O antropólogo
está tão familiarizado com a diversidade das formas de comportamento que
diferentes povos apresentam em situações semelhantes, que é incapaz de
surpreender-se mesmo em face dos costumes mais exóticos. De fato, se nem todas
as combinações logicamente possíveis de comportamento foram ainda descobertas,
o antropólogo bem pode conjeturar que elas devam existir em alguma tribo ainda
não descrita. Deste ponto de vista, as crenças e práticas
mágicas dos Sonaciréma apresentam aspectos tão inusitados que parece apropriado
descrevê-los como exemplo dos extremos a que pode chegar o comportamento
humano. Foi o Professor Linton, em 1936, o primeiro a chamar a atenção dos
antropólogos para os rituais dos Sonaciréma, mas a cultura desse povo permanece
insuficientemente compreendida ainda hoje.
Trata-se
de um grupo norte-americano que vive no território entre os Cree do Canadá, os
Yaqui e os Tarahumare do México, e os Carib e Arawak das Antilhas. Pouco se
sabe sobre sua origem, embora a tradição relate que vieram do leste. Conforme a
mitologia dos Sonacirema, um herói cultural, Notgnihsaw, deu origem à sua
nação; ele é, por outro lado, conhecido por duas façanhas de força: ter atirado
um colar de conchas, usado pelos Sonaciréma como dinheiro, através do rio Poto-
Mac e ter derrubado uma cerejeira na qual residiria o Espírito da Verdade.
A cultura
dos Sonaciréma caracteriza-se por uma economia de mercado altamente
desenvolvida, que evolui em um rico habitat. Apesar de o povo dedicar muito do
seu tempo às atividades econômicas, uma grande parte dos frutos deste trabalho
e uma considerável porção do dia são dispensados em atividades rituais. O
foco destas atividades é o corpo humano, cuja aparência e saúde surgem como o
interesse dominante no ethos deste povo. Embora tal tipo de interesse não seja,
por certo, raro, seus aspectos cerimoniais e a filosofia a eles associadas são
singulares.
A crença
fundamental subjacente a todo o sistema parece ser a de que o corpo humano é
repugnante e que sua tendência natural é para a debilidade e a doença.
Encarcerado em tal corpo, a única esperança do homem é desviar estas
características através do uso das poderosas influências do ritual e do
cerimonial. Cada moradia tem um ou mais santuários devotados a este propósito.
Os indivíduos mais poderosos desta sociedade têm muitos santuários em suas
casas e, de fato, a alusão à opulência de uma casa, muito frequentemente,
é feita em termos do número de tais centros rituais que possua. Muitas casas
são construções de madeira, toscamente pintadas, mas as câmeras de culto das
mais ricas têm paredes de pedra. As famílias mais pobres imitam as ricas,
aplicando placas de cerâmica às paredes de seu santuário.
Embora
cada família tenha pelo menos um de tais santuários, os rituais a eles
associados não são cerimônias familiares, mas sim cerimônias privadas e
secretas. Os ritos, normalmente, são discutidos apenas com as crianças e, neste
caso, somente durante o período em que estão sendo iniciadas em seus mistérios.
Eu pude, contudo, estabelecer contato suficiente com os nativos para examinar
estes santuários e obter descrições dos rituais.
O ponto
focal do santuário é uma caixa ou cofre embutido na parede. Neste cofre são
guardados os inúmeros encantamentos e poções mágicas sem os quais nenhum nativo
acredita que poderia viver. Tais preparados são conseguidos através de uma
serie de profissionais especializados, os mais poderosos dos quais são os médico-feiticeiros,
cujo auxilio deve ser recompensado com dádivas substanciais. Contudo, os médico-feiticeiros
não fornecem a seus clientes as poções de cura; somente decidem quais devem ser
seus ingredientes e então os escrevem em sua linguagem antiga e secreta. Esta
escrita é entendida apenas pelos médico-feiticeiros e pelos ervatários, os
quais, em troca de outra dadiva, providenciam o encantamento necessário. Os Sonaciréma
não se desfazem do encantamento após seu uso, mas os colocam na
caixa-de-encantamento do santuário doméstico. Como tais substâncias mágicas são
especificas para certas doenças e as doenças do povo, reais ou imaginárias, são
muitas, a caixa-de-encantamentos está geralmente a ponto de transbordar. Os
pacotes mágicos são tão numerosos que as pessoas esquecem quais são suas
finalidades e temem usá-los de novo. Embora os nativos sejam muito vagos quanto
a este aspecto, só podemos concluir que aquilo que os leva a conservar todas as
velhas substâncias é a ideia de que sua presença na caixa-de-encantamentos, em
frente à qual são efetuados os ritos corporais, irá, de alguma forma, proteger
o adorador. Abaixo da caixa-de-encantamentos existe uma pequena
pia batismal.
Todos os dias cada membro da família, um após o outro, entra
no santuário inclina sua fronte ante a caixa-de-encantamentos, mistura
diferentes tipos de águas sagradas na pia batismal e procede a um breve rito de
ablução. As águas sagradas vêm do Templo da Água da comunidade, onde os
sacerdotes executam elaboradas cerimônias para tornar o líquido ritualmente
puro. Na hierarquia dos mágicos profissionais, logo abaixo dos médico-feiticeiros
no que diz respeito ao prestígio, estão os especialistas cuja designação pode
ser traduzida por "sagrados-homens-da-boca". Os Sonaciréma têm um
horror quase que patológico, e ao mesmo tempo fascinação, pela cavidade bucal,
cujo estado acreditam ter uma influência sobre todas as relações sociais.
Acreditam que, se não fosse pelos rituais bucais seus dentes cairiam,
seus amigos os abandonariam
e seus namorados os rejeitariam. Acreditam também
na existência de uma forte relação entre as características orais e as
morais: Existe, por exemplo, uma ablução ritual da boca para as crianças
que se supõe aprimorar sua fibra moral. O ritual do
corpo executado diariamente por cada um dos Sonaciréma inclui um rito
bucal. Apesar de ser tão escrupulosos no cuidado bucal, este rito envolve uma
prática que choca o estrangeiro não iniciado, que só pode considerá-lo
revoltante. Foi-me relatado que o ritual consiste na inserção de um pequeno
feixe de cerdas de porco na boca juntamente com certos pó mágico, e em
movimentá-lo então numa série de gestos altamente formalizados. Além do ritual
bucal privado, as pessoas procuram o mencionado sacerdote-da-boca uma ou duas
vezes ao ano. Estes profissionais têm uma impressionante coleção de
instrumentos, consistindo de brocas, furadores, sondas e aguilhões. O uso
destes objetos no exorcismo dos demônios bucais envolve, para o cliente, uma
tortura ritual quase inacreditável. O sacerdote-da-boca abre a boca do
cliente e, usando os instrumentos acima citados, alarga todas as cavidades que
a degeneração possa ter produzido nos dentes. Nestas cavidades são colocadas
substâncias mágicas. Caso não existam cavidades naturais nos dentes, grandes
seções de um ou mais dentes são extirpadas para que a substância natural
possa ser aplicada. Do ponto de vista do cliente, o propósito destas aplicações
é tolher a degeneração e atrair amigos. O caráter extremamente sagrado e
tradicional do rito evidencia-se pelo fato de os nativos voltarem ao
sacerdote-da-boca ano após ano, não obstante o fato de seus dentes continuarem
a degenerar.
Esperemos
que quando for realizado um estudo completo dos Sonaciréma haja um inquérito
cuidadoso sobre a estrutura da personalidade destas pessoas, Basta observar o
fulgor nos olhos de um sacerdote-da- boca, quando ele enfia um furador num
nervo exposto, para se suspeitar que este rito envolve certa dose de sadismo.
Se isto puder ser provado, teremos um modelo muito interessante, pois a maioria
da população demonstra tendências masoquistas bem definidas.
Foi
a estas tendências que o Prof. Linton (1936) se referiu na discussão de uma
parte específica dos ritos corporal que é desempenhada apenas por homens. Esta
parte do rito envolve raspar e lacerar a superfície da face com um instrumento
afiado. Ritos especificamente femininos têm lugar apenas quatro vezes
durante cada mês lunar, mas o que lhes falta em frequência é compensado em
barbaridade. Como parte desta cerimônia, as mulheres usam colocar suas cabeças
em pequenos fornos por cerca de uma hora. O aspecto teoricamente interessante é
que um povo que parece ser preponderantemente masoquista tenha desenvolvido
especialistas sádicos.
Os médico-feiticeiros
têm um templo imponente, ou latipsoh, em cada comunidade de certo porte. As
cerimônias mais elaboradas, necessárias para tratar de pacientes muito doentes,
só podem ser executadas neste templo. Estas cerimônias envolvem não apenas o taumaturgo,
mas um grupo permanente de vestais que, com roupas e toucados específicos,
movimentam-se serenamente pelas câmaras do templo.
As
cerimonias latipsoh são tão cruéis que é de surpreender que uma boa proporção
de nativos realmente doentes que entram no templo se recuperem. Sabe-se que as
crianças pequenas, cuja doutrinação ainda é incompleta, resistem às
tentativas de levá-las ao templo, porque "é lá que se vai para morrer".
Apesar disto, adultos doentes não apenas querem, mas anseiam por sofrer os
prolongados rituais de purificação, quando possuem recursos para tanto. Não
importa quão doente esteja o suplicante ou quão grave seja a emergência, os
guardiões de muitos templos não admitirão um cliente se ele não puder dar
uma dádiva valiosa para a administração. Mesmo depois de ter-se
conseguido a admissão, e sobrevivido às cerimônias, os guardiães não permitirão
ao neófito abandonar o local se ele não fizer outra doação. O suplicante
que entra no templo é primeiramente despido de todas as suas roupas. Na vida
cotidiana os Sonaciréma evita a exposição de seu corpo e de suas funções
naturais. As atividades excretoras e o banho, enquanto parte dos ritos
corporais, são realizados apenas no segredo do santuário doméstico. Da perda
súbita do segredo do corpo quando da entrada no latipsoh, podem resultar
traumas psicológicos. Um homem, cuja própria esposa nunca o viu em um ato
excretor, acha-se subitamente nu e auxiliado por uma vestal, enquanto executa
suas funções naturais num recipiente sagrado. Este tipo de tratamento
cerimonial é necessário porque os excreta são usados por um adivinho para
averiguar o curso e a natureza da enfermidade do cliente. Clientes do sexo
feminino, por sua vez, têm seus corpos nus submetidos ao escrutínio,
manipulação e aguilhadas dos médico-feiticeiros.
Poucos
suplicantes no templo estão suficientemente bons para fazer qualquer coisa além
de jazer em duros leitos. As cerimônias diárias, como os ritos do
sacerdote-da-boca, envolvem desconforto e tortura. Com precisão ritual as
vestais despertam seus miseráveis fardos a cada madrugada e os rolam em seus
leitos de dor enquanto executam abluções, com os movimentos formais nos quais
estas virgens são altamente treinadas. Em outras horas, elas inserem bastões
mágicos na boca do suplicante ou o forçam a engolir substâncias que se supõe
serem curativas.
De
tempos em tempos o médico-feiticeiro vem ver seus clientes e espeta agulhas
magicamente tratadas em sua carne. O fato de que estas cerimônias do templo
possam não curar, e possam mesmo matar o neófito, não diminui de modo algum a
fé das pessoas no médico feiticeiro. Resta ainda outro tipo
de profissional, conhecido como um "ouvinte". Este
"doutor-bruxo" tem o poder de exorcizar os demônios que se alojam nas
cabeças das pessoas enfeitiçadas. Os Sonaciréma acreditam que os pais
enfeitiçam seus próprios filhos; particularmente, teme-se que as mães lancem
uma maldição sobre as crianças enquanto lhes ensinam os ritos corporais
secretos. A contra magia do doutor bruxo é inusitada por sua carência de
ritual. O paciente simplesmente conta ao "ouvinte" todos os seus
problemas e temores, principalmente pelas dificuldades iniciais que consegue
rememorar. A memória demonstrada pelos Sonaciréma nestas sessões de
exorcismo é verdadeiramente notável. Não é incomum um paciente deplorar a
rejeição que sentiu, quando bebê, ao ser desmamado, e uns poucos indivíduos
reportam a origem de seus problemas aos feitos traumáticos de seu próprio
nascimento.
Como
conclusão, deve-se fazer referência a certas práticas que têm suas bases na
estética nativa, mas que decorrem da aversão profunda ao corpo natural e suas
funções. Existem jejuns rituais para tornar magras pessoas gordas, e banquetes
cerimoniais para tornar gordas pessoas magras. Outros ritos são usados para
tornar maiores os seios das mulheres que os têm pequenos e torná-los menores
quando são grandes. A insatisfação geral com o tamanho do seio é simbolizada no
fato de a forma ideal estar virtualmente além da escala de variação humana.
Umas poucas mulheres, dotadas de um desenvolvimento hiper mamário quase
inumano, são tão idolatradas que podem levar uma boa vida simplesmente indo de
cidade em cidade e permitindo aos embasbacados nativos, em troca de uma taxa,
contemplarem-nos. Já fizemos referência ao fato de que as
funções excretoras são ritualizadas, rotinizadas e relegadas ao segredo. As
funções naturais de reprodução são, da mesma forma, distorcidas. O intercurso
sexual é tabu enquanto assunto, e é programado enquanto ato. São feitos
esforços para evitar a gravidez, pelo uso de substâncias mágicas ou pela
limitação do intercurso sexual a certas fases da lua. A concepção é na
realidade, pouco frequente. Quando grávidas as mulheres vestem-se de modo a
esconder o estado. O parto tem lugar em segredo, sem amigos ou parentes para
ajudar, e a maioria das mulheres não amamenta seus rebentos.
Nossa
análise da vida ritual dos Sonaciréma certamente demonstrou ser este povo
dominado pela crença na magia. É difícil compreender como tal povo conseguiu
sobreviver por tão longo tempo sob a carga que impôs sobre si mesmo. Mas até
costumes tão exóticos quantos estes aqui descritos ganham seu real significado
quando são encarados sob o ângulo relevado por Malinowski, quando escreveu: "Olhando
de longe e de cima de nossos altos postos de segurança na civilização
desenvolvida, é fácil perceber toda a crueza e irrelevância da magia. Mas sem
seu poder de orientação, o homem primitivo não poderia ter dominado, como o fez,
suas dificuldades práticas, nem poderia ter avançado aos estágios mais altos da
civilização".
Horace Miner
In: A.K. Rooney e P.L. de Vore (orgs)
YOU AND THE OTHERS - Readings in Introductory Anthropology
(Cambridge, Erlich) 1976
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