Visitação de Maria: a pressa do Reino e o cântico da libertação (Lc 1,39-56)
Neste sábado, em que a Igreja celebra a Festa da Visitação de Maria a Isabel, somos convidados a contemplar um dos encontros mais carregados de mistério e profecia em toda a Sagrada Escritura. A data, em 2025, coincide com a véspera da Solenidade da Ascensão do Senhor — e esta sobreposição é, por si só, profundamente simbólica: no ventre de Maria, Deus desceu até nós; e na Ascensão, o Ressuscitado sobe aos céus levando consigo a humanidade redimida. Maria é, portanto, a ponte entre o Céu e a Terra, entre a Encarnação e a glorificação.
O evangelista Lucas inicia o episódio com uma nota que não pode passar despercebida: “Naqueles dias, Maria partiu apressadamente para a região montanhosa, a uma cidade de Judá” (Lc 1,39). A pressa de Maria não é ansiedade, mas urgência do Reino. Ela é a portadora da Palavra feita carne (cf. Jo 1,14), a nova Arca da Aliança (cf. 2Sm 6,9-11; Lc 1,43), que se desloca não para receber glórias, mas para servir (cf. Mc 10,45). O caminho da fé não é feito em isolamento contemplativo, mas na dinâmica do encontro. A fé que gera em nós o Cristo exige também o compromisso com a vida do outro.
A cena é profundamente cristológica: ainda invisível, o Messias já transforma realidades. João Batista estremece no ventre, Isabel profetiza, o Espírito Santo se manifesta. Maria não prega doutrinas, mas sua presença e serviço são já evangelização.
Isabel, ao ver Maria, exclama: “Bendita és tu entre as mulheres e bendito é o fruto do teu ventre!” (Lc 1,42). Com isso, ela antecipa aquilo que a Igreja professará ao longo dos séculos. Isabel reconhece a presença do Senhor e proclama: “Donde me vem que a mãe do meu Senhor me venha visitar?” (Lc 1,43). É a primeira vez, no Evangelho de Lucas, que Jesus é chamado de Kyrios — “Senhor”, título pascal que a comunidade primitiva reservaria ao Ressuscitado (cf. At 2,36; Fl 2,11). Aqui, ainda não nascido, já é Senhor da história.
A reação de Isabel, tomada pelo Espírito Santo (cf. Lc 1,41), mostra que a profecia não é monopólio masculino nem institucional. Ela é voz de Deus onde há escuta e discernimento. A presença do Espírito nas mulheres do Evangelho é um sinal claro de que o Reino de Deus não respeita hierarquias sociais ou sexistas. O Espírito sopra onde quer (cf. Jo 3,8).
O canto de Maria (Lc 1,46-55), chamado “Magnificat”, é, como já observaram teólogos como Dietrich Bonhoeffer e Leonardo Boff, um verdadeiro manifesto revolucionário. Ele ecoa os salmos (cf. Sl 34; 89; 103), o cântico de Ana (1Sm 2,1-10), as promessas a Abraão (Gn 12,3; 22,17-18), e as esperanças proféticas (cf. Is 61,1-2; Sf 3,12).
Com este cântico, Maria:
- engrandece o Senhor, e não a si mesma (Lc 1,46);
- reconhece a ação de Deus na história dos humildes (Lc 1,48-50);
- denuncia a arrogância dos poderosos e a acumulação de riquezas (Lc 1,51-53);
- anuncia a fidelidade de Deus à sua aliança com os pobres e com Israel (Lc 1,54-55).
A teologia do Magnificat é inseparável da espiritualidade do êxodo, da justiça profética de Amós (Am 5,24) e do clamor dos salmos: “Ele ergue do pó o indigente e do lixo retira o pobre” (Sl 113,7).
Este encontro de Maria e Isabel, fora do Templo e sem a mediação sacerdotal, é um sinal claro de que Deus escolhe os pequenos, as mulheres, os corpos periféricos como protagonistas da nova aliança. Em tempos onde a religiosidade se transforma em espetáculo, o gesto simples de Maria que visita, escuta, serve e canta é um antídoto contra a espiritualidade de fachada. Aquelas que geram e sustentam a fé popular — mães, avós, lideranças comunitárias — são herdeiras desta tradição mariana.
A crítica à meritocracia espiritual também se impõe aqui. O Magnificat não exalta os merecedores, mas os humildes. Não valida os ricos, mas os famintos. Não glorifica a elite religiosa, mas o povo pequeno que confia. Em tempos de teologias da prosperidade, que transformam Deus em acionista e o culto em mercado, o canto de Maria permanece como denúncia viva.
A Visitação se dá às vésperas da Ascensão do Senhor. Este paralelo reforça que o mesmo Cristo que desceu ao se encarnar, subirá para levar a humanidade consigo (cf. Ef 4,9-10). Maria, que gerou este corpo, agora é testemunha de que Deus se faz carne para nos divinizar. Ela é ícone da Igreja em saída (cf. Evangelii Gaudium 20), que vai ao encontro, que não se enclausura, que se apressa para servir, e que canta quando a justiça se manifesta.
Maria não compete com Jesus. Ela aponta para Ele. Como em Caná, diz: “Fazei tudo o que Ele vos disser” (Jo 2,5). Sua missão é maternal e profética. Ela é a mulher do “sim” (Lc 1,38), da perseverança (cf. At 1,14), da memória viva do Cristo encarnado.
Neste tempo, onde tantos querem uma Igreja triunfalista, Maria nos mostra uma Igreja em visita: que vai ao encontro, que abraça a outra, que escuta, que canta a libertação. A espiritualidade mariana não é evasiva, é geradora. Não é mística desencarnada, mas corporeidade redentora.
Celebrar a Visitação é lembrar que o Evangelho começa nos lares pobres, nas montanhas da Judeia, nos ventres das mulheres que ousaram crer.
“Proclamai com Maria o Magnificat da justiça! Gritai com Isabel o assombro da visita! E saltai com João no ventre da esperança, pois o Reino chegou e está no meio de nós”
DNonato – Graduado em História, teólogo do cotidiano, indigente do sagrado.
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