domingo, 21 de setembro de 2025

Quando a Mentira Ataca a Arte: A Lei Rouanet, Trincheira da Democracia

Iniciamos esta reflexão movidos por indignação diante da manipulação política que se abate sobre a cultura brasileira. Durante a semana, circulou a notícia de que artistas como Caetano Veloso, Chico Buarque e Gilberto Gil teriam sido chamados a participar de atos contra a PEC da Blindagem e a proposta de anistia a políticos corruptos. Imediatamente, a extrema-direita começou a repetir seu mantra: “eles só participam porque estão cheios de dinheiro da Lei Rouanet”. O comentário, que circula como se fosse evidência incontestável, não passa de mais um capítulo da velha estratégia de demonização do artista no Brasil. Sob o pretexto de defender a moralidade pública, fabricou-se uma guerra cultural baseada em distorções e mentiras, transformando o ressentimento popular em arma ideológica e desviando a atenção das verdadeiras estruturas de injustiça que corroem o país.

Sociologicamente, vemos a aplicação de um mecanismo de fabricação de inimigos. Em vez de apontar para a concentração absurda de renda, para bilionários que drenam recursos sem prestar contas, ou para subsídios gigantescos dados a bancos e grandes empresas, cria-se um bode expiatório mais fácil de ser atacado: o artista. O discurso segue um roteiro simples: “enquanto você sofre, eles estão ganhando milhões do seu dinheiro”. Não importa que a Lei Rouanet não funcione assim, que exista um rígido processo de aprovação e prestação de contas, ou que a cultura seja um direito constitucional. O que importa é a eficácia simbólica da mentira, que mobiliza raiva e reforça o projeto político autoritário.

A ciência histórica desmonta com clareza essa narrativa. A Lei Rouanet foi criada em 1991 como mecanismo de fomento cultural baseado em renúncia fiscal. Parte do imposto devido por empresas pode ser destinado a projetos culturais previamente aprovados pelo Ministério da Cultura. Esse dinheiro não seria aplicado em saúde ou educação, como a extrema-direita insiste em repetir, mas já estava reservado dentro do orçamento cultural. Mais ainda: cada projeto precisa ser rigorosamente prestado em contas, com notas fiscais, relatórios e fiscalização. A alegação de que artistas recebem “cheques milionários” é uma fraude discursiva. Quando surgem irregularidades, há devolução de recursos e processos administrativos e criminais. A mentira da “mamata” não se sustenta diante do mínimo de honestidade histórica e documental.

Mas o problema não é a ignorância, e sim a manipulação. A extrema-direita sabe que mexer com a ideia de privilégio artístico gera impacto, porque toca em ressentimentos profundos de uma sociedade marcada pela desigualdade. O trabalhador que ganha pouco sente revolta quando lhe dizem que “o ator tal recebeu milhões do governo”. Ainda que seja falso, a revolta já foi ativada. Hannah Arendt alertava sobre o poder dos fatos fabricados: quando a mentira se repete e circula sem contestação suficiente, adquire consistência social. A verdade perde força diante da eficácia emocional da narrativa. O que se constrói não é debate, é guerra cultural.

A antropologia nos ajuda a perceber que, ao atacar a Lei Rouanet, não se ataca apenas artistas individuais, mas a própria ideia de cultura como direito coletivo. Cultura não é adorno supérfluo; é o tecido que sustenta a identidade dos povos. Foi a cultura que permitiu aos escravizados manter dignidade diante da violência, nos batuques, nas rezas, nos cantos. Foi a cultura que manteve povos indígenas resistindo ao genocídio, preservando língua, pintura e memória. Foi a cultura que alimentou o povo brasileiro em tempos de ditadura, com músicas e peças teatrais que desafiavam a censura e mantinham acesa a chama da esperança. Demonizar a cultura é tentar quebrar o espelho que reflete o rosto de um povo, impondo silêncio às vozes que sempre resistiram.

A filosofia crítica aprofunda esse discernimento. Walter Benjamin lembrava que todo fascismo se alimenta da estetização da política: transforma violência em espetáculo, cria narrativas sedutoras que escondem a barbárie. O discurso contra a Lei Rouanet cumpre esse papel: encena cruzada moral contra supostos abusos enquanto esconde a destruição da Amazônia, a entrega do patrimônio público e a concentração indecente de riquezas. É o truque da distração: aponta-se o dedo para o “artista mamateiro” para que não se veja o banqueiro intocado, o latifúndio isento, o político corrupto blindado. A moralidade é invocada para proteger a imoralidade estrutural.

Pierre Bourdieu nos ajuda a compreender outro aspecto central: a luta em torno da Lei Rouanet é luta pelo capital simbólico. A cultura sempre foi um campo disputado. Quando indígenas produzem cinema, quando quilombolas publicam livros, quando a periferia ocupa palcos, rompe-se o monopólio simbólico das elites. A extrema-direita teme essa democratização, porque ela traz consigo democratização política. Um povo que vê sua voz na arte começa a questionar as estruturas de poder. Por isso, a demonização da Rouanet não é apenas contra artistas famosos, mas contra toda forma de empoderamento cultural que ameaça o status quo.Historicamente, vemos esse padrão se repetir. O samba foi criminalizado no início do século XX como prática de vagabundos e desordeiros. Hoje é patrimônio cultural da humanidade. O teatro popular foi censurado em várias épocas, do Estado Novo à ditadura militar. Hoje é celebrado como resistência. O que hoje se tenta criminalizar será, amanhã, reconhecido como tesouro cultural. A história é irônica: os mesmos que hoje atacam a Lei Rouanet certamente se orgulharão, no futuro, de artistas que só puderam existir graças a ela.

É claro que a Lei Rouanet tem limitações. Há concentração regional de recursos, maior facilidade de grandes produtores em captar patrocínios que pequenos coletivos. Mas esses problemas pedem reforma, não destruição. O discurso da extrema-direita, no entanto, não propõe corrigir injustiças, mas aniquilar a política cultural. Isso mostra que não se trata de zelo pelo povo, mas de perseguição ideológica e projeto de poder.

Casos concretos revelam a perversidade. Artistas renomados tiveram nomes difamados em campanhas digitais, acusados de receber valores absurdos sem comprovação. Projetos educativos em comunidades periféricas foram ridicularizados em programas de televisão como se fossem desperdício de dinheiro. O resultado é intimidação de artistas, desmoralização da cultura, silenciamento de vozes críticas. Ao destruir a credibilidade da Rouanet, a extrema-direita mina a possibilidade de jovens pobres acessarem formação artística, de comunidades manterem centros culturais, de tradições populares encontrarem apoio. A mentira mata sonhos concretos.  Do ponto de vista da antropologia política, a demonização da Lei Rouanet revela o projeto de homogeneização cultural. O autoritarismo não tolera diversidade. Prefere uma cultura única, padronizada, que exalte a pátria de forma acrítica e celebre valores tradicionais sem questionamento. É a lógica da propaganda, não da arte. Mas a verdadeira cultura é plural, inquieta, crítica. É por isso que o ataque à Rouanet é também ataque à democracia: cultura viva é sempre espaço de questionamento e liberdade.

A Igreja, em sua tradição, nos lembra que a cultura é parte essencial da dignidade humana. O Concílio Vaticano II afirma na Gaudium et Spes que a cultura é bem comum e deve ser promovida em sua diversidade. A Evangelii Gaudium insiste que a cultura popular é lugar onde Deus se manifesta. A Fratelli Tutti reforça a necessidade de diálogo intercultural como caminho de fraternidade. Quando a extrema-direita demoniza a cultura, vai contra esse horizonte cristão, ainda que use a religião como fachada. O Deus da vida se manifesta nos tambores da periferia, nas pinturas indígenas, nas canções de protesto, nas danças de rua. Atacar a cultura é, de certo modo, atacar também a encarnação do Verbo, que assume nossa carne e nossa história.

A crítica profética precisa ser direta. O ataque à Lei Rouanet não é apenas erro de análise, é pecado social. É tentativa de calar o povo para manter o poder de poucos. É repetir a lógica denunciada pelos profetas bíblicos: “Ai dos que transformam o direito em veneno e a justiça em fel amargo” (Am 6,12). O que vemos hoje é a transformação da mentira em arma, do ódio em combustível, da ignorância em programa político. Contra isso, a profecia deve levantar sua voz: a cultura é vida, e a vida é dom de Deus. Defender a cultura é defender a dignidade do povo brasileiro contra o projeto de morte que a extrema-direita tenta impor.

Assim, a Lei Rouanet, longe de ser “mamata”, é sinal concreto de que o Estado reconhece a cultura como direito. É uma trincheira, ainda que imperfeita, contra a homogeneização autoritária. É um espaço de resistência, diversidade e esperança. E é por isso que ela incomoda tanto os que desejam o povo silenciado. Defender a cultura hoje é mais do que política pública; é ato profético, compromisso com a vida, recusa ao fascismo. A mentira sobre a Lei Rouanet pode circular com força, mas a verdade permanece: sem cultura, não há povo. E sem povo, não há democracia.

DNonato - Teólogo do Cotidiano 


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