sexta-feira, 26 de setembro de 2025

Um breve olhar sobre Lucas 9,43b-45

Ontem  como hoje o  povo  fica  maravilhado os sinais de Jesus, nesse  25º sábado do Tempo Comum o texto  de Lucas 9, 43b-45 que mostra os discípulos se calavam diante da sua palavra. De um lado, entusiasmo ruidoso; de outro, silêncio carregado de medo. Eis o contraste que atravessa o Evangelho deste sábado: o milagre é celebrado, mas o mistério da cruz permanece incompreendido. Lucas nos mostra que aplaudir os prodígios é mais fácil que escutar a profecia; seguir o espetáculo é mais confortável que entrar no caminho de Jerusalém.

Enquanto todos se admiravam com o que fazia, Jesus se volta para os seus e lhes diz: “O Filho do Homem vai ser entregue às mãos dos homens”. Este não é um anúncio isolado. Lucas já havia registrado um primeiro anúncio em 9,22: “O Filho do Homem deve sofrer muito, ser rejeitado pelos anciãos, sumos sacerdotes e escribas, ser morto e ressuscitar ao terceiro dia”. Depois deste segundo, em 9,43b-45, ainda haverá um terceiro, em 18,31-34: “Tudo o que os profetas escreveram acerca do Filho do Homem se cumprirá. Será entregue, escarnecido, insultado, cuspido, açoitado e morto; mas ao terceiro dia ressuscitará”. O evangelista sublinha que “nada compreenderam dessas coisas; o sentido permanecia oculto para eles, e não entendiam o que dizia”.

Nos paralelos de Marcos e Mateus, essa progressão também aparece: primeiro em Marcos 8,31 e Mateus 16,21, logo após a confissão de Pedro em Cesareia; depois em Marcos 9,30-32 e Mateus 17,22-23; por fim, em Marcos 10,32-34 e Mateus 20,17-19. O quadro é nítido: Jesus repete, insiste, retoma, aprofunda. A pedagogia do Mestre não se reduz a um anúncio seco, mas a um caminho que acompanha a incompreensão dos discípulos. Em Marcos, eles “não entendiam e tinham medo de perguntar”. Em Mateus, “ficaram profundamente entristecidos”. Em Lucas, “não compreendiam porque o sentido lhes estava oculto”. Três nuances diferentes, mas uma mesma realidade: a cruz é sempre um escândalo difícil de assimilar.

Esses anúncios progressivos ecoam o Antigo Testamento. O primeiro, em Cesareia, lembra a rejeição dos profetas, sobretudo Jeremias, que experimenta a conspiração dos poderosos (Jr 18,18; 20,7-10). O segundo, no meio dos milagres, recorda o Servo Sofredor de Isaías (Is 50,4-7), que enfrenta a violência sem resistir. O terceiro, no caminho de Jerusalém, retoma o Salmo 22, em que o justo é escarnecido, cuspido, entregue às mãos de inimigos, mas confia que Deus não o abandonará. O conjunto mostra que a cruz não é acidente, mas cumprimento da Escritura: “Tudo o que os profetas escreveram se cumprirá” (Lc 18,31).

A dificuldade dos discípulos em compreender não é sinal apenas de fraqueza, mas expressão de um processo humano profundo. Do ponto de vista psicológico, o medo de perguntar pode ser entendido como mecanismo de defesa: não se formula em palavras aquilo que ameaça desestabilizar. Do ponto de vista antropológico, estamos diante do mistério da morte, experiência que as culturas elaboraram com mitos, ritos e símbolos, mas que sempre permanece como enigma último. Do ponto de vista espiritual, o não-entendimento faz parte da pedagogia divina: a fé não se impõe pela claridade imediata, mas amadurece na obscuridade. Dei Verbum recorda que a revelação é gradual, como luz que se acende aos poucos, até se plenificar em Cristo (DV 2).

Os Padres da Igreja nos ajudam a penetrar nesse mistério. Orígenes via no escândalo da cruz a chave para compreender toda a Escritura: sem o Cristo entregue, nada se explica. Gregório de Nissa reconhecia que o Filho, ao ser entregue, abraça plenamente a condição humana, inclusive a fragilidade de ser rejeitado. Tertuliano via no medo dos discípulos um espelho do cristão que hesita diante das exigências da fé, preferindo uma religião sem renúncia. Agostinho, por sua vez, recordava que a incompreensão dos apóstolos não era obstáculo para a graça, mas caminho: “crer é já começar a compreender”.

Essa leitura encontra eco imediato em Paulo. Aos coríntios ele escreve: “A palavra da cruz é loucura para os que se perdem, mas para nós que somos salvos é poder de Deus” (1Cor 1,18). Os gregos buscavam sabedoria, os judeus sinais, mas a Igreja nascente proclamava um Messias crucificado: escândalo para uns, insensatez para outros, mas para os que creem, força e sabedoria divinas (1Cor 1,22-25). Na carta aos Filipenses, esse mistério se torna hino: “Cristo Jesus, sendo de condição divina, não considerou ser igual a Deus, mas esvaziou-se, tomando a forma de servo, tornando-se obediente até a morte, e morte de cruz” (Fl 2,6-11). O anúncio da paixão, que os discípulos não compreendiam, é aqui interpretado como kenosis: o esvaziamento radical que se torna exaltação.

Se olharmos a realidade de hoje, percebemos que continuamos a preferir o aplauso dos sinais ao silêncio da cruz. Multiplicam-se pregadores que prometem prosperidade, poder, domínio, uma vida sem dor — teologias que transformam a fé em mercadoria e a esperança em contrato. Mas o Evangelho insiste em outro caminho: não o triunfo imediato, mas a entrega generosa. Evangelii Gaudium denuncia esse reducionismo, lembrando que a fé não é ideologia nem mercado, mas experiência de encontro com um Deus que se fez pobre (EG 93-97). Gaudium et Spes nos adverte que a grandeza humana se mede na capacidade de doar-se, não de dominar (GS 24). E Fratelli Tutti insiste: só há futuro quando reconhecemos o outro como irmão, não como inimigo a subjugar (FT 215).

A crítica se estende também ao clericalismo, essa tentação que transforma o ministério em privilégio, como se o discípulo estivesse acima da comunidade. Mas o Evangelho de hoje desmonta essa lógica: nem os mais próximos de Jesus compreendem de imediato; todos precisam aprender, inclusive os apóstolos. A Igreja não é dos que sabem, mas dos que escutam; não dos que possuem, mas dos que se deixam conduzir.

Podemos dizer  que  a fé como salto no absurdo, ato que atravessa o escândalo. Nietzsche denunciava a busca do poder travestido de religião, alerta que ainda ecoa diante das teologias do domínio. Hannah Arendt lembrava que a banalidade do mal se revela quando aceitamos passivamente a lógica da violência, como se a entrega de um inocente fosse natural. O Evangelho nos coloca diante desse dilema: aplaudir o espetáculo ou acompanhar o condenado?

A cena de Lucas termina sem resposta dos discípulos. Eles permanecem calados, entre a admiração do povo e o anúncio da entrega. Esse silêncio nos inquieta. Também nós muitas vezes preferimos não perguntar, não aprofundar, não nos comprometer. Preferimos aplaudir de longe a ação de Deus, sem nos deixar interpelar pela exigência da cruz.

Mas Jesus não se cala. Ele insiste: “O Filho do Homem vai ser entregue”. É o verbo da doação, do amor levado até o fim. E aqui a liturgia nos ajuda a compreender: este evangelho é proclamado no sábado da 25ª semana do Tempo Comum, quando a Igreja nos convida a entrar no mistério da cruz não como espectadores, mas como discípulos em formação. É também um anúncio que se repete em domingos e sextas-feiras da Quaresma, sempre como preparação para a Páscoa.

O povo aplaude, os discípulos se calam, Jesus caminha. A cena permanece aberta. E nós, onde estamos? Entre os que buscam sinais, entre os que têm medo de perguntar, ou entre os que ousam seguir com Ele até Jerusalém? A fé verdadeira não nasce no aplauso, mas na escuta; não se alimenta de promessas fáceis, mas do amor que se entrega; não floresce no medo, mas na coragem de perguntar e caminhar.

E assim, contemplamos o Cristo como semente que cai na terra, invisível, silenciosa, mas destinada a frutificar; como o cordeiro que caminha ao matadouro, sem protestar, sem artifício; como o servo sofredor que, em cada golpe, revela a fidelidade de Deus. Seguir Jesus não é buscar aplausos ou certezas imediatas, mas permitir que a Palavra transforme o coração, que o escândalo da cruz nos desperte, e que a esperança da ressurreição nos conduza. Eis o convite: caminhar, calados mas atentos, amando até o fim, até que a loucura da cruz se revele sabedoria e força para a vida.



DNonato - Teólogo do Cotidiano 


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