- Afetos e Simulacros: entre bonecos, distrações e o chamado ao real.
Já foi a febre frenética do spinner, um objeto que prometia acalmar a ansiedade com seu giro hipnótico, mas que talvez apenas mascarasse vazios mais profundos com uma distração sensorial efêmera. Já foi a maleável e grudenta slime, uma experiência tátil que, para alguns, representava uma busca por controle e manipulação em um mundo por vezes caótico. Lembramos dos tamagotchis, pequenos "pets" virtuais que demandavam cuidado constante, talvez preenchendo uma necessidade de responsabilidade e conexão, evocando até mesmo uma nostalgia por uma forma simples de interação e cuidado. Vieram os tênis que piscam, um apelo ao brilho e à identidade infantil, efêmeros como tantos desejos da infância. Os filtros do Instagram nos oferecem a ilusão de uma beleza fabricada, onde a autoaceitação real cede espaço a uma performance constante de uma imagem idealizada e transitória.
Os pets com roupa e sapatinho extrapolam o cuidado animal, projetando neles necessidades humanas de afeto e vestimenta, numa tentativa de construir uma relação de companhia segura e incondicional, performando um papel de "pai" ou "mãe" de um ser que não exige reciprocidade complexa. Os álbuns de figurinhas, com sua busca obsessiva por completar a coleção, talvez acenassem para a necessidade de pertencimento a um grupo e a satisfação de uma conquista, ainda que modesta. E os celulares que viravam febre do dia pra noite, cada novo modelo prometendo uma conexão mais intensa, mas que paradoxalmente pode nos isolar do contato face a face. A cultura midiática e o marketing habilmente exploram esses desejos, vendendo a ilusão de preenchimento emocional através do consumo incessante de novidades.
E agora, por um tempo que talvez também passe, testemunhamos a ascensão dos bebês reborn — bonecos hiper-realistas com cheirinho de recém-nascido e fralda personalizada, vendidos por valores que variam de R$ 2 mil a mais de R$ 12 mil. Têm carrinho, berço e enxoval completo, mimetizando a experiência da maternidade/paternidade em detalhes impressionantes, talvez até como uma forma de performatividade de um papel desejado, uma tentativa de encenar uma identidade afetiva.
Até aí, tudo bem. O ser humano sempre encontrou no lúdico uma forma saudável de expressão e elaboração de sentimentos. A psicologia nos ajuda a entender essa dimensão simbólica do brincar. O problema começa quando se ultrapassa o limite do simbólico, quando a projeção se torna uma tentativa de preencher um vazio afetivo real com um simulacro inanimado. É quando o boneco começa a “tomar vacina”, ir ao pediatra, fazer “ultrassom” antes de nascer. Quando alguém pergunta, sem ironia, se o bebê “mijou ou cagou hoje”. A gente ri, sim — mas por dentro, fica aquele gosto amargo de que não é só brincadeira.
A psicologia fala em mecanismos de compensação afetiva, onde buscamos em objetos ou comportamentos substitutos a satisfação de necessidades emocionais não atendidas. Há o deslocamento emocional, transferindo para um alvo seguro (como um boneco ou um pet) sentimentos que não conseguimos direcionar para as relações humanas complexas. E o conceito de monismo relacional descreve a tendência a fundir a identidade com um objeto de afeição, buscando nele uma completude que falta no mundo real. Em termos simples: quando não conseguimos lidar com um afeto não vivido, uma dor não curada, um sonho não realizado, passamos a amar o que é seguro. E nada é mais seguro do que algo que não reage, não cresce, não exige a complexidade da reciprocidade. O boneco não chora, não morre, não vai embora. É a fantasia do vínculo sem o risco do real.
E isso não se limita aos bonecos. Acontece com os pets tratados como filhos, com a estética fabricada nas redes, com os amores platônicos embalados em playlist, com a fé personalizada como produto de consumo, desvinculada de uma comunidade e de um compromisso ético. Estamos em tempos em que a complexidade do real se torna avassalador, então preferimos o simulacro, a representação palatável de algo que a realidade nos nega ou desafia. A sociologia pode nos ajudar a entender como o individualismo crescente, a fragilização dos laços comunitários e a busca por formas alternativas de pertencimento em um mundo incerto contribuem para essa busca por segurança em objetos.
Viktor Frankl dizia que “o ser humano pode suportar qualquer dor, desde que saiba o porquê”. Mas quando o sentido da vida se desfaz, quando as grandes narrativas parecem ruir, enchemos o peito de distrações, de pequenos prazeres momentâneos que anestesiam a angústia existencial. E é aí que as modas entram: como paliativos do coração. Como distrações existenciais que nos impedem de confrontar o vazio.
A reportagem do Fantástico sobre os reborn revelou isso: o que parecia uma febre inofensiva virou um espelho de nossas carências coletivas. E no reflexo, vimos não bonecas, mas a busca desesperada por um afeto seguro e incondicional. Não brinquedos, mas a manifestação de aflições emocionais profundas. O afeto deslocado dói porque aponta para um mundo onde há muito amor latente — mas quase nenhum lugar seguro e genuíno para colocá-lo.
Essa realidade não é nova — e nem restrita ao nosso mundo. A ficção já a antecipou com inquietante precisão. Na década de 1980, John Byrne reimaginou a origem do Superman na HQ O Mundo de Krypton. Ali, vemos uma sociedade extremamente evoluída em termos tecnológicos, mas emocionalmente árida. Os kriptonianos haviam abandonado os vínculos afetivos em nome da racionalidade e da eficiência. Até a geração de filhos ocorria em laboratórios, com genes escolhidos criteriosamente, gestados em câmaras artificiais — sem toque, sem calor, sem vínculo. Era uma civilização de seres brilhantes, mas solitários. A ausência de interação emocional não foi apenas um detalhe cultural; foi uma das causas de sua ruína. Krypton não explodiu apenas por instabilidade geológica — mas por instabilidade relacional. O coração endurecido levou ao colapso.
Tal como em Krypton, talvez estejamos hoje rodeados de tecnologia, mas famintos de afeto. Cercados de conexões, mas sem comunhão. Construímos mundos de simulação emocional onde nada nos fere, mas também onde nada nos transforma. A Bíblia nos alerta para esse perigo: “Por se multiplicar a iniquidade, o amor de muitos esfriará” (Mateus 24,,12).
Esfriar o amor não é apenas deixar de sentir — é deixar de se importar, deixar de se arriscar, deixar de viver plenamente.
Jesus, ao contrário, encarnou o oposto dessa frieza. Ele não apenas curava corpos, mas tocava corações.
“Jesus chorou” (João 11:35), diz o texto mais curto e mais denso dos Evangelhos, revelando que o divino não se ausenta da dor humana, mas a compartilha.
Ele nos ensinou que amar é sempre arriscado — e é justamente por isso que vale a pena. “Aquele que não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor” (1 João 4, 8).
O Papa Bento XVI, em sua sabedoria, advertia: “Sem Deus, o homem se fecha em si mesmo”, incapaz de transcender suas próprias limitações e encontrar o verdadeiro sentido nas relações com o outro e com o transcendente.
Já o Papa Francisco, com clareza evangélica, nos lembra: “As coisas servem, as pessoas amam. Inverter isso é fonte de sofrimento.”
E de fato, temos feito o contrário: estamos personalizando as coisas, atribuindo-lhes qualidades humanas, enquanto coisificamos as pessoas, reduzindo-as a meros objetos de uso ou descarte em relações líquidas e superficiais.
Esse é o perigo do mundo paralelo que estamos construindo, onde a autenticidade cede lugar à simulação. Coisas que não respiram recebem nomes, pronomes e fraldas, enquanto gente viva é bloqueada, ignorada, descartada com um clique. O boneco tem hora sagrada para dormir, mas o pai real não recebe um telefonema de um filho distante. O pet ganha festa de aniversário elaborada, mas o vizinho que vive sozinho segue invisível em sua solidão. A criança da comunidade continua sem colo, sem história, sem a chance de um futuro digno.
Essa inversão de prioridades reflete a fragilidade dos laços sociais e a busca por um pertencimento artificial, onde a conexão genuína é substituída por uma interação superficial com objetos ou avatares.
O Evangelho vem como luz no meio disso tudo, não para nos condenar por nossas carências — mas para nos devolver à realidade de um amor que se doa, que se arrisca, que se encarna na fragilidade do outro. Ele nos chama à comunhão verdadeira, ao cuidado mútuo e concreto, ao amor encarnado em gestos de serviço e solidariedade.
Porque só ama de verdade quem se abre para a complexidade e a beleza do que vive. E só vive de verdade quem aprende a amar com risco, com entrega, com limite e, inevitavelmente, com as cruzes que o encontro com a alteridade nos impõe.
Que a gente volte ao real, antes que os afetos todos virem silicone, as relações todas virem fantasia e o coração todo vire um mercado de ilusões, onde compramos e vendemos simulacros de amor sem nunca experimentar a riqueza do encontro autêntico.
DNonato – graduado em História, teólogo do cotidiano, indigente do sagrado.
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