Historicamente, os banquetes na sociedade judaica e greco-romana eram espaços de distinção social. A posição do convidado refletia poder, riqueza e prestígio. Jesus, entretanto, instrui a convidar aqueles que “não podem retribuir”, invertendo a lógica do mundo e antecipando a lógica do Reino. O convite se dirige aos pobres, marginalizados e invisibilizados, mostrando que a amizade verdadeira não se mede pelo retorno, pelo reconhecimento social ou pelo interesse próprio, mas pelo amor desinteressado que se doa sem cálculo.
Esta mensagem encontra ecos consistentes em toda a Escritura. Abraão, em Gênesis 18, recebe visitantes sem esperar recompensa, e esse ato se torna veículo de manifestação de Deus. O Salmo 41,1 promete bênção àquele que atende o pobre, e Provérbios 19,17 afirma: “Quem dá aos pobres empresta ao Senhor, e Ele lhe pagará seu benefício.” Nos Evangelhos sinóticos, Mateus 25,35-40 vincula o serviço ao próximo ao serviço a Cristo, enquanto Marcos 10,43-45 demonstra que a verdadeira grandeza se mede pelo serviço altruísta. Lucas, atento aos marginalizados, reforça que a generosidade não visa prestígio ou retorno humano, mas é expressão concreta do Reino de Deus no cotidiano.
A hermenêutica lucana do convite revela intenção consciente. A ação caridosa não é neutra; revela valores, discernimento e espiritualidade. Convidar aqueles que nada podem retribuir é reconhecer a presença de Deus no outro, independentemente de classe, aparência ou status. A generosidade que busca likes ou visibilidade é, portanto, uma distorção ética da amizade cristã. Esta crítica se prolonga no tempo: ao longo da história da Igreja, foram denunciadas práticas de caridade instrumentalizada, prestes a se tornar mercadoria ou espetáculo.
A psicologia moderna ajuda a compreender a dificuldade dessa ética. Teorias do altruísmo autêntico versus altruísmo estratégico mostram que ações de caridade frequentemente se misturam com desejo de reconhecimento ou valorização social. Jesus propõe ultrapassar esse ego e reconhecer o outro como portador da imagem de Deus. A amizade e a caridade autênticas são atos de encontro, responsabilidade e entrega, não de cálculo ou retorno.
Lucas denuncia práticas eclesiais e sociais que priorizam prestígio, status e poder. Frequentemente, marginalizados são invisibilizados, enquanto políticos ou autoridades recebem atenção e pompa. É uma crítica direta ao clericalismo e à hipocrisia institucional. Profetas do Antigo Testamento já denunciavam estruturas sociais e religiosas que ignoravam os marginalizados (cf. Isaías 58,2-7; Amós 5,11-15). A mensagem de Jesus desafia Igreja e sociedade a refletirem sobre seus critérios de valor, respeito e acolhida.
Aristóteles, em Ética a Nicômaco, distingue amizade por interesse e amizade por virtude. Lucas apresenta a amizade pela virtude, integral e desinteressada. A caridade que busca retorno é mercadoria; a caridade que se doa plenamente revela Deus, antecipando a lógica messiânica do Reino. A reflexão ética é ampliada por Levinas, cuja filosofia coloca o outro como presença ética que demanda responsabilidade infinita, alinhando-se à exortação de Jesus: acolher sem interesse é reconhecer o valor absoluto do outro.
Santo Agostinho enfatiza que hospitalidade e caridade devem ser atos plenos de amor, refletindo a graça divina; São João Crisóstomo lembra que acolher marginalizados é honrar a imagem de Deus neles; Gregório Magno sustenta que a caridade integral transforma a comunidade; Clemente de Alexandria ensina que a prática desinteressada do bem forma virtudes e discípulos. Esses ensinamentos são reforçados pelo Magistério: Gaudium et Spes (n. 63-66) alerta contra subordinar a solidariedade a regras de prestígio ou mercado; Evangelii Gaudium (n. 188-190) denuncia a fé-mercadoria; Fratelli Tutti (n. 215) valoriza encontros desinteressados para a construção da fraternidade e da verdadeira amizade.
O “jantar” de Lucas é símbolo múltiplo: prenuncia a Eucaristia, representa o banquete messiânico (cf. Isaías 25,6; Apocalipse 19,9) e anuncia a inclusão radical dos marginalizados. Convidar aqueles que não podem retribuir é antecipação do Reino, onde a dignidade não é medida por status ou riqueza, mas pelo reconhecimento da imagem divina no outro. A mesa, nesse sentido, é vínculo social, ritual de humanização, espaço de revelação do divino. Psicologia, sociologia e antropologia confirmam essa dimensão: a mesa é lugar de encontro, de acolhimento e de transformação de relações humanas.
Lucas 14,12-14 também critica linhas teológicas contemporâneas: a teologia da prosperidade, do domínio, do individualismo e da fé como mercadoria. Ele denuncia a lógica de utilidade e visibilidade, desafiando Igreja e sociedade a reavaliarem prioridades. O clericalismo, que privilegia autoridades em detrimento de pobres e marginalizados, é subvertido pelo gesto simples de convidar os que nada podem retribuir, invertendo hierarquias e demonstrando a pedagogia do Reino: quem se humilha é exaltado, quem se exalta é humilhado (Lucas 14,11).
Historicamente, essa hospitalidade radical encontra eco em santos e comunidades solidárias: São Martinho de Tours, Santa Isabel de Hungria, São Romero de América Latina compreenderam que caridade não é espetáculo, mas entrega total. Psicologicamente, tais atos desafiam o ego; sociologicamente, subvertem estruturas de poder; teologicamente, revelam a presença do Reino. A prática histórica mostra que a amizade e a caridade integral transformam comunidades e sociedades, criando vínculos sólidos e duradouros.
A intertextualidade bíblica amplia o alcance da reflexão: Rut 2 mostra Boaz acolhendo a estrangeira; Êxodo 22,21-24 e Levítico 19,9-10 regulam proteção e partilha aos pobres e estrangeiros; Lucas 10,25-37 apresenta o bom samaritano; Mateus 20,1-16 reforça a reversão de valores e a lógica divina de recompensa. Cada referência ilumina a mesma ética: caridade plena, sem interesse, é expressão do Reino. Ao nos aproximarmos do Dia do Pobre, celebrado no terceiro domingo de novembro, somos convidados a revisar nossas atitudes: dar pão, sim, mas reconhecer o outro como imagem de Deus; acolher, sim, mas integralmente, sem interesse ou cálculo. A verdadeira caridade é plena, radical e revela Deus em nossas vidas. A amizade que se doa transforma comunidades, desafia estruturas de poder e anuncia o Reino aqui e agora.
Que cada mesa, gesto e encontro reflitam a amizade verdadeira que Jesus propõe. Ao acolher marginalizados e invisíveis, antecipamos a presença do Reino, praticamos a caridade integral e testemunhamos o amor de Deus em ação no cotidiano humano. Que nossas comunidades sejam espelhos vivos desse ensinamento, e que cada gesto de generosidade, silencioso e sem expectativa, torne-se expressão concreta do amor divino.
DNonato – Teólogo do Cotidiano


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