Segundo a tradição cristã especialmente os evangelhos apócrifos como o Protoevangelho de Tiago e o Evangelho de Pseudo-Mateus — Sant’Ana e São Joaquim são os nomes dos pais de Maria, avós de Jesus. Embora não mencionados nos evangelhos canônicos, esses personagens exerceram profunda influência na espiritualidade cristã, na liturgia e na arte sacra.
Diz-se que Joaquim, homem justo, foi humilhado publicamente por não ter filhos, vergonha na lógica patriarcal da época. Retira-se ao deserto para jejuar e orar. Ao mesmo tempo, Ana, em casa, reza e chora. Deus, escutando o clamor dos dois, concede-lhes Maria — consagrada ao Senhor desde o ventre. A esterilidade de Ana transforma-se em sinal da fidelidade divina. Sua história ecoa outras mulheres da Escritura: Sara, Rebeca, Raquel, Ana (mãe de Samuel), Isabel... Todas conceberam contra as probabilidades, como que para anunciar: “Nada é impossível para Deus” (Lc 1,37).
O nome Ana significa “graça”, e Joaquim, “o Senhor estabelece”. Na união de seus nomes já se anuncia o mistério: Deus estabelece sua graça no tempo da esterilidade, na vida marcada por limites. Ana gera Maria quando tudo parecia acabado; Maria gera Jesus quando tudo ainda era por começar. A idosa gera a jovem; a jovem gera o Eterno. Aqui se desenha um paralelo simbólico profundo: Ana, no fim da vida, gera o início; Maria, no início da vida, gera o cumprimento. A primeira concebe a Mãe da Palavra; a segunda, a Palavra feita carne. Ana vence a esterilidade com fé; Maria, a dúvida com escuta. Em ambas, o Espírito age onde o mundo diz “fim” e Deus responde “começo”.
Celebrar Sant’Ana e São Joaquim é honrar a linhagem invisível da fé. Eles não viram Jesus com os próprios olhos, mas geraram aquela que diria “sim” à encarnação da Palavra. São ícones da fé silenciosa, daquela fidelidade sem palco que sustenta o futuro. A eles cabe o mérito oculto dos que educam para o Reino sem vê-lo plenamente. Entre o silêncio de Ana e o sim de Maria, Deus realiza o que prometera desde o Gênesis: “Porei inimizade entre ti e a mulher” (Gn 3,15). Ana prepara a mulher nova; Maria encarna a promessa; em ambas, a redenção se insinua na carne. A idosa gera a jovem que gerará o Salvador. É a continuidade da promessa que se faz carne, como o fio de escuta que atravessa a história da salvação.
Nesse espírito, ressoam as palavras de Jesus em Mateus 13,16-17: “Bem-aventurados os vossos olhos, porque veem; e os vossos ouvidos, porque ouvem! Pois em verdade vos digo: muitos profetas e justos desejaram ver o que vedes, e não viram; e ouvir o que ouvis, e não ouviram.”
Jesus pronuncia essas palavras após explicar o mistério do Reino por meio de parábolas. O contexto revela um contraste: há os que veem e ouvem, mas não compreendem, e há os discípulos que acolhem com o coração. Mateus remete ao lamento profético de Isaías (6,9-10), ecoando a dureza de quem se recusa a converter-se. Ver e ouvir, aqui, são atos espirituais, não biológicos.
Isaías mesmo nos oferece a chave dessa escuta: “O Senhor Deus me deu língua de discípulo... Cada manhã Ele desperta meu ouvido para que eu escute como um discípulo” (Is 50,4).
Aqui o profeta revela o discipulado como escuta diária, constante, encarnada. A escuta que nos transforma é a que nasce do despertar cotidiano, do silêncio que abre espaço para a Palavra. É essa mesma disposição que encontramos em Samuel, quando diz: “Fala, Senhor, teu servo escuta” (1Sm 3,10). Ou em Maria, que não apenas escuta, mas guarda todas as palavras no coração e as medita (Lc 2,19.51), tornando-se ícone da escuta que fecunda.
A escuta de Ana é a escuta que educa, a escuta silenciosa da mãe que desperta, como diz Isaías. E, escutando assim, Ana formou Maria não apenas como filha, mas como discípula do Verbo que viria. O Magnificat que Maria canta não brota do nada: é a flor de uma raiz cultivada em casa. É a teologia aprendida nas dobras do avental de Ana, é a memória dos pobres de Javé que Ana deve ter ensinado enquanto costurava esperança entre os dedos.
Ambas — Ana e Maria — escutam com o coração. E porque escutam, geram. Geram fé, esperança, libertação. Geram, antes de tudo, um novo modo de estar no mundo: fecundado pela escuta e não pela imposição.
Nos evangelhos sinóticos, esse contraste entre ver/ouvir e não compreender é frequente. Marcos, por exemplo, destaca o mesmo lamento de Jesus: “Tendo olhos, não vedes? E tendo ouvidos, não ouvis?” (Mc 8,18). Lucas também registra: “A vós é dado conhecer os mistérios do Reino, mas aos outros é dito em parábolas” (Lc 8,10). A fé é um dom, mas é também cultivo. É necessário olhos treinados pela compaixão e ouvidos despertos pelo amor. Ana e Joaquim não eram doutores da Lei, mas viveram atentos aos sinais de Deus, mesmo quando pareciam silenciosos. Eles aprenderam, como o profeta Elias (1Rs 19), que Deus não está no estrondo, mas no sopro suave.
Mas o Evangelho também é denúncia. Muitos hoje dizem ouvir Deus, mas apenas confirmam seus preconceitos. Reduzem o Evangelho a slogans de prosperidade, a instrumentos de poder político e patriarcal. Essa "escuta" é, na verdade, surdez espiritual. São os que querem um Jesus domesticado, à imagem de suas ideologias, um Cristo que abençoe privilégios enquanto ignora os pobres e os que choram. São os que transformam a fé em mercadoria, o altar em palanque, e a liturgia em espetáculo. Como já advertia o Papa Francisco: “o mundanismo espiritual reveste-se de aparências religiosas, mas busca não a glória de Deus, e sim a glória humana e o bem-estar pessoal” (Evangelii Gaudium, 93).
Esses falsos ouvintes lembram os que Jesus critica em Mateus 7,21-23 — os que fazem milagres e usam seu nome, mas não fazem a vontade do Pai. A Palavra se torna apenas instrumento de visibilidade, ferramenta de manipulação. A esses, Jesus dirá: “Nunca vos conheci”. Pois conhecer a Deus não é repetir versículos, mas encarnar a misericórdia. E Ele ainda bate à porta: “Eis que estou à porta e bato. Se alguém ouvir a minha voz e abrir, entrarei e cearei com ele” (Ap 3,20). Mas em muitas casas, o ruído é tanto que ninguém mais escuta.
Já os discípulos de verdade — como os de Emaús — reconhecem o Cristo na partilha, no partir do pão, no coração que arde (Lc 24,13-35). Escutam não com os ouvidos, mas com o afeto. Veem não com os olhos, mas com a compaixão. A fé vem da escuta (Rm 10,17), mas não de qualquer escuta: vem da escuta que se deixa transformar.
Essa escuta verdadeira nos compromete com os que estão à margem: indígenas despojados de suas terras, mulheres silenciadas, jovens empurrados à depressão, mães solo, idosos esquecidos. Ver e ouvir Jesus é ver e ouvir os crucificados de hoje.
É nesse contexto que a memória de Sant’Ana e São Joaquim se ilumina: eles não fizeram milagres nem pregaram sermões, mas educaram Maria com valores eternos. Eles escutaram a Palavra no silêncio dos dias e a transmitiram pela vida. Eles não foram sacerdotes nem escribas — foram justos. E como diz a Escritura: “O justo vive pela fé” (Hb 10,38).
Como lembra o Papa Francisco: “os avós são o elo entre as gerações, são a memória viva da fé, os guardiões das raízes” (Amoris Laetitia, 192). Ignorá-los é amputar a memória; desprezá-los é ferir o corpo místico da Igreja. E quando a fé perde a memória, torna-se mera técnica religiosa, sem carne, sem história, sem povo.
Ana, idosa, gera Maria — a nova Eva. Maria, jovem, gera Jesus — o novo Adão. Em Jesus maduro, crucificado e ressuscitado, vemos a plenitude do que foi gerado no seio da escuta. A promessa feita a Ana frutifica em Maria; a fidelidade de Maria se cumpre em Jesus. Entre a anciã que esperou e a jovem que acreditou, Deus tece sua história com fios de confiança.
Bem-aventurados os que, como Sant’Ana e Joaquim, sustentam a esperança sem palco.
Bem-aventurados os olhos que veem o Cristo nos sem-teto, nos migrantes, nas crianças sem futuro.
Bem-aventurados os ouvidos que escutam o clamor da Terra e dos pobres e se levantam.
Oremos
Senhor, desperta nossos ouvidos como discípulos, como fizeste com Isaías (Is 50,4). Ensina-nos a ver com os olhos da compaixão, a escutar com o coração atento, como Sant’Ana. Dá-nos o silêncio fértil, a paciência dos que educam sem palco, e a coragem dos que geram vida mesmo quando tudo parece estéril.
Amém.
DNonato – Teólogo do Cotidiano
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