Jesus nos adverte com severidade: “Cuidado com os falsos profetas! Eles vêm até vós vestidos como ovelhas, mas por dentro são lobos vorazes” (Mt 7,15). Essa advertência ecoa como um grito profético em tempos de manipulação religiosa, ideologias travestidas de fé e falsos messianismos que se alimentam do medo, da ignorância e da ingenuidade popular. A metáfora da árvore e seus frutos não é apenas um critério moral individual, mas uma denúncia estrutural: há sistemas, lideranças, discursos e liturgias que, embora aparentem piedade, geram exclusão, violência simbólica e cumplicidade com a injustiça.
No horizonte bíblico, profeta não é adivinho nem porta-voz de bajulação. Profeta é aquele que, ungido pelo Espírito, denuncia o pecado estrutural, anuncia o Reino e clama por metanoia — mudança radical de mentalidade e conduta (Rm 12,2). Jesus retoma aqui uma tradição profética sem concessões: “Ai dos que dizem que o mal é bem e o bem é mal, que fazem da escuridão luz e da luz escuridão” (Is 5,20). Falsos profetas são cúmplices da morte quando silenciam diante do clamor dos pobres e das vítimas, quando se alinham a projetos de poder que exploram o nome de Deus para legitimar o império do capital, da violência policial, do racismo religioso e do patriarcalismo institucionalizado.
A exegese desse trecho precisa considerar o contexto de Mateus: uma comunidade em crise, vulnerável ao fascínio de líderes carismáticos, mas desviados da ética do Reino. Esses “lobos vorazes” (λύκοι ἅρπαγες) não apenas representam pessoas específicas, mas todo um sistema de dissimulação religiosa. São aqueles que adaptam a mensagem do Evangelho para agradar ao mercado da fé, aos algoritmos do aplauso ou às agendas da extrema-direita, cujo “evangelho” colonizado é marcado pelo moralismo seletivo, pela idolatria da propriedade e pela demonização dos pobres.
Não é possível ignorar, nesse contexto, a proliferação de supostas “revelações” pentecostais que contradizem frontalmente a revelação plena em Cristo e os critérios da Palavra. Muitos se dizem profetas porque “Deus lhes falou”, mas vivem em dissonância com a tradição apostólica e a coerência das Escrituras. A profecia autêntica está submetida ao discernimento da comunidade e à fidelidade à mensagem do Evangelho (1Cor 14,29; Gl 1,8). Revelações que negam a cruz, que prometem prosperidade sem renúncia, ou que legitimam ideologias excludentes não vêm de Deus, mas do espírito do engano. “Nem todo espírito vem de Deus: provai os espíritos para saber se vêm de Deus, pois muitos falsos profetas saíram pelo mundo” (1Jo 4,1). Toda “profecia” que contradiz o Cristo crucificado e ressuscitado, que transforma Deus num mágico ou num agente de sucesso pessoal, é uma falsificação piedosa a serviço do ego e do lucro. Orígenes já advertia no século III que toda profecia autêntica conduz ao Verbo encarnado e crucificado, e não a desejos privados. Santo Agostinho, em sua leitura dos Salmos, recorda que “não é profeta quem fala de si,
Também é preciso desmascarar a falsa ideia de que o número de seguidores é critério de autenticidade profética. Bares estão cheios, estádios lotam, shoppings fervilham, e nem por isso são espaços de conversão. O mesmo vale para igrejas infladas por carisma, marketing ou medo do inferno. A multidão não é, em si, sinal do Espírito — pois, como nos mostra o Evangelho, multidões também seguem para apedrejar (Jo 8,59), aclamar falsos messias (Lc 23,18-21) ou abandonar o Cristo quando sua palavra se torna exigente (Jo 6,66). O falso profeta, muitas vezes, exerce fascínio justamente porque oferece respostas fáceis, promessas rápidas e um Deus domesticado ao desejo humano. A psicologia social já demonstrou como o impulso de pertencimento e o medo da exclusão podem nos fazer seguir líderes abusivos, mesmo percebendo incoerências. E mesmo o verdadeiro profeta, se não vigiar, pode ser seduzido pela vaidade de sua influência, transformando o dom em plataforma e a vocação em espetáculo. Por isso, Jesus não nos manda contar os que seguem, mas discernir os frutos (Mt 7,20). O profetismo autêntico não é medido pela adesão das massas, mas pela fidelidade ao Reino, ainda que isso custe solidão, rejeição e cruz (Mt 5,11-12; Jr 20,7-9).
Essa espiritualidade adulterada que se alastra como epidemia religiosa assume formas sedutoras mas perigosas: adoração de si mesmo sob pretexto de intimidade com Deus, mensagens de “vitória” sem cruz, curas espetaculosas usadas como iscas de mercado, e “profecias” de adivinhação que mais se aproximam da prática pagã do oráculo do que do anúncio profético bíblico. A fé cristã, no entanto, nasce da escuta obediente da Palavra e da comunhão com os que sofrem (Rm 10,17; Tg 1,27). O Deus revelado em Jesus nunca ofereceu garantias de conforto, mas convocou seus seguidores à conversão, à solidariedade e à denúncia das injustiças (Lc 4,18-21). O culto que busca apenas experiências individuais, soluções mágicas ou conquistas materiais se torna vazio e abominável diante de Deus: “Odeio, desprezo as vossas festas religiosas; as vossas assembleias solenes não me agradam... Retire-se de mim o barulho dos teus cânticos, e que a justiça corra como as águas, e a retidão como um rio perene” (Am 5,21-24). Toda prática espiritual que se alimenta da dor alheia para encher templos, controlar consciências ou enriquecer líderes é anti-evangélica e anticristã. A fé não é espetáculo. O Reino de Deus não é show. O Espírito não é objeto de manipulação emocional. “Onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade” (2Cor 3,17) — e não controle, dependência ou opressão disfarçada de milagre.
O critério do fruto (καρπός) é decisivo. Não se trata apenas de “boas obras” num sentido genérico, mas da consequência concreta de uma vida enraizada no amor, na justiça, na misericórdia — que são o coração da ética de Jesus. A árvore boa é aquela que, mesmo sob o sol escaldante da perseguição, gera vida, resistência, solidariedade. Já a árvore má, mesmo que se cubra de folhas religiosas, produz frutos de exclusão, opressão e vaidade clerical. A parábola aqui se opõe frontalmente à religião da aparência, ao culto desvinculado da vida (cf. Is 1,11-17), à espiritualidade cúmplice do sistema.
A crítica de Jesus se prolonga na história com tons ainda mais agudos. Quantos falsos profetas hoje se escondem sob capas litúrgicas, púlpitos televisivos ou discursos messiânicos nas redes sociais? Prometem bênçãos enquanto sustentam a necropolítica, a homofobia, o racismo, o armamentismo, o negacionismo. Falham nos frutos porque não há raiz no Evangelho, mas interesses de classe, sede de poder e manipulação afetiva das massas. Seus seguidores vivem numa bolha espiritual que simula piedade, mas impede a transformação. O próprio Jesus já o advertira: “Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim” (Mt 15,8).
A hermenêutica libertadora exige que nos perguntemos: que frutos tenho produzido? Minhas palavras edificam ou apenas agradam? Meus gestos libertam ou apenas acomodam? O verdadeiro profeta incomoda, não porque quer ser do contra, mas porque ama profundamente e, por isso, não se conforma com o mundo como está (cf. Rm 12,2). Ele não alimenta a religião do conforto, mas da conversão. Sua linguagem pode ferir, mas é ferida que cura. A falsa profecia, ao contrário, anestesia, aliena, infantiliza. Alimenta-se da religião espetáculo, do culto ao líder e da indiferença social.
Nos tempos atuais, é urgente resgatar a profecia do discernimento. Precisamos aprender a reconhecer os frutos. Há líderes que gritam o nome de Deus mas espalham ódio, medo e exclusão. Há comunidades que cantam louvores enquanto rejeitam os refugiados, os LGBTQIA+, os pobres, os pretos, as mulheres. Tudo isso são frutos amargos, que denunciam a raiz doentia de uma fé colonizada e de um cristianismo deformado pelo mercado, pelo militarismo e pela idolatria da tradição morta.
Discernir os falsos profetas é hoje tarefa de sobrevivência espiritual e resistência histórica. Não basta repetir dogmas, é preciso encarnar o Evangelho. Não basta parecer justo, é preciso viver a justiça. Não basta pregar, é preciso dar frutos. E como disse Jesus: “Pelos seus frutos os conhecereis” — e também sereis conhecidos.
DNonato – Teólogo do Cotidiano, entre a denúncia profética e o anúncio da esperança, no altar da vida, com incenso da justiça.
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