O texto aponta para a densidade da imagem do banquete. Na tradição bíblica, o banquete é símbolo de comunhão, aliança e vida em plenitude. Isaías 25,6-8 anuncia que o Senhor preparará, sobre este monte, um festim para todos os povos, com manjares saborosos e vinhos refinados, e nesse banquete enxugará as lágrimas de todos os rostos e destruirá a morte para sempre. A promessa profética encontra eco no Salmo 23, onde o Senhor prepara a mesa diante dos inimigos, unge a cabeça com óleo e faz transbordar o cálice. O banquete aponta para a hospitalidade divina, mas também para a exigência de se acolher o convite com o coração disponível. O próprio Jesus se apresenta nos Evangelhos como aquele que come com pecadores e publicanos (Mt 9,10; Lc 15,2), desafiando os sistemas de pureza e exclusão. O banquete do Reino é, portanto, sinal de uma graça aberta e inclusiva. A recusa dos primeiros convidados, que preferem ir ao campo ou aos negócios, revela o perigo do fechamento egoísta diante da oferta de Deus. Marcos 12,1-12 e Lucas 14,15-24 apresentam parábolas semelhantes, evidenciando que a tradição sinóptica quis sublinhar a mesma realidade: os primeiros chamados rejeitam, e Deus abre o convite aos pobres, aleijados, cegos, coxos e estrangeiros. Aqui se cumpre a inversão do Reino, onde “os últimos serão os primeiros e os primeiros serão os últimos” (Mt 20,16). O banquete é para todos, mas exige resposta concreta. A dimensão escatológica se evidencia na exigência de vigilância: “Felizes os convidados para o banquete das núpcias do Cordeiro” (Ap 19,9). O Apocalipse mostra que o banquete definitivo é a união esponsal entre Cristo e a Igreja, e a parábola antecipa essa realidade.
A presença do homem sem veste nupcial pode parecer, à primeira vista, um excesso de rigor, mas revela a seriedade do chamado. A veste, no horizonte bíblico, simboliza a conversão e a vida nova. Paulo escreve: “Revesti-vos de Cristo” (Gl 3,27), “revesti-vos do homem novo” (Ef 4,24), e no Apocalipse os salvos aparecem com vestes lavadas no sangue do Cordeiro (Ap 7,14). A veste é símbolo da resposta ética e existencial ao convite divino. Aceitar o convite e permanecer sem transformação é reduzir a graça a mero rito externo, sem compromisso interior. Aqui entra a crítica de Jesus contra a religião vazia, que honra com os lábios, mas tem o coração longe (Mt 15,8; Is 29,13).
Essa parábola denuncia a lógica das elites religiosas e políticas de Israel que, confortáveis em seus privilégios, rejeitaram o convite para um Reino que subverte as hierarquias e inclui os marginalizados. O banquete não é a sala de poder de César, mas a mesa larga dos pobres. A psicologia nos ajuda a compreender que a recusa dos convidados nasce do apego às seguranças materiais, da fuga do risco da novidade, do medo de perder status. O inconsciente humano tende a se apegar ao conhecido, mesmo que vazio, em vez de arriscar-se na festa de um Reino onde todos são iguais. A filosofia, especialmente em Kierkegaard, recorda que o convite de Deus exige decisão existencial: não basta ouvir, é preciso escolher e arriscar-se.
O texto também provoca uma crítica contundente às teologias distorcidas. A teologia da prosperidade, que transforma a fé em barganha e o Evangelho em negócio, não cabe no banquete do Reino, porque aqui não se compra lugar à mesa: é pura graça. A teologia do domínio, que instrumentaliza Deus para legitimar poder político e violência, é desmascarada, pois o Reino não se impõe pela força, mas se oferece como convite livre. O individualismo, que transforma a fé em experiência privada e intimista, cai por terra, porque o banquete é comunitário, não solitário. A fé como mercadoria é denunciada, porque o convite não é um produto, mas dom gratuito. O clericalismo, por sua vez, é severamente criticado, pois quando a Igreja transforma o banquete eucarístico em privilégio de poucos, quando faz da mesa espaço de poder e exclusão, trai o sentido original da parábola.
Santo Agostinho, comentando esta parábola, afirma que a veste nupcial é a caridade: sem ela, nada vale, nem mesmo estar na Igreja. São Gregório Magno acrescenta que a veste é também a perseverança na vida cristã. São João Crisóstomo recorda que o banquete é a Eucaristia, mas que não basta comungar exteriormente: é preciso viver a fé interiormente. A veste, portanto, não é formalismo, mas conversão que se traduz em amor concreto.
O Concílio de Trento sublinhou a necessidade da disposição interior para participar dignamente da Eucaristia. O Vaticano II, na Lumen Gentium, insiste que a Igreja é chamada a ser sinal do banquete universal de salvação (LG 1), e a Sacrosanctum Concilium recorda que a liturgia é antecipação da festa eterna (SC 8). O Papa Bento XVI, em sua encíclica Deus Caritas Est, afirmou que o cristianismo não é uma ideia, mas um encontro de amor que gera comunhão. O Papa Francisco insiste que a Eucaristia não é prêmio para os perfeitos, mas alimento para os fracos, desde que haja abertura sincera ao convite de Deus.
O banquete aponta para o juízo final, quando os convidados que rejeitaram serão julgados, e os que aceitaram, mas sem conversão, serão confrontados com sua incoerência. O “haverá choro e ranger de dentes” (Mt 22,13) recorda a seriedade da liberdade humana. Não se trata de um Deus vingativo, mas da consequência de rejeitar a vida. Como diz Daniel 12,2, “uns ressuscitarão para a vida eterna, outros para a vergonha eterna”. O convite é universal, mas a resposta é pessoal e intransferível.
A parábola nos convoca hoje a discernir se estamos realmente acolhendo o convite de Deus ou se estamos apegados a nossos negócios, ideologias, confortos e interesses. A Igreja, como serva do Reino, é chamada a ir às encruzilhadas e convidar todos, sobretudo os descartados. Mas para isso precisa abandonar o clericalismo, a tentação de poder, a lógica da exclusão e a idolatria do dinheiro. Precisa ser sinal de uma mesa aberta, onde pobres, migrantes, mulheres, negros, povos originários, LGBTs e marginalizados sejam reconhecidos como irmãos e não como intrusos. No fundo, esta parábola é um alerta contra a banalização da graça. Deus nos chama a um banquete de vida, de justiça e de amor, mas muitos preferem os negócios da morte. A veste nupcial é a justiça (Is 61,10), a fé atuando pela caridade (Gl 5,6), o amor que cobre a multidão dos pecados (1Pd 4,8). Sem essa veste, não há lugar no banquete, mesmo que estejamos dentro da sala. O Evangelho nos lembra que “muitos são chamados, mas poucos escolhidos” (Mt 22,14), não porque Deus seja seletivo, mas porque muitos se fecham à conversão que o convite exige.
Assim, Mateus 22,1-14 nos coloca diante de uma escolha radical: ou permanecemos no mercado dos negócios que mata, ou aceitamos o convite para a festa do Reino que salva. O banquete já começou, e a mesa está posta. O que falta é decidir se vamos entrar com a veste da caridade, ou se continuaremos vestidos da indiferença.
✍️ DNonato – Teólogo do Cotidiano
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