Diante de um mundo fragmentado, onde as vozes se perdem em meio ao ruído e os corpos carregam os sinais de uma exaustão que vai além do físico, o Evangelho de Mateus 9,32-38 se apresenta como um sopro de lucidez e esperança. Nele, contemplamos Jesus não como um mero mestre de palavras, mas como aquele que se aproxima, que vê, que sente e age. Seu olhar é o início de toda cura. Um olhar que não se limita à superfície, mas que penetra as entranhas da condição humana — um olhar de compaixão.
É este o olhar que nos salva de verdade: não o do julgamento, mas o da misericórdia. O texto nos convida a nos deixarmos alcançar por esse olhar, a baixarmos nossas defesas e resistências, e a acolhermos, com simplicidade, a boa nova que não apenas consola, mas transforma. O olhar de Jesus não nos rotula nem nos paralisa; ele nos chama de volta à vida. Nesta passagem, encontramos não apenas a narrativa de uma cura física, mas uma denúncia contra estruturas que silenciam, uma convocação à missão, e um chamado à coerência entre fé e ação.
Mateus nos apresenta a figura de um homem mudo, possuído por um espírito maligno. A mudez aqui não é apenas física, mas também teológica e sociológica: representa o impedimento da comunicação com o outro e com Deus, sinal de um aprisionamento que ultrapassa o corpo e atinge a alma. Simboliza o silenciamento das vozes marginalizadas pela sociedade e pela religião. O texto não relata a súplica do homem nem uma fé explícita; o que nos é dado ver é a ação de Jesus que, ao expulsar o demônio, devolve a esse homem a palavra, a capacidade de se comunicar e se reintegrar ao mundo. Há aqui uma restauração existencial que revela o rosto do Deus de Israel: um Deus que escuta os mudos, que vê os invisíveis, que se aproxima dos esquecidos. Essa cura é, ao mesmo tempo, um ato de misericórdia e uma denúncia escatológica. As autoridades religiosas, vendo o milagre, não se alegram, mas acusam Jesus de agir pelo chefe dos demônios. Mateus explicita o abismo entre a compaixão de Jesus e o legalismo dos fariseus. Estes representam a religião fechada em si, desconectada da dor do povo, escrava de sua própria normatividade. A cegueira espiritual deles os impede de reconhecer a presença de Deus no gesto misericordioso. Essa crítica ressoa com os profetas como Isaías (cf. Is 29,13-14) e Jeremias (cf. Jr 23), e ecoa fortemente em Amós: “Abomino vossas festas… antes, corra a justiça como um rio” (Am 5,21-24).
O evangelho então se abre para um panorama mais amplo: Jesus percorre todas as cidades e aldeias, ensinando, curando, libertando. Ele vê a multidão e se enche de compaixão porque estavam exaustas, como ovelhas sem pastor. O termo grego eskulmenoi kai erimmenoi — traduzido por “cansadas e abatidas” — traz a ideia de corpos feridos, lançados ao chão, vulneráveis. O que Jesus vê não é apenas sofrimento físico, mas uma sociedade esfacelada, uma religião incapaz de cuidar, uma população submetida à opressão imperial e ao abandono espiritual. Nesse olhar de Jesus está o olhar do próprio Deus, que em Êxodo 3,7 declara: “Eu vi a aflição do meu povo no Egito... e desci para libertá-lo”.
Essa imagem das ovelhas sem pastor remete a Ezequiel 34, onde o Senhor denuncia os pastores de Israel que se apascentam a si mesmos e abandonam o rebanho. Jesus se apresenta como o verdadeiro pastor, que reconhece o sofrimento das pessoas e se move em direção a elas com ternura e ação. No paralelo de Marcos 6,34, vemos que, ao se compadecer da multidão, Jesus começa a ensiná-la com paciência. Em Lucas 10,2, Ele retoma a expressão “a messe é grande, mas os trabalhadores são poucos”, e imediatamente envia os setenta e dois discípulos. Isso indica que a compaixão gera missão. Jesus não apenas se sensibiliza: Ele forma e envia. Como recorda a Evangelii Gaudium 24, “A comunidade evangelizadora experimenta que o Senhor tomou a iniciativa, precedeu-a no amor (...), sabe dar o primeiro passo, sabe envolver-se, sabe acompanhar, frutificar e festejar”.
A imagem da “messe” nos convida à ação. O Reino de Deus não é passividade, mas colheita que exige trabalhadores. Como bem recorda Santo Agostinho: “Deus que te criou sem ti, não te salvará sem ti. A graça não nos exclui da cooperação; somos chamados a agir, a trabalhar na vinha do Senhor” (De Correptione et Gratia, 23, 27). A oração ao Senhor da messe não é mágica nem alienante. Ela é um chamado à conversão ativa. Quem ora, se compromete. Quem vê a dor do povo, deve deixar-se mover pelas entranhas, como o Cristo. A oração do discípulo não pode ser estéril; deve gerar frutos. Como diz São João Crisóstomo: “Não há nada mais frio do que um cristão que não se preocupa com a salvação dos outros” (Homilias sobre Mateus, homilia 88). E São João, reforçando a fé operante, exorta: “A fé que não produz obras é morta” (cf. Tg 2,17).
É fundamental ampliar esta reflexão à luz da espiritualidade individualista que permeia muitos espaços religiosos hoje. Observamos uma tendência crescente de uma fé centrada no “eu sozinho”, onde as preces, os cânticos e até as pregações são formuladas no singular, diluindo o sentido de pertença comunitária que a fé exige. O uso quase exclusivo do “eu”, “meu” e “minha” em orações e liturgias revela uma relação egoísta com Deus, uma religiosidade que busca antes o bem-estar emocional pessoal do que o compromisso real com o outro e com a missão.
Essa espiritualidade solipsista, longe de ser um caminho de cura e comunhão, transforma a fé em uma espécie de autoajuda, reduzindo o Evangelho a uma doutrina do conforto e da satisfação interior. Perde-se, assim, a dimensão profética e transformadora da fé que clama pela justiça, pela solidariedade e pela construção do Reino. A religião vira um instrumento de escape emocional e psicológico, uma busca por tranquilidade individual que evita o desconforto da responsabilidade comunitária e social.
São João Crisóstomo adverte contra essa religiosidade vazia e egoísta: “Quando oras, não sejas como o hipócrita, pois ele gosta de orar em pé nas sinagogas e nas esquinas das ruas para ser visto pelos homens. Em verdade vos digo que já recebeu sua recompensa” (cf. Mt 6,5). O problema não é a oração em si, mas a intenção egoísta que reduz o relacionamento com Deus a um espetáculo ou a uma busca individualista, sem abrir-se ao mistério da comunhão e da missão. A fé isolada não dialoga, não constrói, não serve. Ela empobrece a alma e torna a Igreja um conjunto de “eus solitários”, enquanto o Evangelho nos convoca a sermos “nós irmãos”.
Santo Agostinho lembra que a fé só salva e transforma quando é alicerçada no amor para com o próximo: “Ama e faze o que quiseres. Se calares, cala por amor; se falares, fala por amor; se corrigires, corrige por amor. Seja o amor o fundamento de todas as tuas ações” (Carta 7, a Proba). O amor é o fundamento comunitário que salva a fé da solidão e do egoísmo.
Nesse sentido, o Concílio Vaticano II resgatou a dimensão eclesial da fé, sublinhando a Igreja como “povo de Deus”, uma comunidade de homens e mulheres que, iluminados pela Palavra e fortalecidos pelo Espírito Santo, vivem uma fé ativa e comprometida no mundo. A Lumen Gentium 12 afirma que “a Igreja existe para evangelizar”, isto é, para levar a Boa Nova a todas as pessoas, o que só pode acontecer se a fé for partilhada, vivida e testemunhada em comunidade.
A sociedade contemporânea, marcada pela solidão, pela cultura da produtividade e pela indiferença, gera multidões igualmente cansadas e dispersas. Pensemos, por exemplo, na crescente epidemia de saúde mental, no aumento da violência urbana e na precarização do trabalho que atinge milhões. A extrema-direita religiosa — que manipula o cristianismo para justificar intolerância, racismo, misoginia e homofobia — está entre os novos fariseus que julgam a libertação dos mudos como obra do “príncipe dos demônios”. Sob o pretexto de defender a moral cristã, acabam promovendo uma ideologia anticristã, negando tudo o que Jesus viveu: acolhida, diálogo, compaixão, escuta, libertação. A religião, quando aliada ao poder opressor, torna-se ídolo. Como disse São João Crisóstomo: “Não há nada mais frio do que um cristão que não se preocupa com a salvação dos outros”.
A pedagogia de Jesus nos ensina que a verdadeira espiritualidade se faz de escuta e de prática. Ele vê, sente e age. Ele não espera ser procurado, vai ao encontro. Ele não se escandaliza com a dor, mas a transforma. Seu olhar cura porque está cheio de misericórdia. E essa compaixão é a chave hermenêutica da missão cristã. Como Marta e Maria, somos chamados à ação e à escuta; como a pomba que alimenta seus filhotes com alimento previamente digerido, devemos partilhar com o mundo aquilo que assimilamos no silêncio da oração e no ardor da leitura orante da Palavra. Como afirma o Documento de Aparecida, “ninguém se salva sozinho, a salvação exige comunidades solidárias e missionárias” (DAp 294).
A Igreja é comparada a uma grande seara que precisa de trabalhadores, mas de trabalhadores que trabalhem. Não há nada mais conforme com o Evangelho do que, por um lado, reunir luzes e forças na oração, na leitura e na solidão, e depois ir partilhar com os homens esse alimento espiritual. É fazer como fez Nosso Senhor e, depois dele, os apóstolos; é juntar a ação de Marta à de Maria; é testemunhar pelas nossas obras quanto amamos a Deus. É nosso dever passar aos atos. Como ensina ainda Santo Agostinho: “Ama, e faze o que quiseres. Se calares, cala por amor; se falares, fala por amor; se corrigires, corrige por amor. Seja o amor o fundamento de todas as tuas ações” (Carta 7, a Proba).
Concluímos esta reflexão com um convite à coerência radical. Que o olhar de Jesus, cheio de compaixão, nos cure da mudez da indiferença, do medo de nos comprometer, da tentação de uma fé sem obras. Que sua compaixão nos mobilize a amar com gestos concretos, a formar comunidades que acolham, que curem, que libertem. Que nossas comunidades sejam verdadeiras casas de misericórdia, espaços de escuta, serviço e compromisso com os pequenos. E que ao final da vida, quando nos encontrarmos com o Senhor da seara, ele possa reconhecer em nossas mãos os frutos do amor vivido.
Que o evangelho de hoje não seja apenas lido, mas encarnado, pois, como afirma o Apocalipse: “Felizes os mortos que desde agora morrem no Senhor. Sim, diz o Espírito, que descansem de suas fadigas, pois suas obras os acompanham” (Ap 14,13). Que sejamos conhecidos por essas obras: obras de compaixão, de justiça, de evangelho vivido no concreto da história.
DNonato – Teólogo do Cotidiano
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