Entre Elias e João, entre o fogo e o Jordão, caminhamos com os olhos no Reino e os pés firmes na história.
O nascimento de João Batista, tal como narrado por Lucas, não é apenas o relato de um milagre doméstico em meio a um casal idoso e estéril. É o sinal de que Deus continua intervindo na história por vias inesperadas, rompendo a lógica da esterilidade espiritual, social e institucional. Zacarias, que emudece por sua incredulidade, e Isabel, que carregava em si o estigma do silêncio social, tornam-se os primeiros porta-vozes de uma nova economia da graça. A realização da promessa não se dá pela força humana, mas pela fidelidade divina que escolhe os humildes, os esquecidos, os que não contam nas genealogias do poder (cf. 1Cor 1,27-28).
Ao insistirem no nome “João” — que significa “Deus é misericordioso” —, os pais rejeitam a tradição onomástica patriarcal. Esse gesto aparentemente simples já inaugura uma ruptura: Deus começa a escrever uma nova história que não se curva às convenções familiares nem aos caprichos religiosos. O nome de João é um sinal de que o agir de Deus não é herança biológica, mas vocação profética. E essa vocação começa não no centro, mas na periferia; não no palácio ou no Templo, mas no deserto. O menino cresce longe das estruturas corrompidas, em lugar de silêncio e liberdade, onde não há templos nem altares luxuosos, mas há céu aberto, pão simples e escuta radical.
É nesse deserto que ressoa a voz de Isaías, o profeta do exílio e da esperança: “Voz do que clama no deserto: preparai o caminho do Senhor, endireitai suas veredas!” (Is 40,3).
Essa voz não surge de improviso. João é chamado desde o ventre. Ainda em gestação, ele é o primeiro a reconhecer a presença do Messias — e não com palavras, mas com o estremecimento do corpo (cf. Lc 1,41). A primeira teofania joanina acontece no encontro entre duas mulheres, Maria e Isabel, dois ventres grávidos de promessa e revolução (cf. Lc 1,39-45).
João salta, vibra, dança no útero, como que proclamando: “Ele está aqui!”. Antes de pregar no Jordão, João já profetiza no ventre, reconhecendo Aquele que viria depois dele, mas que é antes de tudo. Esse encontro intrauterino não é apenas afeto familiar; é o início de uma missão que se cumpre com crescente consciência: “Eu não o conhecia, mas para que Ele fosse manifestado a Israel, vim batizando com água” (Jo 1,31). João, mesmo crescendo no deserto, permanece conectado ao Mistério. Quando enfim vê Jesus caminhando à beira do Jordão, ele exclama, com a precisão de quem esperou uma vida inteira por aquele momento: “Eis o Cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo!” (Jo 1,29).
Da criança que saltou no ventre ao profeta que aponta o Cordeiro, há um fio invisível de fidelidade e escuta. João não age por conveniência ou prestígio; ele reconhece, indica e se retira: “É necessário que Ele cresça, e que eu diminua” (Jo 3,30).
Essa transição, contudo, não foi sem tensões. Os próprios evangelhos registram que, em determinado momento, os discípulos de João questionam Jesus (cf. Lc 7,18-23), revelando que a passagem do profetismo joanino ao seguimento do Messias não se deu de forma homogênea. Alguns grupos continuaram a seguir João mesmo após sua morte, mantendo seu batismo e sua memória profética. Tradições extracanônicas — como as Homilias Clementinas, de provável origem judaico-cristã e hoje consideradas literatura apócrifa — preservam ecos de uma rivalidade entre os seguidores dos “dois profetas”. Ainda que envoltas em linguagem simbólica, essas narrativas revelam uma tensão real entre movimentos que disputavam o sentido da fidelidade ao Deus de Israel.
O evangelho de João responde a essa tensão com delicadeza teológica. Ao omitir o batismo de Jesus por João e colocar nos lábios do Batista o reconhecimento definitivo — “Eu vi e dou testemunho de que este é o Filho de Deus” (Jo 1,34) —, a comunidade joanina evita o conflito, honra a memória do profeta e afirma: João não é a luz, mas veio para dar testemunho da luz (Jo 1,8). Em tempos de disputas eclesiais por autoridade, influência e “paternidade espiritual”, essa atitude é pedagógica: o verdadeiro profeta sabe quando é hora de sair de cena.
A trajetória de João ecoa a de Elias, o profeta do fogo que confrontou a idolatria e desmascarou a aliança perversa entre religião e política nos tempos de Acab e Jezabel (cf. 1Rs 17–19). Ambos vivem à margem, alimentam-se com o mínimo, vestem-se sem ostentação (cf. Mt 3,4), e mantêm distância dos palácios e dos privilégios. Eles não pregam para agradar, mas para despertar. Elias denunciou o adultério espiritual de Israel; João denunciou o adultério moral e político de Herodes (cf. Mt 14,3-4). E ambos pagaram caro por isso. Mas como afirmou Jesus, João é o Elias que devia vir (cf. Mt 11,14; Lc 1,17) — não como repetição literal, mas como encarnação do mesmo espírito de denúncia, justiça e fidelidade ao Deus da Aliança.
A tradição patrística leu João Batista como ponte entre as duas margens da revelação. Agostinho o compreendeu como o último profeta da antiga ordem e o primeiro a apontar o Cordeiro de Deus, sinalizando a chegada do Reino. Orígenes via em seu batismo uma pedagogia divina de transição: não é o fim da Lei, mas o caminho para a Graça. João não substitui Elias; ele o atualiza. Não é reencarnação, mas reinauguração. Seu profetismo não é repetição de fórmulas, mas resposta viva ao contexto concreto. Ele denuncia não só pecados individuais, mas as estruturas que sustentam a injustiça. Sua voz exige conversão real, ética, comunitária e histórica — não apenas ajustes morais privados.
Essa ousadia não está ausente do magistério atual da Igreja. O Papa Francisco, em Evangelii Gaudium, recorda que a missão evangelizadora não pode se restringir à conservação de estruturas estéreis, mas deve ser ousada, movida pelo Espírito, uma Igreja “em saída”, que prefere os riscos da rua à estagnação das sacristias (EG 49). João já encarnava essa dinâmica muito antes. Não esperava que o povo fosse ao Templo: foi ao deserto, ao Jordão, às margens do sistema religioso (cf. Lc 3,2-3). Seu batismo era um choque de realidade, um grito contra a acomodação, uma convocação ao recomeço. Preparar o caminho do Senhor não era um slogan espiritual, mas uma convocação ética à transformação da vida e da sociedade.
Na mesma linha, Laudate Deum denuncia as alianças espúrias entre destruição ambiental, economia extrativista e falsas espiritualidades que sacralizam o lucro. João, com sua vida austera e sua palavra incisiva, é um contraponto vivo às religiões do mercado e aos pregadores de paletó e microfone dourado. Muitos dos que hoje falam em nome de Deus o fazem a serviço do capital, da violência simbólica e do negacionismo. Propagam uma teologia que justifica o ódio aos pobres (cf. Am 2,6-7), a exclusão das mulheres, a criminalização dos indígenas e dos migrantes (cf. Ex 23,9). Essa teologia do lucro é o novo Baal de nossos dias. E, como Elias e João, somos chamados a confrontá-la com coragem e fidelidade.
A espera pela segunda vinda de Cristo não pode ser passiva, adormecida em rituais e dogmas fossilizados. A verdadeira espera é ativa, comprometida com os sinais do Reino (cf. Mt 25,31-46). É tempo de conversão encarnada, que se expressa em compromisso com os que sofrem, com os que são silenciados, com os que resistem. Como João, precisamos ser voz que clama no deserto dos sistemas religiosos esvaziados e das democracias corroídas. Como Elias, devemos incendiar os falsos altares com a verdade do Reino (cf. 1Rs 18,38-39). Não há boa nova sem denúncia do que aprisiona. Não há batismo verdadeiro sem transformação da realidade.
Lucas conclui dizendo que João “crescia e se fortalecia em espírito” (Lc 1,80), e isso não se refere a um desenvolvimento individualista, mas à maturidade espiritual que nasce da escuta profunda e da resistência fiel. Em tempos de fé diluída e religiosidade performática, crescer em espírito significa resistir ao comodismo, denunciar as idolatrias (cf. 1Jo 5,21), manter-se fiel mesmo que isso custe a cabeça (cf. Mc 6,27-28). O martírio de João não é acidente de percurso: é consequência da coerência. É sinal de que sua palavra tocou o nervo do sistema. Que a pergunta que um dia ecoou entre os vizinhos — “O que será deste menino?” — (Lc 1,66) ecoe hoje em nossas comunidades como provocação e juízo: que tipo de cristãos estamos formando? Seremos vozes proféticas que anunciam o Reino e denunciam os ídolos de nosso tempo? Ou seguiremos repetindo fórmulas que acalmam consciências, mas não transformam a história?
O Reino não virá com palmas, cruzes douradas ou slogans triunfalistas. O Reino vem com justiça (cf. Is 11,1-5), com verdade (cf. Sl 85,11), com a coragem de João e o fogo de Elias. Entre o deserto e o Jordão, entre o grito e o martírio, entre o ventre e a cruz, somos chamados a preparar caminhos onde a vida possa florescer — ainda que custe tudo.
DNonato – Teólogo do Cotidiano
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