domingo, 6 de julho de 2025

Um breve olhar sobre Mateus 9, 18-26

Nesta Segunda-feira da 14ª Semana do Tempo Comum, somos conduzidos pelo Evangelho a uma cena profundamente humana e, ao mesmo tempo, radicalmente divina: Jesus se deixa tocar e interromper por duas realidades de sofrimento — a dor pública da perda de uma filha e a dor privada de uma mulher marcada pela exclusão. Duas figuras, um chefe da sinagoga e uma mulher anônima, se aproximam de Jesus rompendo protocolos sociais, religiosos e culturais. Mateus, ao narrar esse episódio também registrado em Marcos (5,21-43) e Lucas (8,40-56), o faz de maneira mais direta, enfatizando o poder da fé e o gesto de compaixão de Jesus como centro do relato.

Ambos os personagens se arriscam. O chefe da sinagoga, provavelmente alguém respeitado dentro da instituição religiosa, se curva diante de Jesus, reconhecendo que mesmo a morte pode ser vencida por Ele. A mulher, marcada por doze anos de fluxo de sangue — uma condição que, à luz da Lei (cf. Lv 15,25-27), a tornava impura e excluída do convívio social e religioso —, decide romper o silêncio que lhe era imposto. Ela toca o manto de Jesus por trás, pois tocar um homem, ainda mais um mestre, seria considerado escandaloso. Contudo, é nesse gesto clandestino que Jesus revela o rosto do Deus que não apenas permite ser tocado, mas que reconhece e valoriza a fé de quem o procura com sinceridade.

Jesus não só cura. Ele vê. Ele se volta. Ele dá palavra a quem a sociedade silenciava. Ele diz: “Coragem, filha!” — chamando de “filha” uma mulher até então considerada impura. Este não é apenas um gesto de afeto, mas uma ruptura com toda uma estrutura patriarcal e religiosa que desumanizava. Nesse gesto, Jesus desmantela não apenas uma enfermidade, mas toda uma ideologia de exclusão.

Neste texto, a fé não é um ato religioso intimista, mas um movimento de libertação. Fé é atravessar barreiras, é acreditar que o toque do Cristo é mais forte que as normas de pureza, que o medo, que a morte. Fé é insurgência amorosa contra as estruturas que matam. A mulher e o chefe da sinagoga são modelos de fé que se arriscam e, por isso, encontram vida.

Neste episódio, Jesus é o oposto do sistema religioso que se distancia do sofrimento humano em nome de uma santidade estéril. Diferente de uma religião que impõe pesos sem tocar a dor do povo (cf. Mt 23,4), Jesus se deixa tocar, se faz acessível, se compadece. A religião institucional — especialmente quando controlada por castas clericais, fundamentalistas ou por interesses políticos — tende a transformar o sagrado em controle e o culto em espetáculo. Mas Jesus, o Filho do Homem, desvia-se dos caminhos do poder e das elites religiosas para encontrar-se com os pobres, as mulheres, os excluídos, os que choram. E neles, revela a presença viva de Deus.

A mulher anônima do Evangelho, silenciada pela religião e pela cultura de seu tempo, torna-se símbolo das muitas mulheres que, ao longo da história da Igreja, foram mantidas à margem dos espaços de decisão, mesmo sendo a espinha dorsal da vida eclesial nas comunidades, nas famílias e na missão. No entanto, o gesto de Jesus que rompe com essa exclusão ecoa hoje nos processos sinodais impulsionados pelo saudoso Papa Francisco, que abriu caminhos concretos para uma Igreja mais inclusiva, participativa e sensível à voz das mulheres. Ele nos alertava com clareza: “Não podemos continuar a manter as mulheres à margem da vida da Igreja” (Evangelii Gaudium, 103). O Documento de Aparecida já reconhecia que “é hora de a mulher ser mais valorizada na sua dignidade e nos seus dons” (DAp, 451). No caminho do Sínodo sobre a Sinodalidade, que marcou profundamente a Igreja do século XXI, ouvimos repetidamente o clamor de que as mulheres sejam não apenas colaboradoras, mas co-partícipes na tomada de decisões, nos ministérios instituídos e na reflexão teológica. A sinodalidade, como escuta mútua e discernimento comunitário, tem reconhecido a urgência de integrar plenamente a experiência, a espiritualidade e a liderança das mulheres nos processos eclesiais. Embora os avanços ainda encontrem resistências por parte de setores clericalistas e tradicionalistas que insistem em manter estruturas hierárquicas rígidas e masculinizadas, é inegável que o Espírito continua a soprar, convidando-nos a romper com modelos de Igreja patriarcal e a construir comunidades onde as mulheres não sejam apenas acolhidas, mas reconhecidas como protagonistas do Reino — à imagem daquela mulher do Evangelho que, pela fé e ousadia, tocou o manto de Jesus e antecipou, com seu gesto, o novo modo de ser Igreja que hoje queremos viver.

A pedagogia de Jesus nos ensina a escutar os clamores que muitas vezes não são ditos com palavras. A mulher do Evangelho representa as muitas mulheres de ontem e de hoje silenciadas, patologizadas, invisibilizadas. Seja pela religião que as cala, pela política que as ignora, pela sociedade que as julga, ou pela psicologia que, às vezes, as reduz a sintomas. Jesus, ao vê-la, reconhece a dignidade roubada e restitui sua voz. Este é um caminho pedagógico: ver, escutar, reconhecer e devolver a palavra ao oprimido.

Não podemos ignorar o simbolismo do número doze presente nos dois casos: a menina de doze anos, a mulher que sofria há doze anos. O número doze, que na tradição judaica remete às doze tribos de Israel, representa o povo inteiro. É como se Mateus quisesse dizer: todo o povo precisa ser tocado, curado, ressuscitado. A menina morta e a mulher sangrando são símbolos de uma sociedade adoecida — e Jesus é aquele que vem para restaurar integralmente, no corpo e na alma, no indivíduo e na coletividade. 

Mas há ainda um entrelaçamento mais profundo: enquanto a menina vivia seus doze primeiros anos — tempo que no judaísmo marca a passagem para a responsabilidade religiosa (a bat mitzvah) — a mulher passava os mesmos doze anos sofrendo. Uma começa sua adolescência, outra vive uma adolescência perdida. Uma representa o futuro, outra, o passado ferido. Uma estava morrendo no corpo, a outra, morrendo na alma. Ambas, no entanto, são visitadas pela mesma graça. Jesus é o ponto de encontro entre essas duas histórias que o sistema social e religioso manteria separadas: uma filha de um líder da sinagoga e uma mulher impura e anônima. O Reino de Deus, portanto, começa a se manifestar quando o tempo da dor se cruza com o tempo da promessa. Quando Jesus é tocado, o tempo cronológico (kronos) é interrompido e o tempo de Deus (kairós) se instala: o tempo da mulher que sofria chega ao fim; o tempo da menina que mal havia começado é restituído.

Esse encontro entre duas gerações femininas também nos interpela a pensar nos ciclos de exclusão vividos pelas mulheres em nossos dias.

 Quantas adolescentes hoje têm sua infância interrompida por abusos, desigualdades e opressões? 

Quantas mulheres adultas carregam por anos feridas físicas, emocionais e espirituais causadas por um sistema que as silencia, seja na Igreja, na política ou dentro de casa? 

A pedagogia do Reino encarnada por Jesus vem para estancar esses sangramentos e ressuscitar aquilo que foi dado como morto. Ressignifica o tempo, redime a história, reconstrói a dignidade. 

Psicologicamente, esses doze anos marcam períodos de transição, de formação da identidade, de sofrimento acumulado. Doze anos de dor não são apenas uma estatística: são memórias, traumas, abandono. Já os doze anos da menina falam do limiar da juventude, do potencial interrompido. Sociologicamente, podemos ler esse cruzamento como denúncia de uma cultura que marginaliza mulheres em todas as fases da vida: na juventude, com hipersexualização ou desvalorização; na idade adulta, com apagamento e exploração. A menina e a mulher, portanto, não são apenas personagens do passado: elas são rostos do presente. E a resposta de Jesus — que se deixa tocar por uma, e toma pela mão a outra — revela uma nova forma de se relacionar com o tempo, com os corpos, com a dor e com a esperança. A psicologia pode nos ajudar a compreender o alcance desse toque de Jesus como uma ação que ressignifica a subjetividade ferida. O toque não é apenas físico, mas relacional. Ele acolhe, devolve valor, reintegra à vida. A antropologia nos lembra que o toque é um dos primeiros gestos de linguagem humana, anterior à palavra. Jesus, portanto, comunica com gestos o que as palavras religiosas muitas vezes não conseguem transmitir. Já a sociologia nos mostra que a exclusão ritual dessas mulheres reflete mecanismos de poder que ainda hoje se perpetuam: 

Quem tem acesso à cura? 

Quem tem direito de tocar e ser tocado?

Não estamos sozinhos. Jesus continua passando em meio às multidões, sensível aos clamores explícitos e aos que se escondem por vergonha ou medo. Continua parando para ver quem o tocou com fé. Continua dizendo:  Coragem, minha filha! Coragem, meu filho!”. Palavras que não são fórmula mágica, mas um chamado à esperança ativa. O toque da fé que cura é o gesto que ousa romper o conformismo religioso e a cegueira institucional. É o grito silencioso de quem se recusa a morrer sem lutar por vida plena.

Somos convidados hoje a sermos como aquela mulher: a nos movermos mesmo quando tudo nos impede. E também como Jesus: a nos deixarmos tocar, interromper, mover por compaixão. Que a nossa Igreja, tantas vezes cúmplice de opressões, se deixe interpelar por este Evangelho. Que ela reaprenda a ver, tocar, escutar. E que seja espaço onde as mulheres não sejam mais silenciadas, mas chamadas de filhas. Que a fé cristã volte a ser abrigo da humanidade ferida, não trincheira de ideologias mortíferas.

Jesus continua dizendo: “Não tenhas medo. Crê somente” (cf. Mc 5,36). E quando a fé é sincera, ainda que tímida, o milagre acontece. E o que parecia morto, revive. Porque o Deus de Jesus não abandona ninguém no vale das lágrimas. Ele é sempre o Deus que se deixa tocar e que toca com amor revolucionário.

DNonato – Teólogo do Cotidiano


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