A Porta, o Pastor e as Vozes que Matam
O versículo “Eu vim para que todos tenham vida, e a tenham em abundância” (Jo 10,10) é frequentemente citado por cristãos como um ideal de plenitude. Contudo, raramente se considera que essa afirmação está profundamente conectada ao capítulo anterior do Evangelho de João, onde Jesus cura um cego de nascença (Jo 9). O contexto é essencial: a cura do cego provoca a reação negativa das autoridades religiosas, que não conseguem enxergar o sinal de Deus naquele gesto de misericórdia. Aquele homem, marginalizado duas vezes – pela deficiência e pela exclusão religiosa – é acolhido por Jesus. Em contraposição, os líderes da sinagoga revelam sua cegueira espiritual.
É neste cenário que Jesus se apresenta como a Porta das ovelhas (Jo 10,7) e como o Bom Pastor (Jo 10,11). Ele afirma conhecer cada uma por seu nome (Jo 10,3), algo que denota intimidade, cuidado, e dignidade. A metáfora pastoral tem profundas raízes bíblicas: desde o Antigo Testamento, Deus é apresentado como pastor de Israel (cf. Sl 23; Ez 34). No entanto, os pastores humanos, muitas vezes, falharam – e o profeta Ezequiel denuncia com veemência os maus pastores que se apascentam a si mesmos e não ao povo (Ez 34,1-10). Jesus retoma essa crítica e a aprofunda, apontando os falsos líderes como mercenários, que não se importam com as ovelhas e as abandonam diante do perigo (Jo 10,12-13).
Na Palestina do primeiro século, os pastores não eram heróis idealizados, mas homens simples, pobres, muitas vezes desprezados pelas elites religiosas. Algumas vezes, as próprias crianças cuidavam dos rebanhos ao lado dos pais. As ovelhas reconheciam a voz e o cheiro de quem as conduzia. Essa relação íntima e afetiva entre pastor e rebanho é essencial para compreender o que Jesus propõe: uma liderança que se baseia no vínculo, na escuta e no cuidado, não no poder, na dominação ou na manipulação.
A crítica de Jesus ao modelo religioso da época é contundente. A observância cega da Lei, o rigor ritualista e a insensibilidade ao sofrimento humano não condizem com a imagem do verdadeiro pastor. Hoje, sua voz continua ecoando contra líderes – religiosos, políticos ou ideológicos – que assumem o papel de “guias”, mas só visam explorar, dominar ou dividir o rebanho.
Vivemos tempos marcados por uma crescente polarização – inclusive dentro da própria Igreja. Há cristãos que se alinham cegamente à esquerda, adotando discursos que relativizam a fé, e outros que se identificam com uma direita ideológica que instrumentaliza o Evangelho para fins políticos. Em ambos os casos, o risco é o mesmo: substituir a voz do Pastor pela voz de mercenários, que não entram pela Porta, mas escalam o muro para roubar, matar e destruir (Jo 10,1.10).
O Papa Francisco, na Evangelii Gaudium, alerta para esse risco quando diz: “Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, do que uma Igreja enferma pelo fechamento e pela comodidade de se agarrar às próprias seguranças” (EG, 49). O verdadeiro pastor, segundo ele, tem "cheiro de ovelha" (EG, 24), está junto do povo e se deixa afetar por suas dores.
Os Padres da Igreja também comentaram essa passagem. Santo Agostinho afirma que “Cristo é simultaneamente o Pastor e a Porta; por Ele entramos e por Ele somos conduzidos à vida eterna”. E São João Crisóstomo recorda que a voz do verdadeiro pastor é reconhecida por suas obras e pelo amor com que conduz.
Teologicamente, Jesus é a Porta porque é o único mediador entre Deus e a humanidade (cf. 1Tm 2,5), e o Pastor porque dá a vida pelas ovelhas (Jo 10,11). Sua liderança é doação, não dominação. O seu rebanho não é massa de manobra, mas comunidade de irmãos e irmãs, cada um chamado pelo nome, com dignidade e missão.
A nós, hoje, cabe o desafio do discernimento. Em meio a tantas vozes, barulhos e ideologias, é preciso aprender a reconhecer a voz do Bom Pastor, que fala com misericórdia, firmeza e verdade. Nem à direita, nem à esquerda, mas no Centro do Reino, onde habita Aquele que veio para nos dar vida – e vida em abundância.
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DNonato – Leigo católico, graduado em História; uma ovelha enlameada, às vezes confundida com pastor, no rebanho do Bom Pastor.
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