quinta-feira, 18 de dezembro de 2025

Um olhar sobre Mateus 1,18-24

 

Na caminhada litúrgica do Advento, a Igreja proclama Mateus 1,18-24 em dois momentos decisivos, envolvendo-o num tecido amplo de promessas, salmos e confissões de fé que ajudam a comunidade a ler o mistério da encarnação a partir da história concreta. No dia 18 de dezembro, na 3ª semana do Advento, este evangelho é iluminado por Jeremias 23,5-8, onde ecoa a promessa de um rebento justo da casa de Davi que governará com sabedoria, fará valer o direito e instaurará a justiça na terra, em contraste com pastores infiéis que dispersam o povo. O Salmo 71(72) prolonga essa esperança ao cantar um rei que julga com justiça, defende os pobres, salva os filhos dos necessitados e faz florescer a paz, revelando que a realeza sonhada por Israel é inseparável da justiça social e da dignidade dos vulneráveis. Já no 4º Domingo do Advento, Ano A, o mesmo texto de Mateus ressoa em diálogo direto com Isaías 7,10-14, o sinal oferecido a Acaz: a jovem que concebe e dá à luz um filho chamado Emanuel, “Deus conosco”, sinal de que o Senhor permanece fiel mesmo quando o poder político vacila e a fé se reduz a cálculo estratégico. O Salmo 23(24) desloca a atenção para a pergunta ética e espiritual sobre quem pode subir à montanha do Senhor e permanecer em sua presença, apontando para mãos limpas, coração puro e uma vida não entregue à falsidade. A segunda leitura, Romanos 1,1-7, insere o nascimento de Jesus no horizonte pascal e missionário, proclamando-o descendente de Davi segundo a carne e constituído Filho de Deus com poder pela ressurreição, lembrando que a encarnação já contém em si o germe da cruz, da vida nova e do envio apostólico. É nesse horizonte litúrgico, bíblico e histórico que Mateus 1,18-24 deve ser escutado, não como narrativa intimista, mas como anúncio subversivo de um Deus que entra na história por caminhos que desinstalam religiões acomodadas e poderes seguros de si.

A Boa-Nova de Jesus Cristo segundo São Mateus, ao narrar a origem humana do Messias, não começa com um relato idílico do nascimento, mas com uma crise. Antes do presépio, há o conflito. Antes do canto dos anjos, há o silêncio de um homem justo que precisa decidir o que fazer quando a realidade rompe seus projetos. Maria está grávida. O texto não suaviza o impacto dessa frase. No contexto do judaísmo do século I, Maria estava juridicamente ligada a José por um noivado que tinha força legal. Não era uma promessa frágil, mas um vínculo reconhecido social e religiosamente. A gravidez, antes da coabitação, colocava a mulher sob suspeita de adultério e o homem sob a pressão da honra pública. O evangelho nos obriga a entrar nesse mundo concreto, onde fé e vida não se separam. José é apresentado como justo. Em Mateus, a justiça não é simples observância fria da Lei, mas fidelidade ao projeto de Deus revelado na Torá e nos profetas. José conhece a Lei que poderia legitimar a rejeição pública de Maria. Conhece também o peso social de assumir uma gravidez que não compreende. Entre o direito e a compaixão, ele escolhe o caminho mais difícil: proteger Maria em silêncio. Aqui, Mateus redefine a justiça bíblica à luz da misericórdia, antecipando aquilo que Jesus dirá mais tarde ao citar Oséias: “Quero misericórdia e não sacrifício”. A Lei, quando separada da vida, torna-se instrumento de violência religiosa.

Esse dado tem enorme densidade antropológica e psicológica. José enfrenta a frustração de expectativas, o colapso de um projeto afetivo e socialmente reconhecido, e a ameaça de perder seu lugar simbólico na comunidade. Muitos reagiriam com agressividade, autoproteção ou fuga. José reage com responsabilidade ética. Sua masculinidade não se constrói pelo controle do corpo de Maria, mas pela capacidade de renunciar ao próprio orgulho para preservar a vida do outro. Num mundo patriarcal, esse gesto é profundamente subversivo.  É nesse espaço de silêncio que Deus fala. O anjo aparece em sonho. Na Bíblia, o sonho é território de revelação que respeita o tempo humano. Deus não invade, propõe. Assim foi com Jacó, com José do Egito, com os profetas. A revelação não elimina o drama, mas o ilumina. O anjo não oferece provas, não promete prosperidade, não garante reconhecimento social. Apenas revela a origem do que acontece e confia a José uma missão: não temas acolher Maria, porque o que nela foi gerado vem do Espírito Santo. A fé bíblica não é certeza absoluta, mas confiança obediente.

Dar o nome à criança é o ponto decisivo. Ao chamar o menino de Jesus, José o reconhece como filho e o insere legalmente na descendência de Davi. Esse gesto silencioso cumpre as promessas feitas a Israel e conecta o nascimento de Jesus à história da salvação narrada nas Escrituras. Mateus cita Isaías 7,14 não como prova isolada, mas como releitura à luz do acontecimento. O sinal dado a Acaz, originalmente ligado a uma crise política concreta, ganha plenitude de sentido na experiência da comunidade cristã que reconhece em Jesus o Emanuel definitivo. A Escritura se revela como memória viva, aberta ao futuro. A virgindade de Maria, única na história bíblica, não é negação da corporeidade, mas afirmação radical da iniciativa de Deus. O texto não sustenta uma espiritualidade desencarnada nem uma moral de pureza opressiva. Afirma que a salvação não nasce do poder masculino, da linhagem biológica ou do mérito religioso, mas da graça que surpreende a história. Toda teologia da prosperidade é desmentida aqui. Deus não escolhe o palácio, escolhe uma casa simples. Não começa pelo triunfo, mas pela vulnerabilidade. Não recompensa os fortes, mas confia aos pequenos um papel central na história da salvação.

Maria, embora silenciosa nesta perícope, é presença decisiva. Seu corpo torna-se lugar da promessa. Ela carrega em si a tensão entre dom e risco, entre graça e ameaça social. A tradição lucana explicitará seu consentimento consciente, mas Mateus a apresenta dentro do drama comunitário, lembrando que a fé não é apenas experiência individual, mas acontecimento que afeta relações, estruturas e reputações. A sociologia do texto revela como o corpo feminino é campo de disputa simbólica, religiosa e moral, algo que atravessa séculos e permanece atual.

O nome Emanuel atravessa toda a narrativa como chave teológica. 

Esse modo como José é avisado do desígnio de Deus também se esclarece quando colocado em paralelo com os outros evangelhos. Mateus é o único que centra a revelação diretamente em José, fazendo do sonho o espaço privilegiado da comunicação divina, em continuidade com a tradição veterotestamentária. Em Lucas, a anunciação acontece a Maria, de forma dialogal e consciente, e José permanece em segundo plano, recebendo a missão indiretamente, pela confiança na palavra da esposa e pela obediência cotidiana. Marcos, por sua vez, não narra a infância de Jesus, começando seu evangelho já com o ministério público, o que indica que, para ele, a identidade de Jesus se revela progressivamente na prática histórica e não na origem biográfica. João, de modo ainda mais teológico, silencia totalmente sobre o nascimento terreno e proclama que o Verbo se fez carne, deslocando o foco da narrativa para o mistério eterno que irrompe no tempo. Mateus, portanto, ao confiar a José a revelação em sonho e ao narrar sua obediência concreta, sublinha que a encarnação passa também pela escuta masculina, pela responsabilidade legal e pela coragem de acolher o incompreensível. É igualmente significativo que somente Mateus preserve explicitamente o título Emanuel aplicado a Jesus. Enquanto Lucas enfatiza títulos como Salvador e Senhor, e João proclama o Logos feito carne, Mateus insiste em Deus-conosco, não como conceito abstrato, mas como promessa encarnada numa família concreta, numa história marcada por tensões e escolhas éticas. O Emanuel mateano não é apenas verdade dogmática, mas critério de discernimento: se Deus está conosco, Ele se revela no cuidado, na proteção da vida e na fidelidade silenciosa, jamais na lógica do domínio ou da imposição religiosa. Deus conosco não é ideia abstrata, mas presença comprometida com a história real, marcada por conflitos, migrações, perseguições e pobreza. Esse Emanuel desmonta a teologia do domínio, que imagina um Deus aliado ao poder político, econômico ou religioso. Desmonta também o individualismo espiritual, que reduz a fé a experiência privada sem implicações sociais. Se Deus está conosco, Ele está onde a vida é ameaçada, não onde o privilégio é protegido.

O silêncio de José continua sendo denúncia contra o clericalismo de ontem e de hoje. Enquanto muitas lideranças religiosas constroem discursos, José age. Enquanto sistemas religiosos se protegem, ele se arrisca. Sua obediência não busca palco nem reconhecimento. A Igreja, ao proclamar este texto, é chamada a examinar se sua prática se aproxima mais do tribunal ou do sonho, da condenação ou do cuidado.

Os Padres da Igreja reconheceram cedo essa grandeza silenciosa. Irineu viu em José a obediência que recapitula a escuta perdida por Adão. João Crisóstomo destacou sua justiça misericordiosa como modelo para a vida cristã. Agostinho afirmou que José foi pai não pela carne, mas pelo amor e pela responsabilidade, antecipando uma compreensão profundamente humana da paternidade. A patrística não idealiza José, mas o apresenta como homem atravessado pelo mistério.

À luz do Concílio Vaticano II, especialmente da Gaudium et Spes, este texto reafirma que as alegrias e angústias da humanidade são também as da comunidade dos discípulos de Cristo. A Evangelii Gaudium denuncia uma fé autorreferencial, desconectada da realidade. Mateus 1,18-24 propõe o oposto: uma fé que se compromete com a história, mesmo quando ela é incômoda. A Fratelli Tutti, ao insistir na fraternidade concreta, encontra eco nesse lar improvável onde Deus decide habitar.Assim, o Advento proclamado neste evangelho não é espera passiva nem consumo religioso de símbolos natalinos. É tempo de discernimento, de escolhas éticas, de escuta profunda. José nos ensina que acolher Deus implica, muitas vezes, renunciar à própria segurança. Maria nos lembra que a promessa passa pelo corpo e pela história. Emanuel nos garante que Deus não abandona seu povo, mesmo quando a fé parece frágil e a esperança ameaçada. Esse texto continua sendo boa-nova perigosa, capaz de desinstalar teologias do poder, denunciar religiões de mercado e convocar a Igreja a uma fidelidade encarnada, profética e profundamente humana.

A expansão desse relato permite ainda perceber como Mateus constrói uma verdadeira teologia da história a partir de um acontecimento doméstico. O evangelista escreve para uma comunidade marcada por tensões com o judaísmo oficial, por perseguições e por dúvidas internas sobre a identidade de Jesus. Ao insistir na origem davídica e, ao mesmo tempo, na iniciativa absoluta de Deus, Mateus responde a duas tentações recorrentes: reduzir Jesus a um líder político nacionalista ou espiritualizá-lo a ponto de esvaziar sua humanidade concreta. O nascimento de Jesus, tal como narrado aqui, impede ambas as reduções. Ele é plenamente inserido na história de Israel e, ao mesmo tempo, absolutamente livre das lógicas de poder que costumam governar essa mesma história.

A figura de José ganha ainda mais relevância quando lida à luz da tradição sapiencial. O justo, nos Salmos e nos Provérbios, não é aquele que nunca erra, mas aquele que orienta sua vida pelo temor do Senhor, isto é, pela consciência de que Deus não pode ser instrumentalizado. José não usa Deus para justificar seus ressentimentos, nem usa a Lei para mascarar sua dor. Ele se deixa conduzir por uma escuta que passa pela noite, pelo sonho, pelo não controle. Em termos filosóficos, trata-se de uma ética da responsabilidade, próxima daquilo que pensadores contemporâneos identificam como resposta ao rosto do outro. Maria não é um problema a ser resolvido, mas uma vida a ser protegida.

Esse dado confronta diretamente modelos religiosos baseados no desempenho moral e na visibilidade pública. A teologia do mérito, tão presente em discursos religiosos contemporâneos, entra em colapso diante desse texto. José não é escolhido porque é forte, influente ou exemplar aos olhos da sociedade, mas porque é capaz de obedecer sem garantias. Maria não é exaltada por adequação a padrões culturais, mas porque seu corpo se torna espaço de passagem do impossível de Deus. O Advento, assim, denuncia toda tentativa de transformar a fé em produto, promessa de sucesso ou moeda de troca espiritual.

O símbolo do sonho merece ainda maior atenção. Diferente de visões extáticas ou manifestações espetaculares, o sonho bíblico acontece no intervalo entre consciência e inconsciente. Ele toca dimensões profundas do humano, onde medos, desejos e memórias se entrelaçam. Deus fala nesse lugar porque ali o ser humano não se defende com máscaras sociais. Psicologicamente, José é alcançado onde sua razão já não consegue sustentar-se sozinha. Teologicamente, isso revela um Deus que respeita processos, que não violenta a liberdade, mas a amadurece. Num contexto religioso marcado pelo excesso de respostas prontas, o sonho de José legitima o tempo da escuta e do discernimento.

O nome Jesus, dado por José, carrega em si uma teologia da salvação profundamente concreta. “Deus salva” não significa fuga do mundo, mas libertação dentro da história. Mateus explicita: ele salvará o seu povo dos seus pecados. Pecado, aqui, não se reduz à moral individual, mas inclui estruturas de injustiça, exclusão e violência legitimadas religiosamente. Salvar dos pecados é libertar de tudo aquilo que desumaniza. Essa afirmação desmonta leituras individualistas da salvação e confronta espiritualidades que ignoram as dimensões sociais do mal.

A presença de Isaías como pano de fundo reforça essa leitura histórica. O sinal do Emanuel surge num contexto de crise política, medo coletivo e alianças duvidosas. Acaz prefere a segurança militar à confiança em Deus. Mateus relê esse episódio mostrando que Deus continua oferecendo sinais, mesmo quando líderes falham. Porém, o sinal agora não é uma estratégia de sobrevivência nacional, mas uma criança vulnerável. A lógica divina inverte expectativas: a esperança não nasce do acúmulo de poder, mas da fidelidade silenciosa.

O Salmo 23(24), proclamado no 4º Domingo do Advento, amplia ainda mais o horizonte ético do texto. Perguntar quem pode subir a montanha do Senhor é perguntar quem pode realmente acolher o Emanuel. Mãos limpas e coração puro não são metáforas moralistas, mas expressões de uma vida não capturada pela mentira, pela exploração e pela idolatria. José encarna essa subida sem alarde. Ele não reivindica títulos religiosos, não se coloca acima dos outros, não transforma sua experiência em capital simbólico. Sua justiça é discreta, mas profundamente transformadora.

Romanos 1,1-7, por sua vez, impede qualquer leitura romântica do nascimento de Jesus. Paulo liga desde o início a encarnação à cruz e à ressurreição. O filho nascido de Maria é o mesmo que será constituído Filho de Deus com poder pela ressurreição. O Advento já contém a Páscoa em germe. Isso impede que a fé se torne fuga infantil da realidade. O Emanuel nasce para atravessar a morte, não para evitar o conflito.

A crítica ao clericalismo encontra aqui um fundamento evangélico sólido. José não pertence à classe sacerdotal, não ocupa cargos religiosos, não exerce autoridade institucional. Ainda assim, é a ele que Deus confia o cuidado direto do Mistério. Isso desautoriza qualquer compreensão elitista da mediação religiosa. Deus age fora dos centros oficiais de poder e continua confiando sua obra a homens e mulheres comuns. A Igreja, quando se distancia dessa lógica, trai o Evangelho que proclama.

A tradição patrística reforça essa leitura ao apresentar José como guardião do mistério, não como seu dono. Ele protege sem possuir, orienta sem dominar, obedece sem servilismo. Essa postura inspira uma eclesiologia do serviço e não do controle. Em tempos de escândalos de poder e abusos espirituais, Mateus 1,18-24 torna-se palavra crítica e libertadora.

Do ponto de vista antropológico, o texto revela como os grandes eventos da fé passam por mediações familiares, afetivas e corporais. Deus não ignora as estruturas sociais, mas as atravessa. O nascimento de Jesus acontece dentro de um arranjo familiar frágil, ameaçado, deslocado. Isso ilumina situações contemporâneas de famílias não idealizadas, marcadas por rupturas, recomposições e vulnerabilidades. O Evangelho não começa com um modelo perfeito, mas com um cuidado possível.

O Advento, à luz dessa perícope, torna-se então tempo de conversão das imagens de Deus. Não o Deus do sucesso religioso, não o Deus da dominação moral, não o Deus cúmplice de sistemas opressores. Mas o Deus que confia sua presença a quem é capaz de acolher, proteger e caminhar na obscuridade. Emanuel não é slogan litúrgico, é compromisso existencial.

Ao expandir o olhar sobre José, Maria e o menino, o texto convida a Igreja a reler sua missão num mundo marcado por desigualdades, polarizações e mercantilização da fé. A teologia da prosperidade promete controle; Mateus anuncia confiança. A teologia do domínio busca conquista; o Evangelho propõe serviço. O individualismo espiritual fecha-se no eu; o Emanuel inaugura o nós. A fé como mercadoria vende segurança; o Advento oferece risco e esperança.

Assim, Mateus 1,18-24 permanece palavra incômoda e necessária. Ele não permite um Natal sem conflito, uma fé sem ética, uma Igreja sem conversão. Proclamado no final do Advento, esse texto não encerra uma espera, mas inaugura um caminho. Deus está conosco — não para confirmar nossos poderes, mas para desinstalá-los. Não para reforçar nossas certezas, mas para nos ensinar a escutar, como José, no silêncio da noite, a voz que chama à vida

DNonato - Teólogo do Cotidiano 

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