quarta-feira, 23 de julho de 2025

Um breve olhar sobre Mateus 13,10-17

Na quinta-feira da 16ª semana do Tempo Comum do ano impar  a liturgia nos  convida a visitar  o texto  de Mateus 13,10-17  que  narra a explicação  da parábola  da semeadura  uma  das mensagens  dos encontros  de  cursilhos  da Cristandade. 

Entre as verdades que a autoridade das Escrituras destinou à nossa instrução (cf. 2Tm 3,16-17), há aquelas que se apresentam com tal limpidez que até mesmo os olhos menos treinados podem captar sua luz sem esforço. E há aquelas que se ocultam sob véus de silêncio e símbolos, exigindo de nós o ardor dos que escavam, dos que cavam fundo, dos que não se contentam com a superfície (cf. Pr 2,3-5). A Palavra de Deus, como o maná do deserto, é alimento diário — mas só sacia a quem sai da tenda de manhã cedo para recolhê-lo (cf. Ex 16,4-21). É como a terra fértil: há frutos que se colhem prontos; outros, precisam ser esmagados, cozidos, amassados até se tornarem pão (cf. Is 28,28). Jesus falava por parábolas. Os discípulos perguntam por quê. A resposta parece, à primeira vista, excludente: “Porque a vós foi dado conhecer os mistérios do Reino dos Céus, mas a eles não” (Mt 13,11). Mas essa afirmação precisa ser lida com o ouvido do coração (cf. Sl 95,7-8) e os olhos da fé (cf. Hb 11,1). Jesus não restringe o acesso; denuncia os bloqueios. Não ergue muros — apenas nomeia os que se recusam a passar pelas portas (cf. Jo 10,9). A pedagogia das parábolas é a pedagogia do desejo: só compreende quem deseja compreender (cf. Sl 42,2). Só escuta quem se dispõe a ser afetado. Por isso Jesus recorda Isaías: “Este povo endureceu o coração” (cf. Is 6,9-10). Eles têm olhos, mas não veem; ouvidos, mas não escutam — como já advertira Jeremias (Jr 5,21). E, como em Amós, a fome não é de pão, mas de escutar a Palavra do Senhor (Am 8,11). Mas não basta ter fome — é preciso sair ao encontro do alimento, como a mulher do Cântico dos Cânticos que, na noite escura, sai à procura do Amado (cf. Ct 3,1-2).

Desde o início da aliança, o verbo fundamental da fé bíblica não foi “ver”, mas “ouvir”: Shema Israel — “Escuta, Israel!” (Dt 6,4). Escutar é amar com todo o coração, com toda a alma, com todas as forças (cf. Dt 6,5). Escutar é aliança. É fidelidade. É entrega. É deixar-se modelar pelo oleiro divino (cf. Jr 18,6). Escutar é gesto de adoração e de resistência. Deus ouviu o clamor do povo no Egito (cf. Ex 3,7). A escuta, quando verdadeira, é libertadora: desinstala, desmascara, descoloniza. Escutar é abrir-se ao Êxodo. É romper com os faraós de ontem e de hoje. É peregrinar pela Palavra. Escutar é desobedecer à indiferença (cf. Lc 10,31-32). É permitir que Deus continue semeando esperança em nós — mesmo em silêncio (cf. Hb 6,19).

A parábola não é fábula, nem historinha de moral. Ela é fenda. Fresta. Corte no fluxo da vida automática. Ela interrompe a lógica da repetição. Vem como fermento em massa endurecida (cf. Mt 13,33), como fogo sobre o gelo da indiferença (cf. Lc 12,49), como semente que insiste mesmo em solos duros (cf. Mt 13,4-7). A parábola não se decifra com métodos ou técnicas de persuasão. Ela exige uma escuta que ultrapassa o intelecto (cf. 1Cor 2,14), um coração disposto a perder o controle, a ser desinstalado. Ela desconcerta, desloca, desconstrói — porque é viva, ativa e penetrante como espada afiada (cf. Hb 4,12).

As parábolas não são invenção de Jesus, mas herança profética. Natã contou uma parábola a Davi para fazê-lo enxergar sua própria injustiça (cf. 2Sm 12,1-7). Isaías narrou a parábola da vinha estéril (cf. Is 5,1-7), para denunciar a esterilidade de Israel. Ezequiel falou em parábolas para alertar sobre o juízo (Ez 17; 24,3). Jesus herda essa tradição, mas a radicaliza: suas parábolas não apenas ilustram — elas revelam e escondem ao mesmo tempo (cf. Mt 13,35; Sl 78,2). São enigmáticas porque visam não apenas ensinar, mas converter. Não são decorebas, mas convite ao mergulho.

Aqueles que se acham sábios demais para ouvir (cf. Rm 1,22), religiosos demais para reaprender (cf. Jo 3,10), limpos demais para tocar a lama dos símbolos, esses não compreendem. A Palavra é para todos (cf. Is 55,1), mas nem todos são para a Palavra (cf. Jo 6,60.66). Por isso, mesmo vendo, não veem; mesmo escutando, não escutam. Não se trata de exclusão arbitrária, mas de consequência espiritual-existencial (cf. Pr 1,24-28). Como um campo onde a semente é lançada com generosidade, mas só germina onde o solo se abre para acolher (cf. Mt 13,23). Jesus, nesse trecho, não descreve apenas um método de ensino. Está fazendo um diagnóstico espiritual e sociológico. Vivemos tempos semelhantes. A escuta se tornou arte rara. A saturação de palavras, discursos e notificações nos tornou surdos (cf. Ec 5,1). Há muito barulho, mas pouco silêncio fértil. Muito ensino, pouca sabedoria (cf. Eclo 21,15). Templos cheios, ouvidos vazios. Bíblias nas mãos, mas a Palavra não pulsa no coração (cf. Jr 8,9). Muitos têm acesso ao texto — mas poucos permitem que o texto os leia, os cure, os converta.

E aqui se escancara uma das feridas da fé contemporânea: a substituição da escuta pela performance. A fé, sequestrada pelo mercado, virou espetáculo (cf. Mt 6,1-5). Hoje, muitas parábolas são substituídas por frases de efeito. Pregadores digitais, treinados mais em marketing do que em mística, vendem uma espiritualidade de algoritmo: rápida, viral, sem raiz (cf. Mt 13,5-6). Mas o Reino não se viraliza — ele germina. No silêncio. Na escuta. Na espera (cf. Sl 40,2). 

A teologia da prosperidade — que transforma Deus em caixa eletrônico — não suporta parábolas, pois quer fórmulas, resultados, garantias (cf. Lc 4,12). A teologia do domínio — que confunde Reino com poder político, religioso ou moral — também as rejeita, porque as parábolas nivelam, desestabilizam, revelam a luz que expõe todas as sombras (cf. Mt 5,45). Os que usam a religião para manter estruturas de poder — como os fariseus aliados a Herodes (cf. Mc 3,6) — rejeitam a pedagogia do Reino, pois ela escapa ao controle. A fé como mercadoria não tolera parábolas: elas não cabem em embalagens de likes nem slogans de campanha. O clericalismo também as repele, pois onde tudo se decide por decreto e autoridade vertical, não há espaço para o mistério, o enigma, a escuta partilhada (cf. At 15,12.28). E, no entanto, o Reino continua sendo semeado. Mesmo onde há dureza. Mesmo onde há superficialidade. Mesmo onde há espinhos (cf. Mt 13,7). Porque a Palavra é abundante. Como nos recordava o saudoso Papa Francisco, cujo legado pastoral e profético permanece vivo e inspirador na Igreja: “Evangelizar é tornar o Reino de Deus presente no mundo” (Evangelii Gaudium, n. 176). E tornar o Reino presente é, antes de tudo, escutar. Como insiste o Concílio Vaticano II: “A Sagrada Escritura deve ser como que a alma da teologia e o alimento da alma” (Dei Verbum, n. 24). Porque “não só de pão vive o ser humano, mas de toda Palavra que sai da boca de Deus” (Dt 8,3; cf. Mt 4,4).

Escutar é também construir comunidade: é partilhar o pão, o tempo, os dons e os afetos (cf. At 2,42-47). Como diz Fratelli Tutti, escutar é o segredo da proximidade real (n. 48). E como diz Laudato Si’, não haverá nova espiritualidade sem nova escuta: da Palavra, do outro e da Criação (n. 117-118). Escutar o Reino é escutar também o grito da terra, da água, dos animais, dos povos crucificados pela ganância.

Jesus conclui com uma bem-aventurança: “Felizes os vossos olhos, porque veem; e os vossos ouvidos, porque escutam” (Mt 13,16). Não se trata de privilégio, mas de abertura. A felicidade está na disposição de escutar. De acolher. De se deixar afetar. De permitir que a Palavra faça ninho, mesmo quando vem disfarçada de silêncio (cf. Sl 131,2).

Hoje, nesta liturgia da Palavra, somos chamados à escuta que gera fruto. Que cada leitura proclamada seja como semente: que caia no silêncio fértil do nosso coração. Que escutar a Palavra, como Igreja, nos desinstale, nos converta e nos envie. Porque só escuta de verdade quem se levanta para servir (cf. Is 6,8). E onde há serviço, aí germina o Reino.

Onde o Reino germina?

No escuro. No escondido. No coração que não se cansa de amar (cf. 1Jo 4,16).

Felizes os que escutam. Porque neles o Reino germina.

DNonato – Teólogo do Cotidiano


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