segunda-feira, 30 de junho de 2025

Um breve olhar sobre Mateus 8,23-27


Quando o Mar Grita e Deus Dorme: fé em tempos de travessia”

Vamos  refletir  o texto de Mateus 8,23-27  proclamado  na 3ª-feira da 13ª semana do Tempo Comum e aqui Jesus entra no barco com seus discípulos. Um gesto simples, quase cotidiano, mas carregado de densidade simbólica e teológica. Vem de Cafarnaum, onde passou o dia inteiro curando os doentes, libertando pessoas dos espíritos impuros, acolhendo o centurião estrangeiro, restaurando a sogra de Pedro e os marginalizados (Mt 8,1-17). Sua autoridade, ao contrário da dos doutores da Lei, nasce da proximidade com os corpos feridos e da compaixão com os caídos. Exausto, adentra a noite para atravessar o lago rumo à região dos gadarenos – terra pagã. Não foge das margens do mundo, vai ao seu encontro. Mas antes, repousa. Dorme. De cansaço, de humanidade, de fé.

Enquanto isso, uma violenta tempestade se abate sobre o Mar da Galileia. Esse mar, na verdade um grande lago cercado por colinas, é conhecido por mudanças climáticas bruscas e ventos repentinos que, ao encontrarem resistência da água aquecida, formam tempestades violentas. Trata-se de uma região de fronteira simbólica: entre o mundo judaico e o mundo pagão, entre a tradição e a missão, entre o conhecido e o risco. Jesus não escolhe águas calmas. Ele nos chama justamente onde o medo se mistura com a possibilidade do novo. O texto de Mateus (8,23-27), bem como os paralelos de Marcos (4,35-41) e Lucas (8,22-25), não tratam apenas de um fenômeno meteorológico, mas de uma teofania – manifestação de Deus em meio ao caos. O mar, na cosmovisão bíblica, simboliza as forças do mal, do caos e da morte (cf. Gn 1,2; Sl 89,10; Ap 13,1). A tempestade é imagem viva das adversidades que ameaçam o projeto de Deus no mundo e a estabilidade interior dos seus seguidores.

Jesus dorme enquanto a barca é engolida pelas ondas. Um detalhe perturbador. Como pode o Senhor dormir quando tudo desaba? Essa pergunta não é só dos discípulos, é também nossa, grito antigo e atual: “Senhor, não te importas que pereçamos?” (Mc 4,38). É o clamor do salmista: “Desperta, Senhor! Por que dormes?” (Sl 44,24). É o grito das periferias, dos injustiçados, dos esquecidos pela religião do espetáculo, que prega milagres fáceis, mas fecha os olhos diante da dor concreta do povo.

Mas esse sono de Jesus não é abandono. É confiança. Ele não dorme por insensibilidade como Jonas (Jn 1,5-6), que se esconde da missão e dorme enquanto a morte se aproxima. Jonas dorme por fuga; Jesus, por entrega. O profeta fujão é acordado por marinheiros pagãos; o Messias cansado é despertado por discípulos ainda imaturos na fé. Ali, Deus ensina que não se trata de ausência, mas de outra forma de presença. Jesus dorme como quem confia plenamente no Pai – é o sono do justo, da paz que brota do abandono total. A pedagogia do Evangelho é clara: seguir Jesus não é escapar das tempestades, mas atravessá-las com Ele. A fé que amadurece não se baseia na ausência de crises, mas na certeza de que o Senhor está no barco. Mesmo dormindo, é Ele quem sustenta. Por isso, após o despertar dos discípulos, Jesus repreende primeiro o medo – e só depois o mar. “Por que estais com medo, homens fracos na fé?” (Mt 8,26). A tempestade externa se acalma quando a tempestade interior é confrontada. Ele domina os ventos e o mar porque é o mesmo Verbo por quem todas as coisas foram feitas (Jo 1,3).

É a repetição do gesto criador de Gênesis, quando Deus separa as águas e estabelece a ordem sobre o caos (Gn 1,6-10). Também ecoa o Êxodo, quando o Senhor abre o mar diante do povo oprimido e o liberta das mãos do faraó (Ex 14,21-22). Agora, no Novo Êxodo, o Filho do Homem não apenas atravessa o mar – Ele o silencia com a palavra, como quem restitui à criação o seu equilíbrio original. Na América Latina, essa travessia se atualiza nas lutas do povo contra a colonização, a fome, o extrativismo, a violência contra os corpos racializados e empobrecidos. O mar continua tentando engolir os pequenos, mas Deus segue abrindo caminhos. A Igreja de Aparecida (2007), herdeira de Medellín e Puebla, reafirma que os rostos dos crucificados de hoje clamam por libertação. A travessia é também nossa missão: conduzir o povo para além das águas da exclusão.

A barca, símbolo da Igreja, continua navegando entre tormentas. Mas há algo essencial: ela só é Igreja enquanto Ele estiver nela. A barca não é de Pedro, nem dos discípulos, nem da hierarquia – é de Cristo. E ela só se sustenta quando se mantém aberta, sinodal, orientada pela escuta do Espírito e da voz dos pobres. A travessia só é verdadeira quando feita em comunhão, com cada discípulo remando junto, escutando-se mutuamente, discernindo com humildade. Não há travessia solitária no Evangelho. O discipulado é sempre comunitário. O Sínodo é, assim, um movimento do Espírito que nos chama a deixar a margem da rigidez e a navegar rumo à conversão pastoral. Muitas comunidades eclesiais hoje parecem barcos à deriva, movidos por interesses ideológicos, alianças espúrias com o poder, discursos de ódio travestidos de zelo moral. A extrema-direita se apropria do nome de Cristo, mas o transforma em ídolo nacionalista e justiceiro. Prega o medo, não o Reino. Abençoa armas, despreza os pobres, amaldiçoa os diferentes. Não está com Jesus no barco; constrói sua própria frota para cruzadas de dominação. Esse uso político de Jesus constrói um messianismo falso, onde o Cristo do Evangelho é substituído por um cristo ideológico, defensor da propriedade privada, da violência policial, da meritocracia excludente. Não é o Cristo dos Evangelhos, mas um simulacro construído a serviço do capital e do medo. É o mesmo espírito que exigiu um Messias guerreiro no deserto e crucificou o Messias servidor em Jerusalém.

O clericalismo também alimenta tempestades: pastores que se fazem príncipes, padres que confundem liturgia com espetáculo, líderes que desprezam a escuta, o povo, os leigos. São barcas luxuosas sem rumo, rituais sem presença, evangelho sem cruz. Multiplicam-se hoje igrejas-palco, onde o louvor encobre a violência, e púlpitos que anunciam bênçãos sem conversão, moral sem misericórdia, teologia sem humanidade. Há quem diga que “Jesus acalma a tempestade”, mas se recusa a enfrentar as tormentas da desigualdade, do racismo, da misoginia, da fome. É o mercado da fé travestido de espiritualidade. Uma religião sem profecia é como um barco sem leme: parece seguir, mas está à deriva. Contra essas religiões vazias, Jesus se levanta. Acalma o mar, mas também interpela seus discípulos: “Onde está a vossa fé?” (Lc 8,25). Essa interrogação é pedagógica e terapêutica. Nos obriga a olhar para dentro, para nossas próprias tempestades: o medo da perda, o desânimo, a sensação de fracasso, a apatia. Psicologicamente, o texto revela a luta entre o desejo de controle e o chamado à confiança. O pânico dos discípulos é o reflexo de uma fé ainda baseada em garantias. Mas a fé verdadeira nasce da travessia, do não saber, do seguir mesmo quando tudo treme.

As tempestades que enfrentamos não são só aquelas do mar ou da história coletiva, mas também as que assolam o nosso íntimo. O fim de um namoro que parecia promissor, a perda inesperada do emprego que sustentava a família, o diagnóstico que abala o corpo e a mente — todas essas são tempestades que nos desestabilizam e fazem naufragar a esperança. É fácil sentir-se abandonado, como se Jesus estivesse dormindo no barco enquanto tudo ruge. Porém, a Boa Nova de Mateus nos assegura que não é assim. Jesus está presente na embarcação da nossa vida, mesmo quando parece distante ou silencioso. Reconhecer essas tempestades pessoais é o primeiro passo para que a fé deixe de ser apenas uma ideia e se torne força viva. O Senhor não promete que navegaremos sempre em águas calmas, mas garante que a travessia, por mais difícil que seja, jamais será solitária. O convite é sempre renovar a confiança: levantar os olhos do caos, clamar a Ele e encontrar na palavra de Jesus o poder para acalmar os ventos interiores que nos ameaçam.

O mar agitado é o ventre do novo, o batismo do Reino. Toda a história bíblica é uma sucessão de travessias. Noé atravessa o dilúvio com a arca; Moisés, o mar Vermelho com o povo; Elias, o deserto até o Horeb; Paulo, naufraga a caminho de Roma. Ninguém caminha com Deus sem enfrentar marés. Cada travessia purifica, amadurece, desinstala. A fé que não passa pela água nunca será fé pascal.

Cada travessia nos desinstala. A espiritualidade do Evangelho é pascal: atravessar para renascer. A água que ameaça também é a mesma que batiza. O mar é útero e túmulo, fim e começo. E no centro, a palavra de Jesus: “Vamos para a outra margem” (Mc 4,35). A margem onde estão os endemoninhados, os sujos, os outros. O discipulado verdadeiro começa quando aceitamos deixar a margem do conforto para nos lançarmos na missão da compaixão. Esse despertar da fé, muitas vezes, nasce do silêncio orante, da escuta contemplativa da Palavra. Em tempos de excesso de ruído, a mística cristã é um ato de resistência. A oração não é fuga do mundo, mas afinamento da alma para discernir por onde remar. O silêncio de Jesus, mesmo dormindo, é um chamado à interioridade: é preciso entrar em si para reencontrar o Senhor que acalma por dentro.

Jesus não apenas acalma a natureza; revela quem Ele é. Os discípulos, ainda confusos, perguntam: “Quem é este, que até os ventos e o mar lhe obedecem?” (Mt 8,27). É a pergunta fundamental da existência cristã. Não basta seguir Jesus por admiração ou por conveniência. É preciso reconhecê-lo como o Filho de Deus, Senhor sobre a criação e sobre o caos. Só assim a fé deixa de ser acessório e passa a ser fundamento. A tradição patrística via nessa cena uma imagem da Igreja atravessando a história. Agostinho escreve: “A barca está em perigo... o coração está agitado... o Mestre dorme... acordemos a fé, para que Cristo esteja vigilante em nós” (Sermão 63). A Igreja verdadeira é aquela que não se deixa dominar pelas ondas do medo, mas desperta o Cristo interior e professa a confiança radical.

Essa maturidade se alimenta da Palavra e da Eucaristia, onde Cristo se faz presente no meio da comunidade que rema unida. O altar é, por assim dizer, a âncora do barco: ali, Ele se entrega de novo por nós, silencioso, mas vivo. É dali que tiramos a força para continuar navegando, mesmo quando os ventos contrários sopram. A cena termina em calma – mas não na calmaria. Jesus segue rumo aos gadarenos, aos excluídos, à margem. A missão não termina com o milagre, ela apenas começa. E continua hoje, em cada travessia onde se luta por justiça, dignidade e paz. Nossa fé será madura quando deixarmos de buscar um Cristo que nos protege das tempestades e nos unirmos ao Cristo que navega conosco por dentro delas.

Que possamos aprender com esta travessia que o Senhor não quer um barco perfeito, nem uma fé inabalável isenta de dúvidas e dores, mas uma comunidade e um coração que se mantêm firmes no meio da tempestade. Que o silêncio de Jesus no barco seja para nós o convite à confiança profunda, capaz de gerar paz mesmo nas noites mais escuras da alma.  Quando as tempestades da vida parecerem querer nos afundar — e elas virão — que não esqueçamos: o Deus que criou os ventos e os mares é o mesmo que vela pelo nosso sono, o mesmo que nos chama a remar juntos para a outra margem. E essa certeza nos faz mais fortes que qualquer vendaval. Pois, no barco onde Jesus está, mesmo o silêncio é um sinal da sua presença salvadora.

Navegar com Ele não é promessa de calmaria, mas garantia de que nenhuma tempestade é maior do que o amor que nos sustenta. Que a nossa fé não seja um abrigo contra as tormentas, mas a coragem de continuar, navegando na confiança de que, mesmo quando tudo parece naufragar, Ele está conosco — e isso basta.



DNonato – Teólogo do Cotidiano

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado pelo seu comentário.