quarta-feira, 9 de julho de 2025

Um breve olhar sobre Mateus 10, 7-15

 

“É Preciso Continuar: missão, denúncia e fidelidade no seguimento de Jesus”

O capítulo 10 do Evangelho segundo Mateus é um dos momentos de virada na narrativa do evangelista. Jesus, que até aqui curava, pregava e denunciava pessoalmente, passa a delegar essa tarefa a outros, chamando os Doze e os enviando. Esse envio não é meramente funcional, mas profundamente teológico e pedagógico. Não é sobre delegação de tarefas, mas sobre extensão da presença do Reino no mundo através de corpos concretos, frágeis, humanos, peregrinos. A missão cristã, nesse contexto, não nasce de uma estratégia, mas de uma compaixão visceral. No capítulo anterior, Jesus vê as multidões exaustas e abatidas (Mt 9,36), e move-se de splagchnízomai, verbo que expressa não um sentimento superficial, mas um estremecimento nas entranhas. Da compaixão nasce a missão. Isso já denuncia toda espiritualidade que vê o mundo como ameaça, que se retrai, que se tranca em sacristias ou se refugia em redes sociais buscando apenas conforto ou confirmação ideológica. O Evangelho lança para fora. Envia. Impulsiona. E envia para dentro do mundo real, não para bolhas de consenso nem para palcos de autoafirmação.

O anúncio “O Reino dos Céus está próximo” (Mt 10,7) não é mera previsão escatológica, mas afirmação de um tempo novo que irrompe no hoje. Essa proximidade do Reino não é territorial nem cronológica, mas existencial e política. O Reino não é um lugar, mas uma presença, uma lógica nova, uma inversão dos poderes e dos valores. O Reino é o contrário do império, é o oposto da dominação. Em Marcos 1,15, Jesus diz: “O tempo se completou e o Reino de Deus está próximo. Convertei-vos e crede no Evangelho.” Já em Lucas 17,21, afirma que “o Reino de Deus está no meio de vós.” Portanto, a missão é tornar esse Reino visível no tecido da vida. A missão cristã é o gesto de tornar o invisível do Reino em carne, gesto, justiça, pão, afeto, denúncia e transformação. Não é um anúncio abstrato, mas encarnado na vida concreta das pessoas. Por isso, não há missão sem política, sem ética, sem cuidado, sem pedagogia.

A ordem para não levar ouro, prata, alforje, duas túnicas, sandálias ou bastão (Mt 10,9-10) é um gesto simbólico de despojamento, mas também de denúncia. Denúncia de uma religiosidade acumuladora, que transforma o anúncio em espetáculo, a fé em produto e os pobres em plateia. Esse Evangelho não cabe nos templos suntuosos, nem nos programas religiosos que vendem promessas e milagres com estética de marketing. A pobreza evangélica não é miséria, mas liberdade. É a condição para que o anúncio não seja confundido com autoajuda, com coaching espiritual ou com propaganda ideológica. E, no entanto, vemos hoje igrejas digitais disputando mercado de almas, influencers da fé negociando sua “marca pessoal”, comunidades de culto-show que se especializam em oferecer experiências emocionais intensas mas desconectadas da vida real. A missão cristã é radicalmente contrária a essa lógica. Não se trata de “bombar” no Instagram ou no TikTok com frases piedosas, mas de mergulhar na realidade sofrida do povo e aí tornar presente o Reino que liberta, cura e transforma. Como afirmou o Papa Francisco em sua Evangelii Gaudium, “prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas a uma Igreja enferma pelo fechamento e pela comodidade de se agarrar às próprias seguranças” (EG 49).

O envio missionário também é um antídoto contra o clericalismo. Jesus envia os Doze, mas depois também os 72 (Lc 10,1-12), num gesto que quebra toda hierarquização eclesiástica. O envio é para todos. O batismo é a fonte da missão. E essa missão é para todos os tempos, em todos os lugares, especialmente os mais feridos e esquecidos. O clericalismo transforma a missão em monopólio eclesiástico. Reduz o Evangelho à gestão dos sacramentos, como se a salvação fosse um serviço a ser distribuído por funcionários do sagrado. É essa lógica que transforma comunidades vivas em agências religiosas e presbíteros em burocratas. Contra isso, o Evangelho recorda que o envio é feito a partir da proximidade, da vulnerabilidade, da compaixão e do risco. Os enviados são frágeis, mas portadores de uma força que não vem deles. São como ovelhas no meio de lobos (Mt 10,16), porque o Evangelho verdadeiro incomoda os poderes deste mundo.

A fé individualista, hoje amplamente difundida, também é frontalmente desmentida por esse texto. Muitos cristãos querem viver uma fé “personalizada”, com devoções que sirvam aos seus afetos e necessidades, mas sem compromisso com a comunidade, com os pobres, com os conflitos do mundo. É uma fé gourmet, feita sob medida, sem exigência de conversão. Mas Jesus envia em grupo, para casas, para cidades, para relações. A missão é interpessoal, comunitária, encarnada. Uma fé que não se transforma em compromisso histórico é pura evasão espiritual. E ainda pior: é autoengano. Não são poucos os que querem anunciar o Evangelho “para os confins da Terra” mas não olham o morador de rua em sua calçada, nem escutam o grito dos famintos da sua cidade, nem se deixam afetar pela dor das mães negras que enterram seus filhos vítimas do genocídio racista. Missões internacionais são bonitas nas redes sociais, mas o Reino começa no chão que pisamos. Não há missão verdadeira que não comece pelo território, pela vizinhança, pelo cotidiano. Como dizia Dom Adriano Hipólito, “o céu começa aqui”. E o aqui é o agora, com suas contradições, suas lutas, seus corpos feridos.

Dom Adriano Hipólito, terceiro bispo de Nova Iguaçu, foi uma dessas testemunhas encarnadas do Evangelho do Reino. Durante os anos de chumbo da ditadura civil-militar no Brasil, sua voz profética ecoou em favor dos pobres, dos trabalhadores, dos perseguidos, dos que viviam nas favelas e nos cortiços esquecidos pelas estruturas do poder. Seu pastoreio não era de gabinete, mas de chão, de periferia, de denúncia. Essa fidelidade ao Reino custou caro: Dom Adriano foi sequestrado em 1976 por militares, espancado e deixado nu em uma estrada, após se recusar a deixar a diocese por pressão do regime. Sua catedral, símbolo da fé encarnada no povo, foi alvo de um atentado a bomba — expressão cruel do quanto o anúncio do Reino incomoda as estruturas de morte. Sua vida é uma leitura viva de Mateus 10: enviado despojado, exposto ao risco, fiel até o fim à Palavra de Jesus. Nele se cumpre o que o Documento 105 da CNBB nos recorda: “A missão é anúncio profético do Reino de Deus, que transforma a história” (Doc. 105, n. 23), e por isso, inevitavelmente, confronta as forças de opressão, inclusive quando essas se disfarçam de religião ou de segurança institucional.

Nesse sentido, sua figura ressoa como eco necessário da reflexão que ontem publicamos sobre Mateus 10,1-7, onde já se indicava que o início da missão não se dá na segurança do templo nem no conforto da neutralidade, mas no movimento de Jesus que vê, sente compaixão e envia. Lá, destacamos que a missão não nasce do poder, mas da sensibilidade. Aqui, vemos que essa sensibilidade, quando levada às últimas consequências, gera perseguição, mas também fidelidade. Ontem, lembrávamos que os primeiros enviados são discípulos que oram e se comprometem; hoje, vemos que esse compromisso se torna um corpo a corpo com a história. O envio é o mesmo, a Palavra é a mesma, o risco é real — e o Reino é urgente. É preciso continuar.

A missão, portanto, é inseparável da denúncia profética. Jesus não manda seus discípulos bajular autoridades, nem adaptar o anúncio à expectativa do mercado religioso. Ele os manda com autoridade, mas sem garantias. Com a força da Palavra, mas com a vulnerabilidade do despojamento. Isso confronta diretamente a teologia da prosperidade, que prega um Evangelho de sucesso, poder e vitória, quando o próprio Cristo viveu a cruz, a rejeição, a pobreza e a perseguição. O Evangelho da cruz não é derrota, mas denúncia e fidelidade. Não é derrota porque o Ressuscitado é aquele que passou pela morte sem pactuar com o sistema de morte. Não é vitória conforme o mundo entende. É triunfo do amor que não cede ao ódio, da justiça que não se curva à violência, da fé que não serve ao império.

Jesus não promete aceitação, mas resistência. O gesto de sacudir o pó dos pés (Mt 10,14) é símbolo dessa liberdade: a missão não é colonização, nem barganha. É anúncio gratuito. O pó sacudido é a recusa de uma religiosidade que se vende para ser aceita. Também hoje, muitas igrejas se calam sobre temas espinhosos para não desagradar seus financiadores, seus seguidores, suas bolhas ideológicas. O medo de perder curtidas, fiéis ou prestígio silencia o profetismo e promove um cristianismo domesticado, submisso às estruturas de poder — seja político, seja eclesial. Jesus não tolera isso. O Reino não pode ser usado para legitimar projetos autoritários, nacionalismos religiosos ou práticas excludentes. A extrema-direita que se traveste de cristã não é continuadora da missão de Cristo, mas de seus algozes. Jesus foi perseguido por denunciar as alianças entre religião e império. Não morreu por ser inofensivo, mas por ser perigoso para o sistema.

Diante disso, somos convocados a uma escolha clara. Ou somos cristãos do sistema, que adaptam o Evangelho às conveniências do mercado e da ideologia, ou somos discípulos do Reino, que aceitam ser rejeitados por fidelidade à Palavra. Não se pode servir a dois senhores (Mt 6,24). Ou se serve ao Reino com a radicalidade de quem deixa tudo e vai (Mc 10,28), ou se serve à manutenção de estruturas estéreis, templos vazios de vida e cheios de vaidades. O envio missionário, como nos mostra o Evangelho, é antes de tudo um êxodo pessoal e comunitário: sair de si mesmo, deixar a segurança do conhecido, atravessar desertos e ir ao encontro do outro, mesmo quando esse outro representa o confronto, a incompreensão ou a rejeição.

A missão não é uma opção entre muitas. É a essência da fé. E essa missão começa aqui, agora, com os pés empoeirados, as mãos vazias e o coração abrasado. O céu começa aqui, dizia Dom Adriano, e começa onde alguém tem a coragem de anunciar, com ternura e firmeza, que outro mundo é possível — e já começou em Jesus. É preciso continuar. Não se trata apenas de repetir fórmulas, mas de fazer ecoar a palavra que liberta: “O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres” (Lc 4,18). Esta mesma unção não é privilégio do Cristo histórico, mas missão confiada a cada batizado, como Pedro recordará: “Deus ungiu Jesus de Nazaré com o Espírito Santo e com poder, e Ele andou fazendo o bem e curando todos os que estavam dominados pelo diabo” (At 10,38). A missão cristã é, pois, fazer o bem, curar, libertar, denunciar, consolar, confrontar — não no abstrato, mas na carne viva do povo.

“Como invocarão aquele em quem não creram? E como crerão se não ouviram falar dele? E como ouvirão se não houver quem pregue?” (Rm 10,14). A pergunta de Paulo aos Romanos continua urgente hoje. Não podemos nos calar. Não podemos permanecer neutros diante das cruzes modernas, dos sepulcros caiados com aparência de piedade e cheios de podridão (Mt 23,27), das instituições que vendem indulgências eletrônicas em nome de um deus fabricado. A Palavra de Deus é “mais cortante que espada de dois gumes” (Hb 4,12), e quem a anuncia verdadeiramente, como nos lembra Jeremias, tem “um fogo ardente encerrado nos ossos” (Jr 20,9). Esse fogo arde, incomoda, inquieta — mas também ilumina e transforma.

É hora de reacender esse fogo, não com raiva, mas com coragem. Não com ódio, mas com lucidez. Não com palavras de efeito, mas com fidelidade. Não com entretenimento litúrgico, mas com amor que se traduz em justiça. Porque a vinha ainda está sendo explorada pelos violentos (Mt 21,33-46), mas o dono da vinha não está ausente. Porque o Reino ainda é como fermento na massa (Mt 13,33), pequeno, escondido, mas cheio de potência. E porque, apesar de tudo, “a Palavra de Deus não está algemada” (2Tm 2,9). Como os setenta e dois do Evangelho de Lucas 10,1-12.17-20 ,proclamado no 14ª domingo do tempo comum do  ano "C", como os doze de Mateus, como os mártires da história e os profetas de ontem e de hoje, somos chamados a ir, anunciar, libertar, denunciar e semear.

A colheita é grande, e os trabalhadores são poucos (Mt 9,37). Mas os que vão, mesmo com medo, mesmo em silêncio, mesmo chorando, voltarão trazendo os feixes (Sl 126,6). Porque aquele que começou em nós a boa obra, há de levá-la a termo (Fl 1,6). É preciso continuar.

DNonato - Teólogo do cotidiano 

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