Jesus diz aos seus discípulos: “Tenho ainda muitas coisas a vos dizer, mas não sois capazes de as compreender agora. Quando vier o Espírito da Verdade, ele vos conduzirá à plena verdade” (Jo 16,12-13). Esse versículo revela um Deus que respeita os tempos da escuta e da maturação. A verdade divina não é jogada sobre nós como imposição, mas nos é confiada por meio de um processo de amor pedagógico. O próprio Jesus, o Logos encarnado, não diz tudo de uma vez, porque a verdade plena não é só conteúdo, mas relação, processo, caminho. Como nos lembra São Gregório de Nazianzo, "é melhor tropeçar em mistério do que ser arrastado por presunção." A verdade é o próprio Deus, e Deus é Amor, e esse amor se revela no tempo, pela escuta e pela experiência vivida. A revelação trinitária não acontece por decretos, mas pela convivência com o Deus que é comunhão eterna.
O Espírito da Verdade é apresentado não como ideologia, mas como sopro livre (Jo 3,8), como presença que “anuncia” o que vem do Filho e, portanto, do Pai. A Trindade é relação que comunica. O Espírito não fala de si mesmo, mas comunica aquilo que é do Filho, que por sua vez recebe do Pai — uma circulação de amor, doação e acolhimento. Não há competição, não há disputa de poder, mas uma perfeita reciprocidade. É o oposto da lógica que domina nossas estruturas eclesiásticas e políticas: estruturas hierárquicas, fechadas, patriarcais, que usam o nome de Deus como instrumento de exclusão. Onde a autoridade se impõe sem escuta, onde a liturgia se transforma em espetáculo, onde o poder é mais valorizado que o serviço, ali o Espírito é entristecido (Ef 4,30). O clericalismo, em todas as suas formas — seja no altar elevado, seja nas decisões solitárias, seja na supressão do sensus fidei do povo — é uma blasfêmia contra a Trindade, pois nega sua lógica circular e comunitária.
Santo Agostinho nos recorda que “Deus é amor, mas não um amor solitário. O Pai ama o Filho, o Filho é o Amado, e o Espírito é o Amor entre ambos” (De Trinitate, VIII). Assim, a Trindade não é um mistério abstrato, mas o fundamento de toda relação humana. Somos criados à imagem de um Deus que é relação. Isso nos desafia em tempos de individualismo extremo, de tribalismo ideológico, de muros e cercas erguidos entre povos, classes e religiões. A antropologia bíblica é relacional: o ser humano só é plenamente humano quando está em comunhão. Por isso, viver segundo o modelo trinitário é resistir ao egoísmo neoliberal, ao autoritarismo teocrático, à religião sem espírito e à espiritualidade sem carne. É viver o Reino como comunidade de irmãos e irmãs que escutam, partilham, cuidam e denunciam a injustiça.
A teologia trinitária, que floresceu com mais força nos concílios de Niceia (325) e Constantinopla (381), nunca foi apenas uma discussão sobre as essências divinas, mas uma afirmação da comunhão como identidade de Deus. Este ano celebramos os 1700 anos do Concílio de Niceia — o primeiro concílio ecumênico da Igreja —, marco fundamental da fé cristã, onde se professou que o Filho é “consubstancial ao Pai” (homoousios), refutando as heresias que negavam a divindade plena de Jesus. Niceia não apenas protegeu o mistério, mas indicou que Deus não é um tirano solitário, mas uma comunhão de igualdade, eternidade e unidade. A fé trinitária selada em Niceia ainda hoje nos convida a rever nossa vida pessoal e eclesial: será que nossas comunidades vivem a comunhão ou reproduzem desigualdades e exclusões? O Credo Niceno-Constantinopolitano afirma que o Espírito “procede do Pai” (e no Ocidente se acrescentou “e do Filho”), e é “Senhor que dá a vida”. Dar a vida é um verbo trinitário. Onde a Trindade é crida, a vida é promovida. Onde há dominação, opressão, morte e exploração em nome de Deus, o dogma trinitário está sendo traído. A idolatria do poder — seja dentro da Igreja, seja nos sistemas de governo — é o grande desafio de nossa fé trinitária hoje.
Na atualidade, o Espírito da Verdade continua sendo perseguido. Ele incomoda os donos da verdade, desinstala os que se acomodaram nas certezas. Hoje vemos o nome de Deus ser usado por grupos que se dizem cristãos, mas promovem discurso de ódio, armamento, excludência social e violência contra os pobres. A extrema direita, ao cooptar símbolos religiosos, está cometendo uma nova idolatria: a idolatria da pátria, da arma, da autoridade sem serviço. A cruz se torna símbolo de exclusão, e não de reconciliação. Essa perversão do nome de Deus precisa ser denunciada com coragem profética. A Trindade, quando celebrada com fidelidade, desmascara toda tentativa de utilizar Deus como instrumento de dominação. O Deus trinitário está do lado dos pobres, dos deslocados, dos migrantes, das mulheres silenciadas, das crianças esquecidas, dos povos ocupados e das vítimas da guerra.
O Concílio de Constantinopla I (381), ao reafirmar a divindade do Espírito Santo, declarou: “Com o Pai e o Filho, é adorado e glorificado; ele falou pelos profetas.” Hoje, Ele continua falando, mas muitos se recusam a escutá-lo. Preferem a rigidez doutrinária ao frescor da profecia. Preferem a obediência cega à comunhão ativa. Preferem uma igreja piramidal a uma igreja povo de Deus, como sonha o Vaticano II. A eclesiologia trinitária nos exige romper com a idolatria do poder clerical e abraçar o modelo sinodal, onde todos — leigos, mulheres, pobres, consagrados, ministros ordenados — têm voz e escuta. Como nos lembra o Papa Francisco, “o clericalismo é uma perversão do sacerdócio”, e acrescenta que “a sinodalidade é o caminho que Deus espera da Igreja no terceiro milênio”.
A carta aos Romanos nos recorda que “o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado” (Rm 5,5). Não se trata de um sentimento genérico, mas de uma presença concreta que transforma. O amor trinitário é derramado em nós para gerar reconciliação, pacificação, resistência ao mal. Ele é a força que sustenta os que lutam por justiça, os que defendem a vida ameaçada, os que constroem pontes em vez de muros. Ele é o sopro que dá vida às comunidades que celebram, mas também àquelas que lutam. Como dizia São Basílio de Cesareia, “o Espírito Santo é luz, que ilumina os que estão nas trevas; é força, que sustenta os fracos; é comunhão, que une os dispersos”.
A Trindade, portanto, é muito mais que uma doutrina a ser ensinada: é uma verdade a ser vivida. É mística que se torna política. É amor que se torna denúncia. É fé que se torna prática. É Deus que, sendo comunhão, nos convida a comunhar com os pobres, com os feridos, com os oprimidos. Que este domingo da Trindade não seja apenas uma data litúrgica, mas um chamado a reorganizar nossa vida pessoal, eclesial e social segundo o modelo do Deus Uno e Trino: o Pai que cria com liberdade, o Filho que salva com compaixão e o Espírito que renova com coragem. Que sejamos, pela graça do batismo e pela força da escuta, sinais vivos dessa comunhão divina que resiste à lógica do mundo e anuncia a verdade libertadora do Evangelho.
DNonato – Teólogo do Cotidiano
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigado pelo seu comentário.