Em 8 de agosto de 2025, numa sexta-feira, Arlindo partiu no dia dedicado a São Domingos de Gusmão, santo da pregação e da perseverança fundador da ordem dominicana no catolicismo. No Candomblé, essa data é ligada a Ogum, o guerreiro protetor que abre caminhos e traz força para enfrentar as batalhas da vida. Assim, a trajetória de Arlindo Cruz é marcada por sinais profundos de fé e proteção, entrelaçando a espiritualidade católica e a riqueza das tradições afro-brasileiras. Que sua memória siga sendo luz, cruz e força para todos que o amaram.
Ousamos dizer que não foi apenas um sambista, foi um mensageiro da alma brasileira, que em cada verso cantado deixava um legado de fé, cultura e esperança. Com sucessos marcantes como “O Show Tem que Continuar”, “Tá Faltando Eu”, “Meu Lugar” e, claro, “O Bem”, Arlindo construiu uma trajetória que dialoga profundamente com a alma do povo brasileiro. Sua música reflete sua fé de matriz afro-brasileira, sua luta pela preservação da cultura popular e seu compromisso com mensagens de amor, esperança e resistência. Este texto é um tributo a Arlindo Cruz, inspirado especialmente na canção “O Bem”, que nos convida a refletir sobre a força transformadora da bondade — um “bem” que pode ser compreendido como o amor descrito por São Paulo em 1 Coríntios 13, aquele amor paciente, bondoso e que tudo suporta.
A canção “O Bem” é uma dessas obras raras que unem simplicidade popular e profundidade espiritual. Mais do que versos e acordes, é um manifesto de vida: um chamado para que a bondade não seja apenas ideia, mas prática diária, renovada no olhar, na mão estendida, no cuidado que sustenta. O bem não é luxo de gente perfeita. É direito e dever de todos — algo que atravessa culturas, credos e tempos.
Desde o início, a música ressalta o papel do “bem” como força iluminadora e protetora, que “ilumina o sorriso” e “dá abrigo”, funcionando como um verdadeiro amigo que estende a mão. O “bem” não aparece como uma entidade específica, mas é tratado com força e presença quase humanas, como se tivesse corpo e alma. Essa personificação poética, tão comum no samba e na tradição oral, dialoga com a forma como nas religiões afro-brasileiras se fala das forças de axé: energias de luz e equilíbrio que orientam e protegem, mesmo sem rosto próprio. No candomblé e na umbanda, a “corrente do bem” é como um sopro vital que conecta a pessoa aos orixás, aos guias e aos ancestrais — é força viva, não um ser isolado. Arlindo, que viveu sua fé de matriz africana, transforma essa experiência em arte, sem fronteiras. Essa personificação encontra paralelo também na Bíblia, onde a Sabedoria é apresentada como companheira que guia (Provérbios 8).
Essa descrição remete ao princípio universal da solidariedade, presente em quase todas as tradições religiosas, que enfatizam o amor ao próximo e o cuidado mútuo como base para a convivência harmoniosa. O cristianismo fala do mandamento do amor; o judaísmo, da tzedaká (justiça solidária); o islamismo, da zakat (caridade); o budismo, da compaixão (karuna); o hinduísmo, do dever (dharma) de servir e proteger a vida; o candomblé e a umbanda, do respeito aos mais velhos e da partilha como caminho de equilíbrio.
Neste ponto, é impossível não lembrar o Sermão da Montanha, onde Jesus apresenta uma ética revolucionária de amor e luz para o mundo. Ele afirma: “Vós sois a luz do mundo” (Mt 5,14), chamando seus seguidores a serem faróis que iluminam mesmo em meio às trevas. Jesus nos convida a sermos sal da terra, preservando o sabor e evitando a corrupção (Mt 5,13). Além disso, lembra que Deus “faz nascer o sol sobre maus e bons e faz chover sobre justos e injustos” (Mt 5,45), simbolizando a graça divina que não distingue e que sustenta toda a criação. A mansidão, a paciência e a busca pela justiça, tão presentes na canção de Arlindo, ressoam com as bem-aventuranças que prometem a herança da terra aos mansos, a consolação aos aflitos e a justiça aos perseguidos (Mt 5,3-12).
No Sermão da Planície, que apresenta ensinamentos semelhantes, Jesus reforça o chamado ao amor incondicional: “Amai os vossos inimigos e orai pelos que vos perseguem” (Lc 6,27-28). Essa visão transcende o senso comum e encontra eco na crítica feita por Arlindo à valorização do traidor, denunciando a inversão de valores que impera na sociedade.
O refrão da canção reforça que, apesar das armadilhas do mundo, o bem não pode ser suplantado. A fé aparece como fonte que sustenta essa esperança, um tema comum a diversas religiões que valorizam a transformação interior e comunitária.
Versos como “muitas vezes é bem mais valorizado e amado quem é traidor” denunciam a cultura do oportunismo e da injustiça, lembrando os profetas bíblicos, como Isaías: “Ai dos que chamam o mal de bem e o bem de mal” (Is 5,20). Essa denúncia atravessa tradições e tempos, apontando para a urgência de reconhecer e praticar o bem concreto.
Quando olhamos para diferentes religiões, percebemos que o “bem” de Arlindo é ponto de encontro. No cristianismo, viver o bem é preparar-se para a comunhão eterna com Deus; no judaísmo, cumprir a Torá e encontrar descanso na paz do Eterno; no islamismo, trilhar a retidão que leva ao paraíso; no espiritismo, semear luz para colher aprendizado no plano espiritual; nas tradições afro-brasileiras, construir axé e dignidade, preparando-se para o reencontro com os ancestrais no Orum. As imagens de luz, abrigo e proteção que Arlindo usa são pontes que ligam todas essas visões.
“O Bem” também aponta para a universalidade da esperança, usando símbolos naturais como o sol, a noite e o luar para representar a luz que nunca se apaga. O sol e a lua, no universo da canção, são sinais do cuidado divino gratuito e abrangente.
A canção sugere que o bem é eterno, que não se apaga com a morte. Seja como memória viva nos corações, seja como energia que retorna ao Todo, o bem vivido aqui segue atuando depois que o corpo parte. É o que as tradições afirmam de formas diferentes, mas com um núcleo comum: a vida continua, e o amor é o que realmente permanece.
Arlindo Cruz faleceu na sexta-feira 8 de agosto de 2025, mas “O Bem” o mantém presente. Sua voz, seu violão e sua poesia são parte dessa corrente que não se quebra, desse sol que continua a nascer sobre todos. Ele soube transformar sua fé e sua cultura em música que abraça, sem exigir passaporte religioso.
Cantar “O Bem” hoje é ato de resistência contra a indiferença e a violência. É afirmar que a verdadeira religião — seja na Bíblia, no Alcorão, no Torá, nos pontos de umbanda ou nos cânticos de terreiro — se mede pelo cuidado com o próximo, pelo compromisso com a justiça e pela generosidade sem fronteiras. Arlindo fez disso o seu legado, e por isso seu samba não morre: ele caminha com quem ama a vida e acredita que o bem, mesmo quando silencioso, sempre vence.
Que, inspirados pelo legado de Arlindo, possamos ser luz na vida uns dos outros, e fazer do bem a nossa maior herança. Como ele mesmo cantava em “O Show Tem Que Continuar”, a vida é resistência, é insistência, é seguir cantando mesmo diante das dificuldades. Que o samba de Arlindo nos lembre que, apesar dos desafios, o bem sempre encontra caminho — e o show, o bem maior, realmente tem que continuar.
DNonato - Teólogo do Cotidiano
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