quarta-feira, 28 de maio de 2025

Um breve olhar sobre João 16,16-20

Mais um pouco de tempo e já não me vereis; e outra vez um pouco, e me vereis de novo” (Jo 16,16). Essas palavras de Jesus aos discípulos carregam o mistério da cruz e da ressurreição. O “pouco de tempo” aponta para o intervalo entre a sua paixão e a manifestação gloriosa do Ressuscitado. Trata-se do tempo da ausência, da dor, da confusão — o tempo do escândalo da cruz. Mas é também o tempo da promessa: “vós haveis de chorar e lamentar... mas a vossa tristeza se transformará em alegria” (Jo 16,20). Jesus não promete a eliminação da dor, mas a sua transfiguração. A cruz não é a última palavra; a última palavra é a vida.

A estrutura literária de João 16,16-20 integra o chamado “Discurso de Despedida” (Jo 13–17), no qual Jesus prepara os discípulos para o tempo da ausência e da missão. A expressão “pouco de tempo” carrega uma tensão escatológica. A ausência de Jesus não é definitiva, mas transicional — ecoando o tema do “já e ainda não” do Reino de Deus. A tristeza inicial da comunidade decorre do aparente fracasso da cruz, mas será revertida por uma alegria inabalável (Jo 16,22). Essa alegria não nasce da ausência de problemas, e sim da presença transformadora do Ressuscitado.

A linguagem enigmática de Jesus (“mais um pouco...”) reflete sua pedagogia divina: Ele não explica tudo, mas convida à confiança. Como os profetas do Antigo Testamento, que falavam por meio de símbolos e enigmas, Jesus provoca os discípulos a adentrar na lógica da fé. A ausência não é abandono, é gestação. A imagem que será usada adiante no mesmo capítulo — a da mulher que dá à luz com dores, mas depois se alegra (Jo 16,21) — reforça essa dimensão pascal: da dor nasce a vida nova. Isso remete à promessa de Isaías: “Antes que estivesse de parto, deu à luz; antes que lhe viessem as dores, nasceu-lhe um menino” (Is 66,7), revelando que o tempo messiânico será marcado por reviravoltas de esperança.

No v. 20, Jesus estabelece um contraste entre o mundo e os discípulos: “Vós chorareis, mas o mundo se alegrará.” No contexto joanino, “mundo” (kosmos) representa as estruturas de poder, violência e mentira que se opõem à verdade revelada em Jesus (cf. Jo 1,10-11; 15,18-19). Esse mundo se alegrará com a morte do justo, como já ocorrera com os profetas (cf. Lc 6,23; Mt 23,29-37). No entanto, a alegria do mundo será passageira. A dos discípulos, perene — pois estará enraizada na ressurreição, evento fundante da fé cristã. Como diz Paulo: “Se Cristo não ressuscitou, é vã a nossa fé” (1Cor 15,14).

João não narra a Eucaristia na última ceia, mas o Lava-pés (Jo 13,1-20), exatamente para mostrar que o seguimento de Jesus, no tempo da ausência visível, se dá no serviço e na entrega. Assim, a visão do Ressuscitado prometida por Jesus não será apenas ocular, mas experiencial, espiritual e eclesial: “Quem me ama guardará a minha palavra, e meu Pai o amará, e viremos a ele e nele faremos morada” (Jo 14,23). Ver Jesus, nesse sentido, é reconhecê-lo no partir do pão (Lc 24,30-31), nos pobres (Mt 25,40), na comunidade reunida em seu nome (Mt 18,20), no grito dos injustiçados (Ex 3,7). Essa leitura tem implicações profundas para o presente da Igreja: se hoje parece que Cristo está ausente — diante da dor dos povos, da corrupção institucional e da frieza de muitos líderes religiosos —, a fé pascal nos assegura que “um pouco” ainda, e ele se manifestará de novo. Não como espetáculo triunfalista, mas como presença humilde e concreta nos pequenos sinais do Reino.  Como nos ensina o Apocalipse, escrito também em tempos de perseguição e silêncio divino: “Bem-aventurados os que lavam suas vestes no sangue do Cordeiro” (Ap 7,14). A alegria escatológica dos justos não é alienação, mas esperança ativa, que se alimenta da fidelidade cotidiana. Essa é a alegria que ninguém poderá tirar (cf. Jo 16,22).

No entanto, essa promessa não anula a realidade das tribulações. Ainda hoje, os que acreditam no Ressuscitado devem atravessar a noite das perseguições, das injustiças e dos silêncios de Deus. A fé não nos livra das cruzes, mas nos dá sentido e força para carregá-las. Como disse São Paulo: “Em tudo somos atribulados, mas não angustiados; perplexos, mas não desanimados; perseguidos, mas não abandonados; abatidos, mas não destruídos” (2Cor 4,8-9). Essa esperança ativa é a marca dos que caminham com o Ressuscitado. Mas há também aqueles que, mesmo após a cruz e o túmulo, ainda se recusam a enxergar o Ressuscitado, porque se tornaram administradores da religião — homens de vestes ricas e corações empedernidos. Como não reconhecer, nos tempos de hoje, certos bispos que agem mais como gerentes de empresa do que como pastores do rebanho? Que reduzem a missão da Igreja à lógica da eficiência financeira e do controle burocrático? Que se reúnem não para discernir os clamores do Espírito, mas para avaliar planilhas e deliberar sobre investimentos, recomendando, friamente, que “o dinheiro precisa trabalhar por nós”,  como se a missão da Igreja pudesse ser terceirizada ao capital especulativo?

A alegria de alguns, nestes tempos pascais, não é a da ressurreição do Cristo, mas a satisfação por terem conseguido “sanear as contas” da diocese — com demissões cruéis e cortes impiedosos no sustento dos pequenos funcionários, catequistas, agentes de pastoral — enquanto os banquetes episcopais seguem intocados, e a mesa do bispo continua farta. O altar da Eucaristia contrasta com a mesa da cúria: um é sacramento de doação e partilha; o outro, símbolo de acúmulo e exclusão.

E tudo isso se faz em nome da “ordem”, do “zelo administrativo”, da “boa imagem da diocese”. Vestido com os paramentos mais caros, atento à simetria das mitras e à solenidade das entradas processionais, o bispo se apresenta diante do povo como um senhor feudal — não como servidor do povo de Deus. Não caminha com suas ovelhas, não conhece os seus nomes, não sente o cheiro delas (cf. Papa Francisco, Missa Crismal, 28/03/2013). Suas homilias são genéricas, cuidadosamente desprovidas de qualquer conteúdo profético. Falam da “alegria do Evangelho”, mas evitam nomear a dor do povo. Falam de “família”, mas se esquecem das mães que enterram filhos por falta de políticas públicas. Falam de “vida”, mas silenciam diante da fome institucionalizada e do genocídio da juventude negra. 

Essa figura, tão distante do Cristo Bom Pastor, é fruto de uma cultura eclesial adoecida pelo clericalismo — essa “caricatura do ministério” (cf. Papa Francisco, Discurso à Cúria Romana, 2019), que transforma servidores em patrões, ministros em chefes, e celebrações em teatros litúrgicos. Esses bispos não conduzem rebanhos, administram estruturas. Não cuidam dos feridos, protegem orçamentos. Não rompem com os fariseus, alinham-se a eles.

E ainda ousam se indignar com as vozes proféticas que brotam das comunidades, dos leigos e leigas que resistem, dos pobres que denunciam com sua própria carne o escândalo de uma Igreja cúmplice dos poderosos. Têm medo do povo; por isso, preferem cercas, portões e tapetes vermelhos. Rejeitam a profecia e se escudam na tradição. Usam o magistério como escudo para não se converterem. “Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim” (Is 29,13; cf. Mc 7,6). O Ressuscitado, no entanto, não se deixa domesticar por essa lógica. Ele continua rompendo sepulcros e se revelando aos que têm o coração queimando, mesmo que não tenham poder institucional. Ele aparece onde há partilha, serviço e compaixão. Ele se deixa tocar pelos que choram, pelos que esperam, pelos que ainda acreditam — mesmo em meio a tanta traição e mediocridade. “Sou o bom pastor. O bom pastor dá a vida por suas ovelhas. O mercenário, que não é pastor, abandona as ovelhas e foge” (Jo 10,11-13). Quem hoje está fugindo, e quem está dando a vida?

Diante dessa realidade, não basta lamentar. É preciso despertar. O Espírito que ressuscitou Jesus dos mortos é o mesmo que habita o coração dos batizados. A omissão é pecado. O silêncio é cumplicidade. O Evangelho não é propriedade do clero, nem privilégio dos doutores da Lei: é missão de todo o povo de Deus. Por isso, é chegada a hora de uma nova insurreição da fé — uma rebelião do Espírito nas comunidades de base, nas pastorais vivas, nos movimentos que não se venderam ao sistema, nas paróquias que ainda alimentam a esperança.

Cabe ao laicato, cada vez mais consciente de sua dignidade batismal e corresponsabilidade na missão da Igreja (cf. Lumen Gentium, 33), levantar-se como voz profética diante dos abusos dos que se sentam em tronos episcopais, mas não conhecem o rosto do povo. Cabe às comunidades resgatar o que é essencial: a Palavra, a partilha, a solidariedade, a vida vivida em comunhão — sem medo dos censores da ortodoxia de fachada. É preciso romper com a lógica da obediência cega e do respeito autoritário que ainda impera em tantas estruturas eclesiásticas. Nosso Senhor não nos chamou a servir a homens, mas a construir o Reino. E esse Reino jamais será compatível com o clericalismo opressor, com a extrema direita que se esconde atrás da cruz, com uma Igreja que nega o pobre e negocia com o poder. Como nos ensinou o próprio Jesus: “Não será assim entre vós. Quem quiser ser grande, seja o servo de todos” (Mt 20,26).

Que o Ressuscitado nos dê coragem para anunciar e denunciar. Que Maria, mulher pascal e profeta da esperança, nos acompanhe no caminho. E que, a exemplo de tantos mártires da nossa terra latino-americana — padres, bispos, religiosas e, sobretudo, leigos e leigas — sejamos Igreja em saída, samaritana, insurgente e fiel até o fim.

Porque o Reino não será construído com o dinheiro bem investido da cúria, nem com liturgias de luxo, mas com as mãos calejadas dos pequenos que, mesmo em meio às dores do mundo, continuam a acreditar: “mais um pouco, e me vereis de novo”. 

DNonato – Graduado em História, teólogo do cotidiano, um leigo vivendo o seu sacerdócio batismal.



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