Jesus havia percorrido as cidades da Galileia anunciando o Reino de Deus com palavras e gestos. Em Corazim, Betsaida e Cafarnaum, ele não apenas falou: ele tocou feridas, curou paralisias, libertou mentes aprisionadas. Não pregou em abstrações, mas encarnou o Reino com sinais visíveis (cf. Mt 4,23-25; Lc 4,43). Essas cidades, situadas no entorno do mar da Galileia, formavam uma espécie de “triângulo do ministério” de Jesus. Corazim, a noroeste do lago, é lembrada nos Evangelhos apenas por essa censura, mas isso indica que ali ocorreram “muitas obras poderosas” que não estão todas registradas (cf. Jo 21,25). Betsaida, pátria de Pedro, André e Filipe (cf. Jo 1,44), viu curas impressionantes, como a do cego (cf. Mc 8,22-26), e foi palco de ensino e multiplicação de pães nas imediações (cf. Lc 9,10-17). Já Cafarnaum foi considerada "a cidade de Jesus" (cf. Mt 4,13), centro de sua atividade missionária, onde ele curou o paralítico (cf. Mc 2,1-12), o servo do centurião (cf. Mt 8,5-13), a sogra de Pedro (cf. Mt 8,14-15), e onde ensinou com autoridade nas sinagogas (cf. Mc 1,21-28).
No entanto, aquelas cidades não se moveram. Não houve metanoia, aquela virada radical do coração que caracteriza quem foi alcançado pela verdade (cf. Rm 12,2). A mensagem não encontrou solo fértil (cf. Mt 13,1-9.18-23). E o silêncio da resposta é, para Jesus, mais doloroso que o grito da oposição. A indiferença espiritual é, talvez, o pecado mais letal. Ela não rejeita frontalmente, mas banaliza, retarda, adia. É o "depois eu vejo", o "não é comigo", o "já estou salvo", que resiste à urgência da conversão. E, assim como no deserto o povo viu as maravilhas de Deus e ainda assim murmurou (cf. Ex 14–17; Nm 11–14; Sl 95,8-11), também ali, na Galileia, o velho padrão se repete: a graça é oferecida, mas não acolhida. Jesus, então, opera uma reviravolta na lógica religiosa do seu tempo. Ele declara que Tiro, Sidônia e Sodoma — cidades símbolos do pecado, do orgulho e da impiedade — teriam se convertido diante dos mesmos sinais. Tiro e Sidônia, cidades fenícias ao norte de Israel (atualmente no Líbano), historicamente foram aliadas e, ao mesmo tempo, opositoras espirituais de Israel (cf. Is 23; Ez 26–28). Em tempos proféticos, foram denunciadas por sua arrogância e mercantilismo (cf. Am 1,9-10; Zc 9,2-4), mas agora Jesus afirma que, caso tivessem recebido o mesmo testemunho da Galileia, teriam feito penitência com pano de saco e cinza (cf. Mt 11,21). Sodoma, ícone do juízo divino por causa de sua violência estrutural e inospitalidade (cf. Gn 19; Ez 16,49), é evocada aqui como símbolo escandaloso: até ela, diz Jesus, teria permanecido até hoje se tivesse visto o que Cafarnaum viu (cf. Mt 11,23-24).
Aqui, a pedagogia do escândalo entra em cena. É uma forma de abalar os pilares de uma religião autocomplacente. Jesus desconstrói o nacionalismo espiritual de Israel ao dizer que os estrangeiros — os “ímpios”, os “pagãos” — teriam mais sensibilidade espiritual do que os filhos da Aliança. É como se dissesse: “Vocês, que se consideram o centro da revelação, tornaram-se insensíveis à presença do próprio Deus.” A crítica de Jesus é dirigida aos que se acham salvos, mas não se deixam salvar; aos que se dizem da fé, mas não têm fé suficiente para mudar de vida (cf. Tg 2,14-26).
A teologia da responsabilidade que emerge aqui é profunda. Não basta ter acesso ao sagrado. Não basta ouvir pregações ou participar de liturgias. Não basta "ver" milagres. É preciso responder (cf. Mt 7,21-27). E essa resposta não é meramente emocional ou intelectual: é existencial. Jesus denuncia a fé que se tornou consumo, a religião que se transformou em espetáculo (cf. Mt 23,5-7). O povo queria sinais, mas não queria conversão. Queriam benefícios, mas não cruz (cf. Mt 16,24-25). Milagres, sim; mudança de mentalidade, não. Essa atitude está viva hoje — e talvez mais difundida do que nunca. No cristianismo do mercado, a fé virou produto. Vende-se bênçãos, promessas, vitórias. O púlpito se tornou vitrine, e o altar, balcão de negociação. A graça, que é dom (cf. Ef 2,8), é tratada como moeda. Mas o Evangelho não é barganha, é chamada à entrega. E o milagre, para quem vê com os olhos da fé, não é o fim, mas o meio: meio de conversão, de libertação, de ruptura com o pecado e com os sistemas que o sustentam (cf. Is 58,6-7; Lc 4,18-19).
Neste texto, a antropologia bíblica se encontra com a psicologia contemporânea: o ser humano é capaz de negar a verdade que vê (cf. Rm 1,18-23), de racionalizar a presença de Deus para não precisar mudar, de se esconder atrás de rituais para evitar o confronto com a Palavra (cf. Is 1,11-17; Mt 23,23). A resistência à graça é real. E ela tem causas sociais, históricas, políticas e espirituais. Jesus enfrentou não apenas corações individuais endurecidos, mas também estruturas religiosas petrificadas, poderes locais cúmplices da dominação romana, discursos religiosos aliados ao poder excludente (cf. Mt 21,13; Jo 11,48). A Galileia não era apenas um cenário bucólico; era também um espaço tenso, de exploração, de controle religioso sobre os pobres. E não por acaso, Cafarnaum, que se achava "elevada até o céu", será “precipitada ao inferno” (Mt 11,23) — imagem da queda de toda arrogância que resiste à verdade (cf. Is 14,12-15; Lc 10,15).
A crítica de Jesus ressoa como denúncia contra a teologia do domínio, que sacraliza o poder e o autoritarismo, que unge reis e fecha os olhos aos crucificados de hoje (cf. Lc 1,52-53; Mt 23,13). É também crítica à teologia da prosperidade, que reduz a relação com Deus a um investimento lucrativo (cf. Mt 6,24; 1Tm 6,5-10). E à teologia do individualismo, que transforma a salvação em projeto pessoal e ignora os corpos feridos do coletivo (cf. Mt 25,31-46). Ao contrário, o Evangelho exige conversão comunitária, transformação social, compromisso com a justiça (cf. Is 58,1-10; At 2,42-47). Por isso, Jesus não se dirige aqui a indivíduos isolados, mas a cidades inteiras. A dimensão coletiva do pecado e da salvação está presente. Uma sociedade que vê milagres e não se converte, que escuta profetas e não se arrepende, que testemunha a presença do Cristo e ainda assim mantém os pobres excluídos, os doentes sem cuidado, os estrangeiros marginalizados, é uma sociedade que atrai sobre si o juízo do Reino (cf. Is 10,1-3; Lc 19,41-44).
Essa denúncia é válida para hoje. Somos Cafarnaum quando buscamos conforto espiritual sem compromisso ético. Somos Betsaida quando cultivamos uma espiritualidade estética, mas vazia. Somos Corazim quando substituímos o seguimento radical de Jesus pela idolatria de pastores-celebridade ou pelo legalismo farisaico travestido de ortodoxia (cf. Mt 15,8-9). E somos tudo isso quando confundimos o Reino de Deus com o sucesso institucional da Igreja. Porque o Evangelho nos lembra que é possível estar perto de Jesus e, ainda assim, resistir ao seu chamado (cf. Lc 22,47-48). Como Judas. Como Pedro antes do galo cantar. Como tantos de nós quando escolhemos o caminho da conveniência ao invés da cruz. Jesus nos mostra que a pior cegueira é a de quem se recusa a ver (cf. Jo 9,39-41). E a maior tragédia espiritual é a de quem banaliza a presença de Deus. Ele nos ensina que o juízo não é mero castigo externo, mas consequência do fechamento interior (cf. Rm 2,5-6). Quando recusamos a luz, nos entregamos às trevas (cf. Jo 3,19-20). Quando resistimos à graça, nos afundamos em nossas próprias ilusões. A tragédia de Cafarnaum não foi a falta de sinais, mas a insensibilidade diante deles. E o mesmo pode acontecer conosco.
É urgente uma conversão não apenas pessoal, mas eclesial, cultural, estrutural. Um arrependimento que vá além da culpa e se traduza em mudança de lógica, em nova forma de viver, em ruptura com sistemas de opressão (cf. Lc 3,10-14; Mt 5–7). A Igreja que não se converte, se corrompe (cf. Ap 2–3). O discípulo que não muda, se endurece. E a espiritualidade que não se compromete com a vida concreta do povo é só ideologia religiosa com verniz bíblico. Por isso, a Palavra de Jesus continua ecoando: “Ai de ti!” Não como maldição, mas como lamento. Como quem ainda espera por nossa resposta.
Ainda há tempo. A graça continua sendo oferecida (cf. 2Cor 6,1-2). Os sinais continuam acontecendo. O Reino está no meio de nós (cf. Lc 17,21). Mas será que o reconheceremos? Ou permaneceremos como as cidades do Evangelho: imóveis, confortáveis, imunes à urgência do Deus que nos chama ao novo?
O Evangelho de hoje não nos deixa neutros. Ou nos convertemos, ou repetiremos a história das cidades que viram tudo e não mudaram nada.
“Quem tem ouvidos, ouça o que o Espírito diz às igrejas” (Ap 2,7). E que, ao ouvir, respondamos com a vida, com a entrega, com a justiça, com o amor. Porque, onde há arrependimento, ainda há esperança. E onde há esperança, o Reino pode nascer de novo entre nós.
DNonato - Teólogo do Cotidiano
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