão de fé. Como Pedro, podemos dizer: “Tu és o Cristo de Deus”. Mas que nossas vidas digam também: “Tu és o Cristo que sofre, morre e ressuscita, e eu sigo teus passos, mesmo que isso me custe carregar minha própria cruz”. Esse é o único caminho que gera nova história, o único Messias que pode transformar a humanidade.



DNonato – Teólogo do Cotidiano


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