Não se trata de um caso isolado, nem de um “monstro” fora da curva. Trata-se de uma tragédia com raízes profundas em um projeto político e cultural que naturalizou a violência como forma de autoridade, transformou o armamento civil em símbolo de virtude e revestiu o autoritarismo de valores religiosos. Como alerta o profeta Jeremias, “Porquanto clamarão, mas não será ouvido; clamarão a mim, mas não responderei” (Jeremias 7:28). É esse grito sufocado, esse clamor ignorado, que traduz a voz das vítimas da violência institucionalizada.
Rafael Horta era um bolsonarista convicto. Defendia o armamento civil como garantia da “proteção da família”, idolatrava Sergio Moro, atacava o Supremo Tribunal Federal, chamava de “escolha” a crença na Terra plana e rejeitava o aborto no ventre — porque, segundo suas convicções, “a vida é sagrada desde a concepção”. Contudo, há fortes indícios de que compartilhava ou apoiava a ideia da pena de morte social, ou seja, a eliminação das minorias e dos vulneráveis como solução política e ideológica. Em outras palavras: a vida seria sagrada na concepção, mas, uma vez nascida, poderia ser descartada. Essa contradição expõe a face cruel e hipócrita de um projeto que mascara o extermínio como moralidade.
A Escritura é clara ao denunciar a hipocrisia: “Ai daqueles que ao mal chamam bem, e ao bem, mal; que fazem da escuridão luz, e da luz, escuridão” (Isaías 5:20). Esse projeto político-cultural, que se esconde atrás de um falso moralismo, pratica essa inversão perversa. Usa a retórica da família e da fé para justificar a disseminação da morte e da opressão. É preciso dizer com clareza: essa não é apenas uma tragédia familiar. É o reflexo brutal de um modelo ideológico que legitima a posse de armas como virtude moral e a masculinidade violenta como modelo de conduta. Um modelo que foi promovido por Jair Bolsonaro — embusteiro travestido de Messias — que fez da retórica armamentista um programa de governo, das armas um fetiche e da família um campo de controle. Como o Salmo alerta: “O Senhor prova o justo, mas odeia o perverso e aquele que ama a violência” (Salmo 11:5). E é essa violência que se naturalizou na política, na cultura e nas casas brasileiras.
O que antes poderia ser entendido como exceção tornou-se regra: a banalização da morte, o culto à força bruta e a negação da dignidade humana no íntimo do lar. O que deveria ser o espaço do cuidado tornou-se campo minado de medo e opressão. A tragédia de Limeira é mais um resultado previsível da política de morte disseminada por esse projeto. Um projeto que usou o nome de Deus, da Pátria e da Família não para proteger a vida, mas para justificar seu extermínio — especialmente o de mulheres, crianças e minorias. O discurso do “cidadão de bem armado” nunca foi sobre segurança. Sempre foi sobre poder, medo e dominação.
O apóstolo Tiago adverte: “Pois onde há inveja e ambição egoísta, aí há confusão e toda espécie de males” (Tiago 3:16). E não há ambição mais perversa do que a ambição pelo controle violento, revestida de falsa justiça. Do ponto de vista sociológico, esse tipo de violência é alimentado por uma cultura que reforça a masculinidade como dominação e controle absoluto. Da psicologia, sabemos que a frustração emocional, quando armada, é destrutiva e pode explodir em tragédias irreparáveis. Da filosofia política, compreendemos que o Estado que abdica do monopólio legítimo da força abre caminho para o caos travestido de “liberdade”. E da economia, observamos o fortalecimento de uma indústria armamentista que lucra com o medo — enquanto as famílias enterram seus mortos.
Clamam contra mim, mas não há quem responda; clamam sobre a violência, mas não é libertado (Jeremias 5:28). E é esse silêncio cúmplice que permite que as balas continuem a matar. Da religião — verdadeira — só pode vir o escândalo: o nome de Deus foi usado para justificar a posse de armas, enquanto o Evangelho foi traído em cada disparo. Não há cristianismo possível na legitimação da violência doméstica, do ódio ideológico e da cultura da bala.
O próprio Jesus deixou claro que o mandamento maior é o amor, e que “quem vive pelo sangue, pelo sangue morrerá” (Mateus 26:52). Não é a força que constrói comunidades, mas o amor e a justiça. A legitimidade do poder não reside no calibre da arma, mas na capacidade de cuidar, proteger e respeitar o outro.
Se foi Horta quem apertou o gatilho, a perícia dirá. Mas quem carregou essa arma de sentido foi uma ideologia que ainda vive — e mata. Porque mesmo quando o dedo treme, a bala já foi autorizada. E o silêncio da sociedade diante dessas tragédias é cúmplice.
Armar a população nunca foi sobre liberdade. Foi sempre sobre submissão. Sobre o controle dos corpos pela força. Sobre o retorno do patriarcalismo armado. E agora, uma mulher e uma criança estão mortos. E o nome de Deus ainda é invocado como justificativa.
A quem interessa esse modelo?
Quantas famílias mais terão de ser destruídas até que se reconheça que a política do ódio não é um desvio — é um projeto?
Até quando vamos chamar de valores o que é, na verdade, violência legitimada?
Que essa tragédia não seja mais uma manchete esquecida, mas o grito irrompido das famílias que clamam por justiça verdadeira. Que não nos acostumemos com a banalização da dor, nem nos calemos diante do poder que mata e silencia. Que saibamos ver, na morte de uma mulher e de uma criança, o rosto do Brasil ferido — e, sobretudo, rejeitemos o embuste que usurpa o nome de Deus para justificar o massacre. É hora de romper com essa lógica perversa, de desmontar a ideologia da violência que mascara o medo, o autoritarismo e a exclusão. É hora de recuperar o verdadeiro sentido da família, não como instrumento de controle e opressão, mas como espaço sagrado de amor, cuidado e liberdade.
Se queremos um Brasil digno, justo e em paz, precisamos urgentemente desarmar não apenas as armas, mas os corações e as mentes que alimentam o ódio e o fascínio pela morte. Porque só há futuro na cultura da vida, e essa vida começa na defesa intransigente da dignidade de cada pessoa — da criança no berço, da mulher na sua casa, do homem na sua vulnerabilidade.
O tempo do silêncio acabou. Que a justiça e a compaixão sejam as únicas armas legítimas que empunhemos. E que o verdadeiro Deus, que nos chama a amar até o fim, seja nossa luz e nosso escudo.
Como nos exorta a Escritura:
“Amai-vos cordialmente uns aos outros com amor fraternal, preferindo-vos em honra uns aos outros.” (Romanos 12:10)
Que este seja o fundamento de nossa resistência à violência e o caminho para reconstruirmos um Brasil onde a vida seja sagrada em todas as suas formas.
Prof. DNonato - Teólogo do cotidiano.
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