terça-feira, 15 de julho de 2025

Um breve olhar sobre Mateus 12, 46-50.


A cena é simples, mas o gesto é revolucionário. Enquanto Jesus ensinava às multidões — partilhando a Palavra, curando os doentes, enfrentando a hipocrisia religiosa e anunciando o Reino — sua mãe e seus irmãos se aproximam e tentam falar com Ele. Não entram, ficam do lado de fora. Um dos presentes, talvez com respeito ou curiosidade, avisa: “Tua mãe e teus irmãos estão aí fora, e querem falar contigo” (cf. Mt 12,46-47). A resposta de Jesus, no entanto, desconcerta, rompe expectativas, e abre um novo horizonte espiritual: “Quem é minha mãe? Quem são meus irmãos? Aquele que faz a vontade de meu Pai que está nos céus, esse é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (Mt 12,48-50).

Esse breve episódio, proclamado com frequência nas memórias de Nossa Senhora e na liturgia ferial da 16ª semana do Tempo Comum, revela com nitidez a profundidade profética da pedagogia de Jesus. Ele não nega seus laços familiares, tampouco os despreza. Ao contrário: honra-os, mas os transfigura. Ao reconfigurar a noção de família, Jesus nos chama a uma conversão radical de nossas relações — com Deus, com os outros, com as estruturas sociais e religiosas. Não se trata de abandonar vínculos afetivos, mas de relativizá-los diante de um chamado mais alto: o de viver na escuta e na prática da vontade de Deus, critério definitivo de pertencimento à nova comunidade do Reino.

Esse versículo está no final de uma sequência de confrontos com os fariseus e mestres da Lei (Mt 12,1-45). O capítulo inteiro revela o choque entre a lógica do Reino — centrada na misericórdia, no acolhimento e na obediência a Deus — e as estruturas de poder religioso, jurídico e moral que distorcem a fé para controle. No episódio anterior, Jesus já havia declarado: “Eu quero misericórdia, e não sacrifício” (Mt 12,7; cf. Os 6,6), e acusara aquela geração de buscar sinais espetaculares, mas sem abertura interior para a conversão (Mt 12,39-42). O contexto imediato, portanto, é um convite à ruptura com os vínculos baseados apenas em tradições culturais ou biológicas, e à adesão a um novo princípio de filiação: a escuta e a prática da vontade de Deus, que é sempre exigente, libertadora e fecunda.

Jesus está revelando uma antropologia nova: não somos definidos pelo sangue, pela linhagem, pelo nome de família ou pelas instituições, mas pela escuta e adesão à Palavra que transforma. Lucas reforça isso quando registra: “Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática” (Lc 8,21). Marcos, por sua vez, situa essa fala após a acusação de que Jesus estava possuído por Belzebu (Mc 3,20-35), indicando que a nova família não se organiza por laços naturais, mas pelo discernimento espiritual. Como diz o prólogo joanino: “A todos que o receberam, deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus… não do sangue, nem da vontade da carne, nem da vontade do homem, mas de Deus” (Jo 1,12-13).

Essa redefinição de família, sob a ótica de Jesus, desestabiliza qualquer pretensão de apropriação religiosa, tribal ou eclesiástica da salvação. Jesus denuncia o etnocentrismo dos grupos religiosos de sua época, mas também antecipa o que Paulo desenvolverá com clareza: “Em Cristo já não há judeu nem grego, escravo nem livre, homem nem mulher” (Gl 3,28). A nova comunidade do Reino é formada por todos os que se dispõem a viver a vontade do Pai: com fé, coragem e fidelidade, como Abraão (cf. Gn 22,18), como os profetas perseguidos (cf. Mt 5,12), como os pequenos que recebem o Reino com coração aberto (cf. Mt 18,3-4).

Maria, longe de ser excluída, é aqui exaltada. Ela é a primeira a fazer a vontade de Deus (cf. Lc 1,38), a mulher que guarda todas as coisas no coração (cf. Lc 2,19.51), a discípula fiel até o pé da cruz (cf. Jo 19,25). É ela que proclama: “O Senhor fez em mim maravilhas… derrubou os poderosos de seus tronos e exaltou os humildes” (Lc 1,49.52). Sua maternidade espiritual não se reduz ao aspecto biológico: ela é mãe porque escuta, crê e segue. É figura da nova humanidade redimida. A tradição e o Magistério reconhecem nela não apenas a Mãe do Verbo encarnado, mas a imagem da Igreja que caminha na fé (cf. LG 63), a primeira entre os discípulos e a mais próxima da vontade do Pai.

Essa Palavra é profundamente contracultural. Em tempos em que a fé é mercantilizada, manipulada para interesses de poder ou reduzida a um espetáculo de likes e aplausos, Jesus declara: “Minha família é quem faz a vontade do Pai”. A fé verdadeira é a que se traduz em prática, não em performance; em compaixão, não em dogmatismo; em comunidade, não em individualismo espiritual. A parábola da casa sobre a rocha, que precede esse trecho (cf. Mt 7,24-27), ecoa aqui como chave hermenêutica: só quem ouve e pratica a Palavra constrói sua vida sobre alicerces sólidos.

A fé como mercadoria, alimentada por teologias da prosperidade, não encontra espaço no projeto de Jesus. Ele não chamou uma elite privilegiada, mas uma multidão sedenta, marginalizada, doente, excluída. A família de Jesus é a dos que não têm poder, mas se fazem pequenos para acolher o Reino (cf. Mt 11,25). A fé do Reino é partilha, é cruz, é comunhão de dores e esperanças. O clericalismo, por sua vez, que cria castas dentro da Igreja, encontra nesta cena uma denúncia: Jesus estende a mão não aos especialistas da Lei, mas aos discípulos simples, anônimos, disponíveis. A nova família não tem lugar para a arrogância espiritual.

Do ponto de vista psicológico e antropológico, esse chamado à nova filiação exige maturidade emocional e responsabilidade moral. Romper com dependências, inclusive religiosas, para assumir um caminho livre e autêntico, implica sofrimento, desapego e discernimento. “Quem ama seu pai ou sua mãe mais do que a mim, não é digno de mim” (Mt 10,37) não é desprezo pelos laços afetivos, mas um alerta: o Reino exige prioridade. Como diria Kierkegaard, é preciso escolher “o absoluto em vez do relativo”. Ser discípulo é sempre uma decisão que ressignifica todos os vínculos: familiares, sociais, religiosos, econômicos

Por isso, essa Palavra ressoa hoje com força particular: em uma era de tribalismos ideológicos, de radicalismos identitários e de seitas religiosas que tentam capturar a fé com promessas de poder, cura ou prosperidade, Jesus nos convida à comunhão aberta, livre e operante com todos os que fazem a vontade do Pai. Fazer essa vontade é escutar a Palavra (cf. Dt 6,4), meditar nela dia e noite (cf. Sl 1,2), praticá-la no concreto da vida (cf. Tg 1,22), vivê-la no amor (cf. Jo 15,10-12).A cena termina com um gesto: Jesus estende a mão para os discípulos e diz: “Eis minha mãe e meus irmãos” (Mt 12,49). É um gesto de fundação eucarística e profética. Estender a mão é partilhar a missão, é confiar a Palavra, é reunir uma nova humanidade. Ali nasce a nova casa: não feita de tijolos ou de regras, mas do Espírito que sopra onde quer (cf. Jo 3,8), do amor que liberta (cf. Gl 5,1), da comunhão que supera as fronteiras (cf. Ef 2,14-19).É essa casa que somos chamados a construir: com Maria, com os discípulos, com todos os que se dispõem a dizer “faça-se em mim segundo tua Palavra”. Não por nome, não por tradição, não por aparência — mas por escuta, fé e ação. Eis a nova família: comunidade de irmãos, irmãs, mães… filhos e filhas do Reino que vem.

DNonato - Teólogo do Cotidiano 

A Questão do sentimento e o Respeito por si mesmo XXXIII

 

A coragem de não implorar

Algumas músicas são espelhos estilhaçados. “My Mistake”, do grupo Folha, não se ouve — se sente na pele, como queimadura, esse texto nasce  irmão do texto  Quando amar se confunde com matar: escutas críticas de My Mistake

Uma musica que  narra uma cena  brutal: um homem mata a mulher que o traiu. Não é ficção distante — é reflexo do que acontece todos os dias, em casas, quartos e corações onde o amor virou cárcere, e a dor, sentença. Ele diz que foi um erro. Mas a verdade é que o erro começou muito antes do tiro — começou no instante em que confundimos amor com posse, desejo com direito, ausência com ofensa pessoal.

Essa confusão adoece por dentro. Muitas vezes, já nos ferimos antes mesmo de sermos feridos — ao entregar nossa dignidade a um amor que nunca existiu. A pergunta que fica é: quantas vezes já matamos a nós mesmos por alguém que não nos quis? Quantas vezes sufocamos a própria alegria, apagamos a nossa luz interior, imploramos por um afeto que sabíamos — no fundo — que nunca viria?

Insistimos em manter aceso o que já se apagou. Não queremos matar o que sentimos — queremos deixar viver, inclusive a dor, sem nos deixarmos definhar por ela. Queremos sobreviver sem adoecer. Amar sem implorar. Partir sem carregar culpa. E, sobretudo: não nos ferir em nome de ninguém. Nem sempre o amor nasce dos dois lados. Às vezes, é preciso coragem para reconhecer que o outro nunca nos amou — nem no começo, nem no meio, nem no adeus. Só no nosso sonho.

Aceitar essa realidade — que há tempos que não são mais nossos — pode ser brutal, mas também libertador. Porque não há sabedoria maior do que a de reconhecer a hora de parar. De não insistir em quem já foi embora — ou nunca esteve. De respeitar o silêncio que se instala onde antes havia promessa. De não tentar manter acesa uma chama que só nos queima.

 “Há um tempo de abraçar e um tempo de afastar-se dos abraços.” (Eclesiastes 3,5)

O tempo de se afastar chega sem alarde. A ausência do amor do outro pode nos ferir, sim — mas insistir em permanecer onde somos ignorados fere muito mais. A dignidade floresce quando deixamos de nos oferecer como oferta onde não há altar. Amor verdadeiro, ainda que doído, não sequestra ninguém. E o respeito próprio começa quando deixamos de entregar o coração a quem não sabe — ou não quer — recebê-lo.

Respeitar-se é, portanto, aprender a deixar ir. Mesmo quando dói. Mesmo quando a vontade grita por um olhar, por um gesto, por qualquer migalha de permanência. Mesmo quando tudo em nós ainda quer ficar. Porque a liberdade começa quando entendemos que nem toda ausência é abandono — às vezes, é livramento.

A chance mais importante é a que damos a nós mesmos: a de não mendigar presença, de não adoecer por alguém que não sabe, ou não pode, nos amar. Quem sabe quem é, não implora para ser visto. Sabedoria do axé — como ensinam as mães de santo: o orixá que é nosso, vem. O que não vem, não nos pertence. E não precisamos nos curvar diante do que nunca foi nosso.

A filosofia dos antigos estoicos também nos ajuda a compreender isso: a verdadeira liberdade não está no que nos acontece, mas em como escolhemos responder. Amar sem ser amado não nos torna fracos — ao contrário, nos coloca diante de um campo de batalha interior, onde a luta é pela preservação de nossa inteireza. Como dizia Marco Aurélio: “Tudo o que nos fere por fora só nos atinge se abrirmos a porta por dentro.”

E essa porta muitas vezes é escancarada pela carência. Quando buscamos no outro a validação do que somos, corremos o risco de cair no espelho de Narciso — não por vaidade, mas por desespero. O mito grego não denuncia o amor próprio, mas o desejo de ver nosso amor refletido a qualquer custo. E quem se afoga nesse espelho não encontra profundidade — apenas estilhaços. Não é reflexo: é dor travestida de imagem.

A escolha mais difícil nem sempre é caminhar ao lado de alguém. Às vezes, é reconhecer que o outro nunca caminhou conosco. E, mesmo assim, seguir. Sem amargura. Sem mágoa. Com cicatrizes, sim — mas sem sangrar pelo descuido de nós mesmos. Porque a pior traição não vem de fora, mas de dentro: quando insistimos em permanecer onde já fomos deixados.

Vivemos em um tempo que romantiza a insistência, que transforma humilhação em prova de amor, que glorifica a ideia de “lutar até o fim”. Mas há lutas que só nos machucam. E dizer “basta” com amor por si é um ato revolucionário. É declarar: não me sacrifico mais em altares que não me acolhem.Vivemos sob uma indústria da carência — uma pedagogia disfarçada que nos ensina a confundir obsessão com fidelidade, humilhação com entrega, abandono com vocação ao sofrimento. Mas amor não é insistência cega. Amor é também discernimento. E discernir é libertar-se.

Aprender a dizer “chega” não é desistência. É sabedoria. É coragem de se amar. Como dizem os mais velhos: ninguém segura quem aprende a andar com os próprios passos. Entre os povos indígenas do Brasil, o amor é escuta e fluidez. Não se prende o outro. Não se força permanência. O amor é relação de troca que respeita o tempo e o caminho de cada um.

Sim, a dor não some de imediato. Mas muda de pele. De ferida aberta, vira trilha secreta. Lembrança. Aprendizado. Às vezes, força. É pela dor atravessada com consciência que, um dia, nos reencontramos inteiros. Porque a dor, quando aceita, não nos destrói: nos revela. Ela mostra o quanto ainda esperamos reconhecimento de fora, o quanto ainda acreditamos que só valemos se formos amados por alguém.

Mas há um outro perigo silencioso: tornar-se cúmplice da própria dor. Há quem confunda cicatriz com identidade. Quem passa a viver preso à narrativa de ter sido rejeitado, como se isso fosse tudo o que é. Mas não somos aquilo que nos negaram. Somos também a possibilidade que brota depois — e a coragem de continuar sendo, mesmo sem testemunhas.

O amor que não volta pode deixar buracos. Mas é no modo como cuidamos desses vazios que se revela nossa alma. Há quem encha o vazio com raiva. Outros, com obsessão. Mas existe um caminho mais difícil — e mais sagrado: o do silêncio curativo, que não grita, não implora, não se justifica. Apenas aceita o que foi, honra o que sentiu, e segue com a leveza possível.

Essa leveza não é negação. É maturidade. E exige de nós uma espiritualidade que não dependa da presença do outro para florescer. Há orações que nascem no chão do abandono. E há fé que se fortalece quando não há mais quem nos segure pela mão. Porque há uma hora em que o outro não vem — e é nesse exato ponto que descobrimos o caminho de volta para nós.

Vivemos em uma cultura que nos faz crer que estar só é fracasso. Que o valor da pessoa depende de ser escolhida. Mas o Evangelho subverte isso: Jesus, em diversos momentos, se retirava. Escolhia o deserto. Aceitava o não. Chorava sozinho. E, mesmo assim, permanecia inteiro. Porque a missão de amar não é depender do retorno — é permanecer fiel à própria fonte.

A espiritualidade da inteireza é essa: amar sem se desmanchar, doar sem se anular, sentir sem se abandonar. Ela nos ensina que o coração pode sim ser partido — mas não precisa ser perdido. Que podemos chorar — sem precisar rastejar. Que podemos sofrer — sem precisar implorar para continuar existindo no afeto do outro.

Há quem pense que dignidade é frieza. Mas dignidade, aqui, é um nome alternativo para amor próprio. Não o amor narcísico, inflado, cínico. Mas o amor cultivado no silêncio, no respeito de si, na aceitação do tempo e na confiança de que o que é verdadeiro jamais exigirá que sangremos por migalhas.

E quando voltamos a nós — não por desistência, mas por lucidez — uma outra cura começa: a de viver com inteireza mesmo em ausências. A de respirar sem depender do retorno. A de existir sem depender de aprovação. A de amar — inclusive a si — sem precisar mais implorar por um amor que não vem.

Amar alguém que não nos ama é duro. Mas continuar nos amando, apesar disso, é o que nos cura..Porque só cicatriza o que foi aceito. E só se cura o que já deixou de nos comandar.

Dor sentida é humana. Dor idolatrada, prisão. E quando escolhemos sentir, sem implorar, sem adoecer, sem morrer,  é aí que começa a mais rara das liberdades: aquela que não espera ser amada para existir, ser inteira, ser livre.

DNonato – Teólogo do Cotidiano


segunda-feira, 14 de julho de 2025

Quando amar se confunde com matar: escutas críticas de My Mistake

Por DNonato – Teólogo do Cotidiano


Há músicas que não apenas tocam: elas denunciam. My Mistake, lançada em 1972 pela banda brasileira Pholhas, é uma dessas canções que, por trás da suavidade melódica e da estética do rock romântico internacional, revela o abismo afetivo de uma masculinidade adoecida. Escrita em inglês, a música narra, em tom confessional, um crime passional — o assassinato da esposa — seguido por prisão e por um arrependimento tardio que ecoa como um lamento sem consolo.

Mas o verdadeiro horror não está apenas no ato cometido: está na lógica que o torna possível — uma lógica em que amar se confunde com possuir, em que a perda do outro é tratada como ofensa pessoal, e a dor é convertida em punição. My Mistake é, portanto, mais do que um relato de um erro: é o retrato de uma cultura que ensina o homem a dominar antes de sentir, a controlar antes de escutar, a punir antes de elaborar. Ao mergulhar nessa canção e colocá-la em diálogo com outras narrativas musicais, culturais e sociais, como Camila, Camila da banda Nenhum de Nós, buscamos escutar o que tantas vezes é silenciado: as estruturas que naturalizam a violência afetiva, os afetos que implodem sob a lógica do controle, e as vozes — femininas, ancestrais e insurgentes — que insistem em sobreviver.

O Brasil da década de 1970, embora já em transformação, ainda era profundamente marcado por um imaginário patriarcal, em que o homem era educado para dominar, e não para sentir. A masculinidade era medida por força e controle, e o amor confundido com posse. O “crime de honra” era tolerado, romantizado e, muitas vezes, legitimado. A Ditadura Militar (1964–1985), ao reforçar a lógica da obediência e do autoritarismo, encontrava eco dentro dos lares. O silêncio doméstico era parte da engrenagem repressiva. Narrativas como a de My Mistake emergem desse solo: o ciúmes e a dor da traição são tratados não como sentimentos a serem elaborados, mas como justificativas para a violência. A morte da esposa torna-se, assim, a consequência trágica de uma cultura que ainda confunde virilidade com brutalidade.

Sociologicamente, essa masculinidade hegemônica se alimenta da socialização patriarcal, que desde a infância ensina meninos a suprimir vulnerabilidades, a não chorar, a “ser forte” a qualquer custo. Esse modelo, sustentado por tradições familiares e por uma cultura que naturaliza o controle masculino, gera uma dicotomia fatal: a força se apresenta como poder sobre o outro e não como autocontrole ou empatia. Dados recentes confirmam a persistência dessa lógica: índices alarmantes de violência doméstica e feminicídio no Brasil revelam que esse padrão não foi superado; ao mesmo tempo, o elevado número de suicídios entre homens expõe o custo emocional dessa repressão.

Psicologicamente, a raiz do crime narrado em My Mistake está na incapacidade emocional de lidar com sentimentos intensos como ciúme, vergonha e rejeição. Quando o sujeito não encontra canais saudáveis para expressar sua dor, ela se converte em raiva e violência. A vergonha tóxica, que paralisa o sujeito na culpa e no isolamento, impede que haja reparação e crescimento. Sem ferramentas para elaborar o sofrimento, o homem é preso num ciclo que pode levar ao extremo da destruição — tanto do outro quanto de si mesmo.

Culturalmente, essa masculinidade violenta é muitas vezes reforçada por discursos religiosos e políticos conservadores que naturalizam a submissão feminina e romantizam o “controle” como expressão legítima de amor. O clericalismo e a fé vazia reproduzem, sem crítica, modelos autoritários e excludentes que aprisionam afetos e ampliam as violências simbólicas e reais. É urgente uma releitura ética das tradições espirituais que valorize a vulnerabilidade, a justiça e o amor libertador.

Essa lógica do “melhor matar que perder” não é exclusiva do Ocidente. Ela ressoa, por exemplo, na tradição japonesa do seppuku — o ritual samurai de suicídio como forma de preservar a honra após uma falha. Em diversos contextos culturais ao redor do mundo, a honra é colocada acima da vida, e a dor, em vez de ser elaborada, é encerrada num gesto final. O desafio está em promover culturas que valorizem a dignidade de permanecer inteiro diante da perda, capazes de viver a dor sem destruí-la.

Décadas depois, a música brasileira voltaria a ecoar os efeitos dessa masculinidade doente — mas, desta vez, pela voz feminina ferida, ainda que velada. Em 1986, a banda Nenhum de Nós lançava Camila, Camila, também baseada em fatos reais, que narra a história de uma jovem vítima de violência doméstica e psicológica. A letra é pungente: "E eu que tenho medo até de suas mãos / Mas o ódio cega e você não percebe... Da vergonha do espelho / Naquelas marcas... E eu que tinha apenas dezessete anos / Baixava a minha cabeça pra tudo..."

Se em My Mistake ouvimos a voz do homem que destrói e depois lamenta, em Camila escutamos, ainda que por entre silêncios, a voz da mulher que sobrevive à tentativa de apagamento. Ela não é assassinada fisicamente, mas é marcada em sua dignidade, no corpo e na alma. A juventude, a submissão, a vigilância constante: Camila é o retrato de tantas mulheres que não têm voz nem escolha, silenciadas por uma masculinidade que vigia, controla, machuca.

Na sabedoria popular feminina, ecoa um ditado provocador: “mulher não trai, se vinga.” Longe de incentivar a retaliação, essa frase escancara a desigualdade estrutural. Em muitos contextos, o gesto da mulher que “trai” é, na verdade, uma resposta tardia a anos de humilhação e apagamento. Não é desejo de vingança, mas um grito por dignidade, uma reação à asfixia emocional. Porém, mesmo essa reação, quando mal compreendida, pode ser usada como justificativa para novas violências. O ciclo se fecha — e, tragicamente, se repete.

A mulher que reage à opressão, como Camila, carrega em si a força de Iansã — orixá dos ventos, da rebeldia e da justiça, na cosmologia afro-brasileira. Ela não destrói por vingança, mas se levanta para não morrer em silêncio. Sua “traição”, muitas vezes, é apenas um gesto desesperado de sobrevivência. Porque viver inteira, para muitas, já é um ato de guerra.

A arte, especialmente a música popular, tem sido um espaço de denúncia, lamento e resistência frente a essas violências. A confissão e o lamento, como em My Mistake e Camila, funcionam como espelhos que revelam feridas sociais e pessoais, convidando à empatia e à reflexão crítica. A arte, assim, não apenas registra, mas pode ser agente de transformação social e cultural.

É nesse ponto que se impõe a necessidade de um deslocamento ético: a dor não justifica a violência. A frustração, por maior que seja, não dá licença para destruir o outro. A verdadeira coragem não está em reagir, mas em conter. Não em punir, mas em elaborar.A maior coragem talvez seja essa: suportar o peso dos sentimentos da derrota, da perda, do amor rejeitado — mas seguir livre.

Não matar por fora e, sobretudo, não matar por dentro. Porque essa é a pior morte: aquela que damos a nós mesmos quando deixamos que a dor nos endureça, nos feche, nos destrua em silêncio.

Como diz um provérbio iorubá: “aquele que segura sua raiva é mais forte que o guerreiro que vence cem batalhas.” A bravura verdadeira é interior. Ela não se revela pela força da resposta, mas pela grandeza de quem, mesmo dilacerado, escolhe não dilacerar o outro. A liberdade mais profunda não consiste em não sofrer, mas em não fazer do sofrimento um altar para justificar a violência. Ser livre é atravessar a dor com inteireza, sem transformá-la em culpa projetada. É recusar-se a repetir o ciclo de feridas mal curadas.

O mito grego de Orfeu e Eurídice narra a descida desesperada de um homem ao submundo para resgatar a amada morta. Mas, ao romper a única condição imposta — não olhar para trás — ele a perde para sempre. A tragédia não está no amor, mas na incapacidade de confiar, de esperar, de elaborar a perda. O amor que não aceita seus limites pode se tornar destrutivo — mesmo quando nasce de um desejo legítimo.

É necessário reconhecer que há sempre escolhas. Da mais fácil — que é explodir, culpar, destruir — à mais difícil, que é aceitar o fim, aceitar que o outro não nos pertence, aceitar até mesmo que talvez nunca nos tenha amado. Isso dói. Mas é nessa dor que mora a possibilidade de liberdade. A coragem maior não está em matar, mas em continuar humano — mesmo ferido.

Mesmo quando não há morte física, há formas de matar simbolicamente: quando se silencia, se humilha, se apaga o outro. A cultura da vingança e da possessividade ainda permeia muitas relações afetivas, e isso exige uma reconstrução coletiva: da afetividade, da escuta, da maturidade emocional.

O erro narrado em My Mistake não começa com o disparo de uma arma: começa muito antes, nas estruturas culturais que confundem amor com controle, nas tradições que ensinam que perder é inaceitável, e que o outro deve ser extensão da própria vontade. A masculinidade que mata não nasce do nada — ela é cultivada no silêncio, legitimada pela religião sem alma, normalizada por discursos que santificam a posse como amor.

O verdadeiro arrependimento, se quiser ser caminho de redenção, precisa romper com esse ciclo. Precisa transformar vergonha em escuta, dor em aprendizado, perda em liberdade. Porque é possível amar sem dominar, sofrer sem ferir, perder sem destruir. E é essa possibilidade — ainda rara, ainda revolucionária — que precisa ser aprendida, ensinada, cultivada.

Que My Mistake e Camila não sejam apenas memórias musicais — mas espelhos incômodos de uma cultura que precisa urgentemente escolher entre amar ou dominar, entre sentir ou endurecer, entre a coragem de perder e a covardia de matar.

Nota:  "Se você precisa gritar, controlar ou ferir, isso não é amor. É dor disfarçada. É hora de parar, olhar pra dentro e pedir ajuda — a psicólogos, a amigos de confiança. E, se for preciso, denuncie. Antes que  se machuque mais  e machuque quem você ama."

Amar não dever doer. E, quando dói, é hora de cuidar e se preciso pedir ajuda."

Um breve olhar sobre Mateus 11,20-24


 "Ai de ti, Cafarnaum": uma leitura profética e integral de Mateus 11,20-24 
O Texto  da terça-feira  da 15ª semana do Tempo Comum  no  trás  um dos  momentos no Evangelho em que o tom muda. O doce pastor se torna profeta inflamado. A ternura dá lugar ao juízo. O silêncio se rompe num grito de lamento. Jesus, o mesmo que abraçou crianças, curou leprosos e perdoou adúlteras, ergue agora sua voz contra cidades inteiras, não por terem pecado em ignorância, mas por terem rejeitado a luz quando esta brilhou diante dos seus olhos. Mateus 11,20-24 nos insere num desses momentos-limite, em que a Palavra feita carne confronta a resistência espiritual de um povo que viu muito, mas não se converteu. E o “ai de vós” que ecoa aqui não é uma ameaça punitiva, mas o choro profundo de um Deus rejeitado.

Jesus havia percorrido as cidades da Galileia anunciando o Reino de Deus com palavras e gestos. Em Corazim, Betsaida e Cafarnaum, ele não apenas falou: ele tocou feridas, curou paralisias, libertou mentes aprisionadas. Não pregou em abstrações, mas encarnou o Reino com sinais visíveis (cf. Mt 4,23-25; Lc 4,43). Essas cidades, situadas no entorno do mar da Galileia, formavam uma espécie de “triângulo do ministério” de Jesus. Corazim, a noroeste do lago, é lembrada nos Evangelhos apenas por essa censura, mas isso indica que ali ocorreram “muitas obras poderosas” que não estão todas registradas (cf. Jo 21,25). Betsaida, pátria de Pedro, André e Filipe (cf. Jo 1,44), viu curas impressionantes, como a do cego (cf. Mc 8,22-26), e foi palco de ensino e multiplicação de pães nas imediações (cf. Lc 9,10-17). Já Cafarnaum foi considerada "a cidade de Jesus" (cf. Mt 4,13), centro de sua atividade missionária, onde ele curou o paralítico (cf. Mc 2,1-12), o servo do centurião (cf. Mt 8,5-13), a sogra de Pedro (cf. Mt 8,14-15), e onde ensinou com autoridade nas sinagogas (cf. Mc 1,21-28).

No entanto, aquelas cidades não se moveram. Não houve metanoia, aquela virada radical do coração que caracteriza quem foi alcançado pela verdade (cf. Rm 12,2). A mensagem não encontrou solo fértil (cf. Mt 13,1-9.18-23). E o silêncio da resposta é, para Jesus, mais doloroso que o grito da oposição. A indiferença espiritual é, talvez, o pecado mais letal. Ela não rejeita frontalmente, mas banaliza, retarda, adia. É o "depois eu vejo", o "não é comigo", o "já estou salvo", que resiste à urgência da conversão. E, assim como no deserto o povo viu as maravilhas de Deus e ainda assim murmurou (cf. Ex 14–17; Nm 11–14; Sl 95,8-11), também ali, na Galileia, o velho padrão se repete: a graça é oferecida, mas não acolhida. Jesus, então, opera uma reviravolta na lógica religiosa do seu tempo. Ele declara que Tiro, Sidônia e Sodoma — cidades símbolos do pecado, do orgulho e da impiedade — teriam se convertido diante dos mesmos sinais. Tiro e Sidônia, cidades fenícias ao norte de Israel (atualmente no Líbano), historicamente foram aliadas e, ao mesmo tempo, opositoras espirituais de Israel (cf. Is 23; Ez 26–28). Em tempos proféticos, foram denunciadas por sua arrogância e mercantilismo (cf. Am 1,9-10; Zc 9,2-4), mas agora Jesus afirma que, caso tivessem recebido o mesmo testemunho da Galileia, teriam feito penitência com pano de saco e cinza (cf. Mt 11,21). Sodoma, ícone do juízo divino por causa de sua violência estrutural e inospitalidade (cf. Gn 19; Ez 16,49), é evocada aqui como símbolo escandaloso: até ela, diz Jesus, teria permanecido até hoje se tivesse visto o que Cafarnaum viu (cf. Mt 11,23-24).

Aqui, a pedagogia do escândalo entra em cena. É uma forma de abalar os pilares de uma religião autocomplacente. Jesus desconstrói o nacionalismo espiritual de Israel ao dizer que os estrangeiros — os “ímpios”, os “pagãos” — teriam mais sensibilidade espiritual do que os filhos da Aliança. É como se dissesse: “Vocês, que se consideram o centro da revelação, tornaram-se insensíveis à presença do próprio Deus.” A crítica de Jesus é dirigida aos que se acham salvos, mas não se deixam salvar; aos que se dizem da fé, mas não têm fé suficiente para mudar de vida (cf. Tg 2,14-26).

A teologia da responsabilidade que emerge aqui é profunda. Não basta ter acesso ao sagrado. Não basta ouvir pregações ou participar de liturgias. Não basta "ver" milagres. É preciso responder (cf. Mt 7,21-27). E essa resposta não é meramente emocional ou intelectual: é existencial. Jesus denuncia a fé que se tornou consumo, a religião que se transformou em espetáculo (cf. Mt 23,5-7). O povo queria sinais, mas não queria conversão. Queriam benefícios, mas não cruz (cf. Mt 16,24-25). Milagres, sim; mudança de mentalidade, não. Essa atitude está viva hoje — e talvez mais difundida do que nunca. No cristianismo do mercado, a fé virou produto. Vende-se bênçãos, promessas, vitórias. O púlpito se tornou vitrine, e o altar, balcão de negociação. A graça, que é dom (cf. Ef 2,8), é tratada como moeda. Mas o Evangelho não é barganha, é chamada à entrega. E o milagre, para quem vê com os olhos da fé, não é o fim, mas o meio: meio de conversão, de libertação, de ruptura com o pecado e com os sistemas que o sustentam (cf. Is 58,6-7; Lc 4,18-19).

Neste texto, a antropologia bíblica se encontra com a psicologia contemporânea: o ser humano é capaz de negar a verdade que vê (cf. Rm 1,18-23), de racionalizar a presença de Deus para não precisar mudar, de se esconder atrás de rituais para evitar o confronto com a Palavra (cf. Is 1,11-17; Mt 23,23). A resistência à graça é real. E ela tem causas sociais, históricas, políticas e espirituais. Jesus enfrentou não apenas corações individuais endurecidos, mas também estruturas religiosas petrificadas, poderes locais cúmplices da dominação romana, discursos religiosos aliados ao poder excludente (cf. Mt 21,13; Jo 11,48). A Galileia não era apenas um cenário bucólico; era também um espaço tenso, de exploração, de controle religioso sobre os pobres. E não por acaso, Cafarnaum, que se achava "elevada até o céu", será “precipitada ao inferno” (Mt 11,23) — imagem da queda de toda arrogância que resiste à verdade (cf. Is 14,12-15; Lc 10,15).

A crítica de Jesus ressoa como denúncia contra a teologia do domínio, que sacraliza o poder e o autoritarismo, que unge reis e fecha os olhos aos crucificados de hoje (cf. Lc 1,52-53; Mt 23,13). É também crítica à teologia da prosperidade, que reduz a relação com Deus a um investimento lucrativo (cf. Mt 6,24; 1Tm 6,5-10). E à teologia do individualismo, que transforma a salvação em projeto pessoal e ignora os corpos feridos do coletivo (cf. Mt 25,31-46). Ao contrário, o Evangelho exige conversão comunitária, transformação social, compromisso com a justiça (cf. Is 58,1-10; At 2,42-47). Por isso, Jesus não se dirige aqui a indivíduos isolados, mas a cidades inteiras. A dimensão coletiva do pecado e da salvação está presente. Uma sociedade que vê milagres e não se converte, que escuta profetas e não se arrepende, que testemunha a presença do Cristo e ainda assim mantém os pobres excluídos, os doentes sem cuidado, os estrangeiros marginalizados, é uma sociedade que atrai sobre si o juízo do Reino (cf. Is 10,1-3; Lc 19,41-44).

Essa denúncia é válida para hoje. Somos Cafarnaum quando buscamos conforto espiritual sem compromisso ético. Somos Betsaida quando cultivamos uma espiritualidade estética, mas vazia. Somos Corazim quando substituímos o seguimento radical de Jesus pela idolatria de pastores-celebridade ou pelo legalismo farisaico travestido de ortodoxia (cf. Mt 15,8-9). E somos tudo isso quando confundimos o Reino de Deus com o sucesso institucional da Igreja. Porque o Evangelho nos lembra que é possível estar perto de Jesus e, ainda assim, resistir ao seu chamado (cf. Lc 22,47-48). Como Judas. Como Pedro antes do galo cantar. Como tantos de nós quando escolhemos o caminho da conveniência ao invés da cruz. Jesus nos mostra que a pior cegueira é a de quem se recusa a ver (cf. Jo 9,39-41). E a maior tragédia espiritual é a de quem banaliza a presença de Deus. Ele nos ensina que o juízo não é mero castigo externo, mas consequência do fechamento interior (cf. Rm 2,5-6). Quando recusamos a luz, nos entregamos às trevas (cf. Jo 3,19-20). Quando resistimos à graça, nos afundamos em nossas próprias ilusões. A tragédia de Cafarnaum não foi a falta de sinais, mas a insensibilidade diante deles. E o mesmo pode acontecer conosco.

É urgente uma conversão não apenas pessoal, mas eclesial, cultural, estrutural. Um arrependimento que vá além da culpa e se traduza em mudança de lógica, em nova forma de viver, em ruptura com sistemas de opressão (cf. Lc 3,10-14; Mt 5–7). A Igreja que não se converte, se corrompe (cf. Ap 2–3). O discípulo que não muda, se endurece. E a espiritualidade que não se compromete com a vida concreta do povo é só ideologia religiosa com verniz bíblico. Por isso, a Palavra de Jesus continua ecoando: “Ai de ti!” Não como maldição, mas como lamento. Como quem ainda espera por nossa resposta.

Ainda há tempo. A graça continua sendo oferecida (cf. 2Cor 6,1-2). Os sinais continuam acontecendo. O Reino está no meio de nós (cf. Lc 17,21). Mas será que o reconheceremos? Ou permaneceremos como as cidades do Evangelho: imóveis, confortáveis, imunes à urgência do Deus que nos chama ao novo?

O Evangelho de hoje não nos deixa neutros. Ou nos convertemos, ou repetiremos a história das cidades que viram tudo e não mudaram nada.

“Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas” (Ap 2,7). E que, ao ouvir, respondamos com a vida, com a entrega, com a justiça, com o amor. Porque, onde há arrependimento, ainda há esperança. E onde há esperança, o Reino pode nascer de novo entre nós.



DNonato - Teólogo do Cotidiano 


domingo, 13 de julho de 2025

A Face Oculta do Brasil: Golpismo, Tarifaço e o Comunismo Inventado


A música “Brasil”, de Cazuza, lançada em 1988 no calor da redemocratização, não é apenas um grito artístico, mas um chamado profético que continua a ecoar com a mesma urgência nos dias de hoje. “Brasil, mostra tua cara / Quero ver quem paga pra gente ficar assim” — esse verso é uma denúncia direta contra uma elite que mantém o país em uma festa pobre, onde a miséria e a exclusão social são convidadas não admitidas. Um país que se sustenta no cinismo, no medo e na manipulação da fé para perpetuar privilégios.

Essa denúncia ganha maior sentido quando olhamos para o chamado “tarifaço” de Donald Trump, que, a partir de 1º de agosto de 2025, impõe uma tarifa de 50% sobre todos os produtos brasileiros exportados para os Estados Unidos. Essa medida, anunciada com a clara motivação de defender Jair Bolsonaro, acusado de tentativa de golpe, é uma ameaça direta à economia brasileira e à soberania nacional. Trump, em sua carta pública no X e em declarações recentes, deixou explícito que essa escalada tarifária serve para pressionar o governo Lula e proteger seus aliados políticos no Brasil.

O impacto econômico já é sentido na inflação dos preços básicos: a cesta básica aumentou em 15% nos últimos seis meses, o gás de cozinha subiu 25% e a energia elétrica 18%, elevando o custo de vida e aprofundando a pobreza das camadas mais vulneráveis. Esse “tarifaço” lembra o verso de Cazuza: “Brasil, mostra tua cara”. A cara que se mostra é a de um país vulnerável, exposto às chantagens internacionais e ao jogo político sujo que sacrifica a população para manter privilégios. É a face de um Brasil cuja economia depende da exportação, mas que é punido por sua resistência democrática. Enquanto isso, Bolsonaro e sua base celebram um patriotismo de fachada, incapaz de proteger o povo e que apenas reproduz o ciclo da exclusão e do sofrimento.

Essa mesma lógica do “nacionalismo” falacioso e protecionista foi importada para o Brasil pelo bolsonarismo, que com um discurso de “Brasil acima de tudo” promoveu um “tarifaço social” que atingiu brutalmente a população mais vulnerável: alta de preços no gás, na energia e nos alimentos, enquanto desmontava o Estado e entregava os setores estratégicos ao capital especulativo.

O bolsonarismo revelou-se uma aliança perversa entre o agronegócio predatório, milícias digitais, setores golpistas e lideranças religiosas fundamentalistas, que instrumentalizaram a fé para legitimar o autoritarismo e o ódio. Essa aliança não é um mero acidente: é o projeto consciente de uma teocracia autoritária, onde o moralismo hipócrita se transforma em ferramenta de dominação. O patriotismo, que deveria ser amor ao povo e à justiça, virou máscara para a necropolítica — política da morte que silencia diante da fome, da destruição da Amazônia e da violência contra os jovens negros e pobres. 

Aqui entra a crítica bíblica profunda, que denuncia a hipocrisia do falso culto: Isaías alerta com veemência que Deus não quer “jejum em que o homem se aflige, inclina a cabeça como junco e se deita sobre cilícios e cinzas” se não vier acompanhado da justiça social, da defesa dos oprimidos e da promoção do direito (Isaías 58). Amós condena os que “pisam os pobres no pó da terra” e “arruinam o destino dos humildes” enquanto entoam louvores vazios (Amós 5). Jesus confrontou duramente os fariseus, denunciando sua religiosidade hipócrita que “fecham o reino dos céus diante dos homens” e vivem a “explorar os indefesos” (Mateus 23). Essa tradição profética é a base para entender a rejeição da religião vazia e do moralismo instrumentalizado pelo bolsonarismo.

A tentativa explícita de golpe em 2022 escancarou o caráter golpista desse projeto. A existência comprovada da Abin paralela — um órgão clandestino usado para perseguir adversários políticos e manipular informações — demonstra o grau de aparelhamento e subversão institucional. Isso ocorreu com a cumplicidade de setores militares, empresariais e religiosos, que apoiaram a tentativa de destruir a democracia brasileira e impor um regime autoritário disfarçado de cristianismo. Mais recentemente, na primeira semana de julho de 2025, o ex-presidente dos Estados Unidos Donald Trump publicou uma carta em sua conta no X (antigo Twitter) em defesa explícita de Jair Bolsonaro, atacando o governo Lula e questionando sua legitimidade. Essa manifestação pública internacionaliza o golpismo brasileiro, revelando que o bolsonarismo não é um fenômeno isolado, mas parte de uma rede global de extrema-direita que busca minar democracias e impulsionar agendas autoritárias em vários países. Essa aliança internacional fortalece os setores que tentam manter Bolsonaro relevante e desestabilizar o Brasil democraticamente eleito.

É preciso esclarecer o que é o comunismo histórico e o que é o “comunismo da mente louca” vendido pela extrema direita. O comunismo real nasceu da crítica racional à exploração capitalista e propôs a construção de uma sociedade sem classes, fundamentada na justiça social. Apesar dos erros históricos de regimes autoritários, foi um projeto político concreto e teorizado. Já o comunismo da extrema direita é uma invenção delirante, que mistura qualquer forma de contestação ou luta por direitos com um inimigo imaginário. Basta discordar de Bolsonaro para ser tachado de comunista — como ocorreu com a Rede Globo, Sérgio Moro, Alexandre Frota e tantos outros.

Esse rótulo serve para criminalizar o pensamento crítico, sufocar o debate e justificar perseguições políticas. É o novo inquisidor digital e real, que ataca a educação pública, a ciência, a cultura e a solidariedade. É a versão tropical do fascismo, que usa a fé como arma para espalhar o ódio.

A festa pobre que Cazuza denunciou segue presente, mas agora institucionalizada como política de Estado. O bolsonarismo transformou o país em palco para um espetáculo de morte, intolerância e desinformação. A Constituição é rasgada, a democracia ameaçada, e a fé usada como cortina de fumaça.

A crítica ao clericalismo não pode ser esquecida. O bolsonarismo soube articular com setores religiosos — pastores, bispos e líderes — que instrumentalizaram a fé para vender prosperidade vazia, legitimar a violência e alimentar o ódio contra minorias. Essa religião de fachada desfigura o Evangelho libertador, traindo a missão profética de justiça e paz. 

Mas não há profecia sem esperança. O Evangelho nos chama a denunciar os falsos profetas, a enfrentar os poderes opressores e a anunciar a justiça do Reino de Deus. Como Jesus que confrontou os fariseus hipócritas, somos convocados a romper com as falsas religiões que legitimam a opressão.

A resistência existe e é plural: movimentos sociais, indígenas, jovens das periferias, artistas, intelectuais e tantas vozes que negam o silêncio e lutam por um Brasil livre. Eles são a verdadeira face do país que Cazuza desejava — um Brasil que conhece a verdade e, por isso, se liberta.

Não podemos esquecer que a liberdade e a democracia exigem luta diária. É tempo de resistência ativa, de engajamento na defesa dos direitos, da educação pública, da justiça social e da solidariedade. A fé autêntica se traduz em compromisso com a vida plena para todos.

Fechamos com as palavras fortes do presidente Lula, ditas em março de 2025 durante a inauguração do Hospital Universitário do Ceará:

“Esse país não tem dono. O dono do país é o povo brasileiro. E quanto melhor estiver o povo, melhor estará o Brasil.”

Que essa verdade nos inspire a continuar a luta contra o bolsonarismo, o fascismo e a religião vazia, em defesa de um Brasil justo, solidário e soberano.

DNonato – Teólogo do Cotidiano