domingo, 11 de maio de 2025

Sete Leões e um mesmo Coração: a ferocidade da fé diante da história

 

Sabemos que, na história da Igreja, tivemos 14 Papas que adotaram o nome Leão. Neste texto, propomos construir um paralelo entre sete deles — número simbólico de perfeição — reconhecendo que todos, em seus pontificados, enfrentaram desafios com elementos em comum, ainda que em contextos distintos.
Sete Papas Leões, ecoando a força do Leão de Judá, marcaram a história da Igreja em épocas diversas:
Leão I defendeu a fé em meio ao caos do colapso romano;
Leão II buscou a unidade e a clareza doutrinal;
Leão IV reconstruiu a esperança em tempos de insegurança;
Leão X enfrentou a eclosão da Reforma Protestante;
Leão XII resistiu às mudanças turbulentas do século XIX;
Leão XIII ousou dialogar com a modernidade nascente;
e Leão XIV, nosso contemporâneo, surge com a missão de curar feridas internas e buscar a reconciliação no seio da Igreja.
Sete “rugidos” de fé ao longo dos séculos, ressoando a força daquele que é o único e verdadeiro Leão: o Leão da tribo de Judá.

Boa leitura.

DNonato

Sete Papas Leões, um só Rugido

Na longa savana da história da Igreja, sete homens assumiram o nome de Leão, um nome que ecoa força, coragem e a rica simbologia do leão no Evangelho de Marcos, representando a realeza do Cristo Servo, aquele que reina servindo. Ao longo de sete épocas distintas, imersos em sete mundos com suas particularidades sociais, políticas e culturais, e confrontados por sete crises singulares que desafiaram a própria essência da fé, suas respostas à perene questão de como manter viva a fé cristã no turbulento cenário mundial ora apresentaram nuances distintas, ora convergiram em princípios fundamentais.

Leão I, o Magno, surgiu em um período de iminente colapso do Império Romano, um tempo de caos social e político onde a barbárie parecia triunfar sobre a civilização. Nesse contexto de desordem, a Igreja, erguendo-se como derradeira fortaleza, abraçou a missão de ser simultaneamente mãe e muralha, oferecendo um farol de esperança em meio à incerteza. Este Leão, teólogo profundamente influenciado por Santo Agostinho, compartilhava a visão da Cidade de Deus como um reino eterno que transcende as ruínas da história terrena, uma fé que oferecia consolo e sentido em um mundo em desmoronamento. Em um tempo de declínio, sua firmeza teológica, alicerçada em uma profunda compreensão pastoral e nutrida pela misericórdia e clareza doutrinal, manifestou-se de forma eloquente em seu Tomo a Flaviano. Essa peça central do Concílio de Calcedônia (451) reafirmou a plena divindade e humanidade de Cristo, oferecendo uma resposta dogmática crucial em um tempo em que diversas interpretações ameaçavam a unidade da fé e o próprio mistério da Encarnação. Sua liderança, contudo, transcendia a esfera teológica, estendendo-se à habilidade diplomática demonstrada em suas negociações com figuras como Átila, buscando proteger Roma da destruição. Séculos mais tarde, Bento XVI também buscaria essa integração de razão e fé na defesa do Mistério, tendo a caridade como método e a verdade como guia, em um mundo confrontado por novos desafios intelectuais e éticos. A profunda compreensão da dignidade humana, presente na firmeza teológica de Leão I, encontraria eco em João Paulo II, que, em tempos modernos marcados por ideologias totalitárias, identificou na Verdade e na dignidade inerente a cada indivíduo o cerne da fé cristã.

Dando seguimento à complexa jornada da Igreja, Leão II, embora menos celebrado, desempenhou um papel crucial como guardião da ortodoxia em um período delicado, onde o equilíbrio entre a firmeza doutrinal e a unidade pastoral se mostrava essencial para a coesão do corpo de Cristo. Sua confirmação do Concílio de Constantinopla III e sua capacidade de corrigir erros com uma abordagem que priorizava a paz e a unidade da Igreja revelam um líder atento à comunhão eclesial, buscando preservar a integridade da fé sem gerar rupturas desnecessárias. Essa postura, marcada pela busca da concórdia, prenuncia, em muitos aspectos, o caminho de discernimento que seria trilhado por Papa Francisco, que também elegeu a misericórdia como um ponto de convergência entre as diversidades de pensamento e prática dentro da Igreja contemporânea.

Em um contexto de desafios distintos, Leão IV enfrentou tempestades tanto literais quanto simbólicas em uma Europa ainda instável após a queda do Império Romano do Ocidente. Erguendo-se como reconstructor de Roma após os devastadores saques sarracenos e restaurador da dignidade litúrgica, ele representou para sua época o que Leão I fora para a sua: um protetor, um edificador e um pastor zeloso, oferecendo segurança e renovação em um tempo de incertezas. Sua Cruz de Leão, erguida na Basílica de São Pedro, transcendia a mera simbologia, encarnando a resistência espiritual em tempos de provação e a reafirmação da centralidade da fé em meio ao caos. O empenho de Leão IV em restabelecer a ordem e salvaguardar a dignidade da fé ressoa com o movimento de renovação litúrgica do Concílio Vaticano II, que, sob a liderança de João XXIII, buscou harmonizar tradição e renovação, adaptando a expressão da fé às necessidades do mundo moderno sem perder sua essência.

No cenário renascentista, marcado não apenas pelo florescimento das artes, mas também por profundas mudanças intelectuais e um crescente questionamento das autoridades tradicionais, Leão X, filho dos Medici, ascendeu à Cátedra de Pedro em meio a um turbilhão de outra natureza: uma crescente crise de autoridade e uma mundanização da Igreja que obscurecia seu testemunho espiritual. A magnificência estética da época, paradoxalmente, ocultava as fissuras que se aprofundavam na fé. A prática controversa da venda de indulgências, utilizada para financiar obras e conflitos, inflamou um crescente descontentamento popular e intelectual, culminando por acender a faísca da Reforma Protestante, em um contexto já tensionado por divergências teológicas sobre a salvação e a autoridade das Escrituras. Diante da figura de Martinho Lutero, um monge agostiniano cuja teologia resgatava a centralidade da graça divina, Leão X optou pela via da excomunhão, formalizada na bula Exsurge Domine (1520), em uma tentativa de silenciar o que já se configurava como um clamor por uma reforma profunda da Igreja. Ironia da história, Lutero, herdeiro espiritual do mesmo Agostinho que outrora sustentara a Igreja nos tempos sombrios de Leão I, transformava a doutrina da graça em uma contundente denúncia contra o poder romano e suas práticas consideradas corruptas. Esse paradoxo revela a complexidade de um momento em que um Papa rejeitava em Lutero a radicalidade agostiniana que havia sido um pilar da Igreja em sua hora mais crítica. Sua decisão, embora compreensível dentro de seu contexto e da defesa da unidade doutrinária, é vista por alguns historiadores como um ponto de inflexão trágico que aprofundou a divisão da cristandade. À semelhança de Paulo VI, que também navegou em águas turbulentas de polarização no século XX, Leão X defrontou-se com o drama de uma Igreja dividida entre passado e futuro, escolhendo, contudo, fechar portas onde outros, posteriormente, buscariam abrir janelas de diálogo ecumênico. Essa postura inflexível de Leão X, ao não buscar uma possível aproximação com a Reforma, ecoa o drama de uma Igreja que, em tempos de acirrada polarização, opta pelo isolamento, como evidenciado nos séculos subsequentes pela bula Unam Sanctam e pela decisão de Paulo IV de condenar qualquer espírito reformista de cunho protestante.

Em um século XIX marcado por profundas transformações sociais e intelectuais, impulsionadas pela Revolução Industrial e pela ascensão de ideologias como o racionalismo e o liberalismo, Leão XII, frequentemente relegado a notas de rodapé da história, representou uma voz conservadora que via nessas novas correntes um perigo para a integridade da fé. Embora sua abordagem seja interpretada por alguns como um retrocesso diante dos avanços da época, é crucial compreender seu profundo zelo pela preservação da pureza da fé em um contexto de rápidas mudanças e da ascensão do racionalismo, cujos excessos ele buscou condenar, restaurando a disciplina católica com firmeza. Em sua preocupação com a manutenção da tradição, Leão XII antecipou a necessidade de uma postura crítica da fé frente às promessas simplistas da modernidade, ainda que seu tempo demandasse também uma maior abertura ao diálogo com a emergente ordem social e política. Em contraste, Leão XIII adotaria essa via dialógica, emergindo como um pontífice fundamental nesse processo, promovendo a abertura da Igreja à modernidade sem comprometer seu compromisso doutrinal, buscando responder aos novos desafios do mundo industrial e da questão social.

Testemunha das profundas convulsões sociais e intelectuais do século XIX, impulsionadas pelo industrialismo, pelo socialismo e pela crescente influência da racionalidade iluminista, Leão XIII confrontou um mundo onde a razão parecia divorciada da fé, o capital desprovido de justiça e a ciência carente de uma bússola ética. Em vez da excomunhão, ele escolheu o caminho do diálogo construtivo. Sua encíclica Rerum Novarum (1891) lançou os alicerces da Doutrina Social da Igreja, buscando reconciliar fé e justiça, tradição e modernidade, oferecendo uma resposta cristã aos dilemas da sociedade industrial e da exploração do trabalho. Tal como Leão I vislumbrou na fé uma resposta ao colapso de seu tempo, Leão XIII, embora apreciasse a beleza das formas da tradição, priorizou a solidez do conteúdo da mensagem evangélica e sua relevância para as novas realidades sociais. Ele se erigiu como um teólogo da esperança no potencial humano redimido, um defensor da dignidade intrínseca dos trabalhadores e um construtor de pontes de verdade entre diferentes perspectivas ideológicas. Sua iniciativa de reconciliar as forças tradicionais e modernas não apenas marcou um ponto de inflexão histórico na postura da Igreja em relação ao mundo contemporâneo, mas também inspirou os ousados passos de papas subsequentes, como João XXIII e João Paulo II, que, em contextos distintos, também reconheceram que a justiça social não é um mero apêndice da fé, mas uma consequência intrínseca de uma vivência autêntica do Evangelho. Sua abordagem visionária continua a inspirar os esforços de papas contemporâneos que se arriscam a responder com misericórdia e discernimento aos desafios de um mundo cada vez mais complexo e polarizado.

Em nosso tempo, Leão XIV, nascido Robert Francis Prevost, um agostiniano como Lutero, mas com uma trajetória de obediência e serviço eclesial que ecoa a dedicação de Leão I, ascende ao cenário global em um momento em que a Igreja se vê confrontada não por ameaças externas, mas por profundas divisões internas que fragmentam sua unidade e obscurecem sua mensagem. A liturgia, que deveria ser fonte de unidade, transformou-se em trincheira ideológica; a doutrina, que deveria iluminar, tornou-se slogan de facções; e a tradição, que deveria conectar com o passado vivo da fé, é instrumentalizada como campo de batalha. Herdeiro do legado de Francisco, que priorizou a misericórdia e o diálogo, Leão XIV parece inclinar-se, desde a escolha de seu nome, a um projeto de reconciliação entre as diversas "vozes" que ecoam dentro da Igreja, buscando restaurar a comunhão e a fraternidade. Sua postura, fundamentada no discernimento evangélico e na escuta atenta das diferentes perspectivas, reflete um dos pilares do pensamento agostiniano: a humildade como pré-requisito para conduzir a Igreja não pela imposição autoritária de uma visão particular, mas pela sabedoria que emana da misericórdia e da busca pela verdade em conjunto.

Como agostiniano em sua formação espiritual, ele compreende a profundidade da interioridade humana e a constante necessidade de conversão pessoal e eclesial. A exemplo de Leão I, reconhece a inseparabilidade entre a reta doutrina e a prática pastoral eficaz. Em sintonia com a abertura de Leão XIII ao diálogo com o mundo moderno, entende que a caridade autêntica não suplanta a verdade, mas a informa e a torna mais persuasiva. E, talvez em contraste com a postura de Leão X diante da nascente Reforma, percebe que a escuta atenta e o diálogo fraterno podem gerar frutos mais abundantes de reconciliação e unidade do que a mera condenação. Seguindo os passos de Francisco, seu antecessor imediato, intui que o mundo contemporâneo, marcado por individualismo e polarização, não se curva ao clamor autoritário, mas pode render-se à força silenciosa do cuidado e da compaixão. E, à semelhança do breve e luminoso pontificado de João Paulo I, ensina que a mansidão e o sorriso fraterno também são formas legítimas e poderosas de um pastor guiar seu rebanho. Para além da ação humana, a fé cristã postula a contínua atuação do Espírito Santo na história da Igreja, guiando-a através dos tempos e suscitando líderes capazes de responder aos desafios de cada época. A análise aqui apresentada, embora centrada na perspectiva papal, reconhece a complexidade da história e a diversidade de interpretações e recepções das ações desses líderes por diferentes grupos dentro e fora da comunidade eclesial.

A escolha de um agostiniano para liderar a Igreja em um período marcado pela sinodalidade, um processo de escuta e discernimento em comunhão, não parece fortuita. Santo Agostinho ensinava que in necessariis unitas, in dubiis libertas, in omnibus caritas – unidade no essencial da fé, liberdade nas questões opináveis e caridade em todas as coisas. Talvez o novo Leão compreenda que o tempo presente clama por menos condenações e mais convites à conversão, por menos disputas estéreis sobre questões secundárias, como as que marcaram a época de Leão X, e por mais empenho em evitar que a fé se fragilize internamente, mesmo que o mundo ao redor não enfrente um colapso material como no tempo de Leão I.

Em resumo: sete leões, sete tempos, sete respostas. Mas um só Cristo, o Leão da Tribo de Judá, a quem todos devem seguir — priorizando a escuta atenta do coração e o diálogo fraterno em detrimento do mero "rugido" autoritário do púlpito.


DNonato – Leigo católico, graduado em História; uma ovelha enlameada, às vezes confundida com pastor, no rebanho do Bom Pastor.


Notas 

 * Outros papas, mesmo sem ostentar o nome "Leão", exerceram lideranças marcantes e "leoninas" em momentos cruciais da história da Igreja, demonstrando coragem e firmeza na defesa da fé e na condução do povo de Deus. Gregório Magno, por exemplo, demonstrou uma força notável ao consolidar a autoridade papal e reformar a liturgia em meio ao caos do século VI, moldando profundamente a Igreja medieval. João XXIII, ao convocar o Concílio Vaticano II, irrompeu com um "rugido" de misericórdia e aggiornamento, buscando revitalizar a Igreja em seu diálogo com o mundo contemporâneo e abrir novos caminhos para a evangelização. Francisco, através de sua opção preferencial pelos marginalizados e seu insistente chamado à compaixão ativa e à reforma das estruturas eclesiais, também encarna uma liderança profética e corajosa, desafiando as zonas de conforto e convidando a Igreja a ser um sinal mais claro do Reino de Deus.

 ** Embora a formulação precisa da máxima in necessariis unitas, in dubiis libertas, in omnibus caritas seja posterior ao século IV, emergindo no contexto das controvérsias do século XVII, o espírito que a anima ecoa profundamente no pensamento de Santo Agostinho, que incessantemente enfatizou a caridade como elo fundamental da comunidade cristã e a busca pela verdade em um contexto de respeito pelas diferentes opiniões dentro da unidade da fé. Essa perspectiva agostiniana permeia, de maneiras diversas, os pontificados analisados, oferecendo um princípio orientador para a navegação em tempos de diversidade e potencial divisão.


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