Neste 26º Domingo do Tempo Comum do ano C também proclamado na 5ª-feira da 2ª da Quaresma anualmente, nos apresenta a parábola do rico e Lázaro (Lc 16,19-31) permanece como um dos relatos mais incisivos de Jesus sobre a necessidade de olhar o outro com compaixão e justiça. Não é apenas uma história moral; é uma denúncia profética contra a indiferença, o egoísmo e a ilusão de segurança que a riqueza proporciona quando não é compartilhada. Proclamada na liturgia do 26º Domingo do Tempo Comum do Ano C, ela ressoa como um chamado à conversão, lembrando-nos de que o Reino de Deus está construído na fidelidade aos pobres, no cuidado pelos excluídos e na partilha generosa do que recebemos.
O detalhe do versículo 22 revela uma subversão radical das expectativas humanas: Lázaro, o invisível em vida, é levado pelos anjos para junto de Abraão, enquanto o rico é enterrado sem consolo. Esse contraste não apenas denuncia a injustiça social, mas reflete a teologia da reversão, presente em toda a Bíblia. O cântico de Maria ecoa nesse sentido: “Derrubou do trono os poderosos e exaltou os humildes” (Lc 1,52), e o Eclesiástico reforça: “A memória dos justos permanece para sempre, o nome dos ímpios apodrece” (Eclo 44,13). A morte de Lázaro é, portanto, pascal; a do rico, apenas a continuidade do vazio de sua existência egoísta.
Ao analisar o comportamento do rico após a morte, percebemos que ele permanece cego à dignidade de Lázaro. O pedido para que se molhe sua língua com água revela não apenas uma súplica de conforto, mas a persistência de uma visão utilitarista do outro: o próximo visto apenas como meio. Isaías nos lembra que “as vossas iniquidades erguem uma barreira entre vós e o vosso Deus” (Is 59,2), e aqui esse abismo se manifesta em toda sua força. A parábola mostra que o verdadeiro tormento do rico é a ausência de amor, a incapacidade de enxergar o sofrimento alheio como próprio.
No versículo 31, quando Abraão explica que mesmo alguém ressuscitado não convencerá os incrédulos, conecta-se diretamente à ressurreição de Cristo e à rejeição que muitos ainda demonstram. Essa incredulidade persistente evidencia não apenas uma resistência espiritual, mas uma cegueira histórica que mantém estruturas sociais e religiosas focadas na manutenção de privilégios. Assim, a parábola ecoa em nosso tempo: muitos ainda fecham os olhos diante dos pobres, dos marginalizados, dos famintos, ignorando o Cristo ressuscitado presente em cada um deles.
O desafio que nos é lançado é existencial e social. A psicologia mostra como o egoísmo é uma fuga do próprio vazio; a sociologia denuncia sistemas que perpetuam a desigualdade; a filosofia lembra que a vida encontra sentido no encontro com o outro; e a antropologia confirma que a dignidade dos pobres é uma constante revelação espiritual, mesmo quando os sistemas de poder tentam escondê-la. Na prática, a parábola nos obriga a reavaliar nossas escolhas diárias: como usamos nossos recursos, tempo e talento? A quem ignoramos ou marginalizamos? Em que medida nossas estruturas sociais favorecem o abismo entre ricos e pobres?
A parábola revela que a riqueza em si não é mal, mas a falta de partilha e a indiferença transformam-na em pecado. A teologia da prosperidade distorce a fé, reduzindo-a a meio de enriquecimento; a teologia do domínio busca submeter o outro; o individualismo espiritual isola a fé do compromisso social. O clericalismo, que impede que líderes religiosos vivam a compaixão concreta e o cuidado pelos marginalizados, também é denunciado. É uma advertência: quando a fé é mercadoria ou poder, a alma se distancia do Reino. São João Crisóstomo ensinava que não compartilhar a riqueza com os pobres é roubo; Santo Ambrósio lembrava que não dar aos pobres é privá-los do que lhes pertence por direito; Santo Agostinho reflete sobre a incredulidade diante da ressurreição como sinal da cegueira espiritual; Santo Irineu afirma que a vitória de Cristo sobre a morte é a esperança dos pobres e o juízo dos poderosos; Santo Gregório de Nissa acrescenta que a misericórdia para com os pobres é caminho seguro para a salvação. Essa linha é confirmada nos documentos do Concílio Vaticano II, em Gaudium et Spes, e nas encíclicas do Papa Francisco, Evangelii Gaudium e Fratelli Tutti, que denunciando exclusão, individualismo e estruturas de poder injustas, afirmam a urgência de reconhecer a dignidade do outro e a centralidade do cuidado pelos pobres.
Para atualizar a parábola em nosso tempo, observemos os migrantes que morrem em travessias, os moradores de rua das grandes cidades, os trabalhadores informais explorados e os marginalizados por sistemas econômicos excludentes. Eles são os Lázaros de hoje, e a nossa resposta define nossa fé. Ignorar esses sinais é permanecer na incredulidade que a parábola denuncia: “Mesmo que alguém ressuscite dos mortos, não acreditarão”. Mas acolher esses sinais é permitir que a ressurreição de Cristo transforme nossa história, cure nossas cegueiras e nos faça testemunhas vivas da esperança que não decepciona (Rm 5,5).
A parábola nos convoca a atravessar o abismo enquanto ainda há tempo. Olhar, escutar e agir diante do sofrimento do outro é reconhecer Cristo ressuscitado nos pobres à nossa porta. É viver a fé de forma concreta, radical e transformadora, rompendo com estruturas de injustiça e indiferença. Cada gesto de solidariedade, cada palavra de compaixão, cada decisão de partilha é uma resposta à Boa Nova, uma travessia do abismo e um passo firme na construção do Reino. Que nossas vidas sejam, como a de Lázaro, sinais vivos de confiança, esperança e amor, e que a incredulidade do rico nos sirva de alerta permanente, lembrando-nos de que a verdadeira riqueza é a vida compartilhada, e a verdadeira salvação se manifesta no cuidado pelos irmãos mais necessitados.
DNonato - Teólogo Cotidiano
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