Já compartilhamos areflexão de Lucas 11, 1-13 em 2022 no nosso blog em e canal no YouTube em 2022 em , mas, como a Palavra é viva e sempre nova, retomamos aqui esse evangelho à luz da realidade de nosso tempo, da escuta dos clamores do povo, da crítica às distorções da fé e do compromisso com uma espiritualidade encarnada, profética e libertadora.
Com a presente reflexão somos convidados a contemplar uma rica tapeçaria e a nossa liturgia deste domingo nos apresenta um dom precioso da espiritualidade bíblica: a ousada intercessão de Abraão por Sodoma (Gênesis 18,20-32), a confiança do salmista num Deus que escuta os humildes (Salmo 137/138), e a carta aos Colossenses que nos recorda nossa ressurreição com Cristo (Colossenses 2,12-14). Todos esses caminhos convergem para o cerne da fé cristã: a oração – ensinada por Jesus em Lucas 11,1-13, o 'Pai-Nosso'.
No texto de Lucas, tudo começa com um pedido simples, mas radical: “Senhor, ensina-nos a orar” (Lc 11,1). Os discípulos, que já viram Jesus curar, perdoar, libertar e escandalizar os religiosos, agora pedem que Ele os introduza na fonte de sua vida: a oração. Pedem não um ritual, mas uma intimidade. Isso mostra que a oração não é um acessório da fé cristã, mas sua própria respiração. E, se não sabemos orar, como poderemos de fato viver como discípulos?
Do ponto de vista bíblico e hermenêutico, as palavras “orar”, “rezar”, “prece” e “súplica” possuem nuances que enriquecem a compreensão da espiritualidade cristã. No hebraico bíblico, o verbo palal significa “interceder” ou “implorar”, remetendo à oração como diálogo e intercessão (1Rs 8,28-30). Já o termo latino orare, de onde vem “orar”, indica um falar solene, uma invocação dirigida a uma autoridade, enquanto “rezar” (de recitare) possui a ideia de repetir uma fórmula, de meditar textos sagrados – como o Rosário ou os Salmos. A “prece” é uma oração mais pessoal, frequentemente ligada à súplica, àquilo que se pede com o coração contrito, como em Filipenses 4,6: “Em tudo, pela oração e pela súplica com ações de graças, sejam apresentadas a Deus as vossas petições”. Já a “súplica”, em grego deēsis, é a forma mais intensa de oração, marcada pela urgência, própria de quem se encontra em dor ou aflição, como Jesus no Getsêmani (Lc 22,44). Ao longo da história da Igreja, esses termos foram ganhando contornos diversos nas tradições espirituais: os místicos carmelitas cultivaram a oração silenciosa (oratio); os monges beneditinos rezavam os Salmos sete vezes ao dia (preces); os carismáticos expressam suas súplicas em línguas e louvor. Todos esses modos são legítimos quando brotam de um coração sincero, atento à presença de Deus e ao sofrimento do próximo. A oração, sob qualquer forma, é sempre relação, nunca ritual vazio, e por isso, orar, rezar, suplicar ou fazer prece são caminhos complementares de um mesmo clamor humano que busca o rosto do Pai / Mãe.
É preciso saber que a oração, nesse contexto, não é uma técnica, mas um modo de estar no mundo. Ela é, “a fidelidade da presença”, uma abertura radical ao Outro que sustenta o ser. Na tradição judaica da época, cada mestre ou grupo possuía sua forma própria de orar, sua “assinatura espiritual”. O pedido dos discípulos, portanto, é um desejo de entrar no modo de ser de Jesus, no seu jeito de se relacionar com o Pai. Como João Batista ensinava os seus (Lc 11,1), assim também Jesus forma seus discípulos não para o culto mecânico, mas para a comunhão viva.
Jesus responde não com uma aula, mas com um modelo de vida: o Pai-Nosso. Em Lucas, essa oração é mais breve que em Mateus (Mt 6,9-13), mas carrega as mesmas verdades fundamentais: relação filial com Deus, santificação do nome divino, busca do Reino, pão de cada dia, perdão recíproco e livramento do mal. Cada petição é um espelho da realidade vivida pelo povo: a fome cotidiana, as feridas da convivência, as estruturas do mal.
Crucialmente, a primeira palavra, “Pai” (Abbá), não é apenas um título de proximidade, mas a expressão de uma intimidade radical. Jesus não apresenta Deus como um imperador distante, mas como um Pai-Mãe compassivo, atento às necessidades dos filhos. Isso desmonta qualquer tentativa de transformar Deus em um fiscal ou contador cósmico. A oração começa com o reconhecimento de que Deus é relação. Orar é mergulhar nessa relação. Como afirma o Catecismo da Igreja Católica, “a oração cristã é uma relação de aliança entre Deus e o ser humano” (n. 2564).
Como em Marcos 14,36 – quando Jesus, em agonia, clama “Abbá, Pai” – vemos que essa oração nasce do chão da vida, da dor e da confiança. A mesma confiança que Abraão demonstra em sua ousada negociação com Deus em Gênesis 18, insistindo em favor da vida, intercedendo por justos em meio aos ímpios. Orar é, também, interceder. É assumir o lugar do outro no coração, não para manipulá-lo, mas para acolher sua dor e apresentá-la a Deus. O Espírito geme em nós (Rm 8,26), pois nem sempre temos palavras – mas temos corpos, lágrimas, histórias.
E então vem o pedido pelo pão cotidiano – o pão de cada dia –, que remete ao maná no deserto (Ex 16), à confiança no cuidado divino, mas também à partilha e à solidariedade. Em tempos de fome e desigualdade, o pedido pelo pão transcende o individual; ele se torna um grito político e uma exigência ética inegociável. Como podemos orar “dá-nos o pão” e, ao mesmo tempo, votar contra políticas de segurança alimentar? Como podemos dizer “Pai Nosso” e legitimar sistemas econômicos que ceifam a vida dos filhos de Deus na penúria? São essas as contradições que expõem o abismo entre a oração proclamada e a vida praticada.
Mateus reforça: “Não vos preocupeis com o que comer ou vestir... Vosso Pai sabe do que precisais” (Mt 6,25-32). A oração nos reconduz à confiança e à resistência. O pão não é apenas biológico, mas também espiritual e social – é Eucaristia e partilha. Como recorda a Gaudium et Spes: “As alegrias e as esperanças, as tristezas e as angústias dos homens de hoje... são também as da Igreja” (GS 1). A espiritualidade que ignora os corpos famintos trai a encarnação do Verbo.
A oração de Jesus é, também, oração de perdão. Mas não há verdadeira oração quando se mantém ódio no coração. A fé que reza e persegue é farisaica. A fé que canta louvores e espalha mentiras é vazia. O perdão que Jesus ensina não é passividade diante da injustiça, mas escolha ativa pela reconciliação e pela verdade. Em um país polarizado e ferido, esse ensinamento é uma convocação à resistência contra o ciclo do ressentimento. Marcos é incisivo: “Quando estiverdes orando, perdoai, se tendes algo contra alguém” (Mc 11,25). E o Eclesiástico alerta: “Quem guarda rancor contra seu próximo, como poderá pedir a Deus a cura?” (Eclo 28,3).
Jesus completa seu ensinamento com duas parábolas exclusivas de Lucas: a do amigo importuno (Lc 11,5-8) e a do pai generoso (Lc 11,9-13). Ambas apontam para um Deus que não se irrita com a insistência, mas que se alegra com a confiança do orante. A insistência aqui não é sinal de desespero, mas de fé viva. A imagem de um Deus que responde não porque foi vencido pela pressão, mas porque ama, nos liberta das ideias mágicas de oração como fórmula de manipulação.
“Pedi e recebereis; buscai e encontrareis; batei e vos será aberto” (Lc 11,9). Essa tríade não é uma promessa de prosperidade material. Jesus não garante riquezas, cargos ou casas. Garante o Espírito: “O Pai do céu dará o Espírito Santo àqueles que o pedirem” (Lc 11,13). Essa é a maior dádiva: o Espírito que anima, consola, transforma e envia. É isso que muitos não compreendem: orar é abrir-se à vontade de Deus, não forçá-la. Quem ora de verdade é transformado antes mesmo de ver a resposta.
Confirmados nessa profunda compreensão da oração como relação viva, somos então impelidos a denunciar as distorções que assolam nossa fé hoje. Vemos orações transformadas em espetáculos, cultos em meros shows, e promessas de bênçãos trocadas por dízimos. Práticas que comercializam a fé e banalizam o mistério, como a teologia da prosperidade, do domínio ou do mérito individualista, não são nada menos que um falso evangelho. Como alertou São Paulo, “a piedade como fonte de lucro” é corrupção (1Tm 6,5). A verdadeira oração não é um contrato de benefícios; é uma entrega confiante. A fé não é uma chave para abrir cofres celestes; é um caminho de comunhão com Deus e com nossos irmãos e irmãs na humanidade.
Num tempo em que muitos usam a Bíblia para legitimar violências, racismo, misoginia e políticas anti-vida, é urgente retomar o Evangelho. A oração ensinada por Jesus não serve aos projetos do poder, mas ao Reino. Uma Igreja que ora sem ouvir o clamor dos pobres trai o Evangelho. Como denunciou São Romero: “Uma religião de missa dominical, mas de semanas injustas não agrada ao Deus da vida.” E como alertava Santo Irineu: “A glória de Deus é o ser humano vivo” – e não apenas o fiel domesticado.
Nesse a riqueza da Igreja Católica manifesta-se também na diversidade de seus carismas e espiritualidades, cultivados em movimentos, pastorais e organismos que, ao longo do tempo, buscaram diferentes modos de se relacionar com Deus a partir do Evangelho. A espiritualidade inaciana, por exemplo, educa para a escuta interior e o discernimento da vontade de Deus “em tudo amar e servir”; a franciscana encontra em cada criatura um sinal da presença do Pai, chamando à simplicidade e à fraternidade universal; a carmelita mergulha no silêncio e na intimidade do coração orante, como Teresa de Ávila e João da Cruz, que viam a oração como “trato de amizade com quem sabemos que nos ama”. Os movimentos como a Renovação Carismática Católica expressam uma oração mais espontânea, marcada pelo louvor e pela confiança no Espírito; os Cursilhos de Cristandade cultivam o encontro pessoal com Deus que transforma o cotidiano; o Focolare testemunha a presença de Jesus entre os que vivem a unidade; a Comunidade Shalom, a Canção Nova, a Pastoral da Juventude, a Pastoral da Criança, a Pastoral Carcerária, a Pastoral da Terra, o CIMI, a CPT, entre tantos outros, cada qual com sua ênfase, revelam que a oração cristã é múltipla, concreta e plural, mas sempre centrada no Cristo vivo, encarnado e ressuscitado.
Essa pluralidade não é fragmentação, mas sinfonia. Pois, como diz São Paulo, “há diversidade de dons, mas o Espírito é o mesmo” (1Cor 12,4). A oração ensinada por Jesus é suficientemente ampla para abrigar as lágrimas dos que lutam por justiça, o silêncio dos que contemplam, o grito dos que sofrem, o canto dos que esperam, a súplica dos pobres, o louvor dos que agradecem e a resistência dos que não se conformam com o mundo. A verdadeira oração cristã se encarna integralmente nas alegrias e lutas do povo, jamais se permitindo ser reduzida a um rito isolado do compromisso.
Nesse mesmo horizonte de comunhão e pluralidade, reconhecemos também os diversos grupos evangélicos, pentecostais, neopentecostais e protestantes históricos, que em suas comunidades orantes e em suas práticas espirituais autênticas, expressam sede de Deus e fidelidade ao Evangelho. Muitas de suas expressões de louvor, de intercessão, de jejum, de leitura orante da Bíblia e de cuidado mútuo têm sustentado famílias inteiras nas periferias urbanas e rurais, nos presídios e nas comunidades marginalizadas. Oração em vigília, oração de joelhos, oração em meio ao canto e ao clamor — tudo isso brota do mesmo Espírito que unge e envia, sem deixar de fora as rezas dos terreiros, nas novenas das quebradas, nas ladainhas quilombolas e nas danças de cura dos povos indígenas, a oração se encarna como grito de resistência e de memória ancestral. A mística do povo é pluriforme e, muitas vezes, mais ortodoxa que os dogmas recitados sem compaixão.
Orar é transformar-se e comprometer-se. O Papa Francisco, na Evangelii Gaudium (n. 262), afirma que “a oração é o coração da evangelização”. Mas isso só é possível se a oração não for fuga da realidade, mas força que nos lança para dentro dela com os olhos de Deus e os pés do Evangelho. A oração cristã é resistência mística diante do absurdo, é silêncio que grita contra a indiferença. A oração, quando autêntica, gera profetas e não fanáticos.
Lucas nos mostra um Jesus que ora, ensina a orar e vive aquilo que reza. É preciso reaprender a orar, como os discípulos. É preciso orar como quem busca a justiça. É preciso orar como quem escuta os silêncios do mundo. É preciso orar com os pés no chão e o coração aberto. E, sobretudo, é preciso orar com a vida.
É preciso reconhecer e honrar essa mística do povo crente, ainda que, muitas vezes, fragmentada ou manipulada por falsos pastores. O Evangelho de hoje nos lembra que não é o estilo da oração que importa, mas sua raiz no amor e sua abertura à vontade de Deus. O problema não está na forma, mas no espírito com que se reza. Onde há humildade, fé e desejo de comunhão com o Pai, ali está o Reino em germinação.
Neste domingo, ecoemos o pedido dos discípulos:
“Senhor, ensina-nos a orar.” Mas que nossa oração seja mais que palavras; que ela seja encarnada em nossas ações. Senhor, ensina-nos a orar com o corpo dos que carregam cruzes invisíveis. Ensina-nos a orar com os olhos dos que veem além da dor. Ensina-nos a orar com as mãos dos que semeiam justiça. Ensina-nos a orar com os pés dos que marcham pela paz. Ensina-nos a orar não para fugir do mundo, mas para fecundá-lo com teu Espírito. Ensina-nos a orar de joelhos diante de Ti, e a erguer-nos diante das injustiças. Ensina-nos a orar como aqueles que lutam, amam e partilham. Pois só então Sua oração verdadeiramente se tornará a nossa, transformando não apenas nossas almas, mas o próprio mundo em que habitamos.Ensina-nos a orar até que o Reino venha e a terra inteira cante o Teu nome com liberdade e verdade.
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