“Senhor, a quem iremos? Tu tens palavras de vida eterna!
O capítulo 6 do Evangelho segundo João nos leva a um ponto de virada. Após o milagre da multiplicação dos pães, Jesus aprofunda o ensinamento: Ele próprio é o pão que desceu do céu. Mas quando afirma que é preciso comer sua carne e beber seu sangue para ter a vida eterna, muitos discípulos murmuram: “Esta palavra é dura. Quem pode escutá-la?” (Jo 6,60). A reação lembra aquela dos israelitas no deserto, que reclamavam contra o maná, chamando-o de alimento leve demais (Nm 11,6). A murmuração diante do mistério revela a dificuldade de acolher uma fé que exige adesão total, não apenas entendimento lógico.
Jesus, conhecendo os corações (cf. Jo 2,25), não suaviza sua palavra. Ao contrário, declara: “O Espírito é que dá vida, a carne não serve para nada” (Jo 6,63). Não rejeita o corpo humano, mas denuncia a lógica mundana, carnal, que busca controlar Deus. É o mesmo Espírito que pairava sobre as águas no Gênesis (Gn 1,2), que conduziu os profetas (Ez 37,14), que desceu sobre Maria (Lc 1,35) e animou a Igreja no Pentecostes (At 2,1-4). Só quem é guiado por esse Espírito compreende a revelação de Jesus, que, como Ele mesmo afirma, “desceu do Céu, não para fazer a sua vontade, mas a do Pai” (Jo 6,38).
Naquele momento, muitos o abandonaram. Mas Pedro permanece e confessa: “Senhor, a quem iremos? Tu tens palavras de vida eterna!” (Jo 6,68). Essa confissão ecoa a fé de Abraão, que partiu sem saber para onde (Hb 11,8), e a de Josué, que desafiou o povo dizendo: “Escolhei hoje a quem quereis servir... Eu e minha casa serviremos ao Senhor” (Js 24,15). A fé não é fuga do real, mas adesão confiante, como a de Maria em Nazaré: “Eis aqui a serva do Senhor” (Lc 1,38). É também a fé de Marta, que proclama: “Eu creio que tu és o Cristo, o Filho de Deus” (Jo 11,27), mesmo diante da morte de Lázaro
Essa Palavra é luz (Sl 119,105), é fogo que arde nos ossos (Jr 20,9), é espada afiada (Hb 4,12), é lâmpada para os que andam na escuridão. Mas só quem a acolhe com o coração de criança (Mt 18,3) é capaz de percebê-la como dom, não como ameaça. A incredulidade de muitos é semelhante à dos que zombaram de Jesus na cruz: “Se és o Filho de Deus, desce da cruz” (Mt 27,40). Esperavam um Messias poderoso, não um pão partido. Por isso, o discurso de Jesus escandaliza: como pode Deus se entregar assim?
São Paulo VI já advertia, na Evangelii Nuntiandi, que “o homem contemporâneo escuta mais facilmente as testemunhas do que os mestres, e se escuta os mestres, é porque eles são testemunhas” (EN 41). A adesão à Palavra não se dá apenas pelo convencimento racional, mas pelo encontro com testemunhas vivas, como Pedro, como os santos, como tantos que hoje continuam a crer mesmo nas noites escuras.
Nos Atos dos Apóstolos (At 9,31-42), vemos a continuidade dessa lógica: a Igreja primitiva cresce na fidelidade, na escuta da Palavra e no serviço aos pobres e doentes, como Tabita. A fé se traduz em obras, como Tiago ensina: “A fé sem obras é morta” (Tg 2,17). E Pedro, agora fortalecido, repete os gestos de Jesus, curando, ressuscitando, anunciando. Sua confissão torna-se ação.
O Papa Francisco, fiel à tradição viva da Igreja, recordava que “a Eucaristia é o sacramento do amor, mas também é o sacramento da comunhão e da justiça” (Evangelii Gaudium, 192). E em Querida Amazônia, ele nos alerta que “os sacramentos devem ter uma incidência formadora e transformadora sobre as comunidades” (QA 82). Não basta participar da mesa do altar sem se comprometer com as mesas vazias dos pobres.
Hoje, porém, continuamos a viver o drama de Cafarnaum. Muitos continuam a abandonar a fé quando ela exige coerência, sacrifício, conversão. Ainda ecoa o escândalo da Eucaristia: quantas vezes Cristo é ignorado no sacrário, profanado em nossas indiferenças, rejeitado em nome de ideologias ou conveniências! Como no tempo de Elias, Deus ainda pergunta: “Que fazes aqui, Elias?” (1Rs 19,9), chamando-nos à intimidade, ao silêncio, à escuta.
Vivemos um tempo de tensões — políticas, sociais, eclesiais. No Brasil, o conflito entre direita e esquerda muitas vezes toma o lugar do discernimento evangélico. Uns defendem a moral, mas esquecem os pobres (cf. Am 5,11-12); outros gritam por justiça, mas relativizam a vida e a verdade (cf. Is 5,20). Mas Jesus não cabe nessas caixinhas: “Meu Reino não é deste mundo” (Jo 18,36), diz Ele a Pilatos. Ele rompe com a lógica de poder e nos oferece outra via: a do lava-pés (Jo 13,14), da cruz (Lc 9,23), da misericórdia (Lc 15,20).
Os documentos de Aparecida (2007), do CELAM, já apontavam essa necessidade de uma fé madura e missionária, afirmando que “não se pode separar a fé da solidariedade com os pobres e do compromisso com a justiça” (DAp 385). E em Medellín, décadas antes, a Igreja latino-americana reconhecia que “o sofrimento dos pobres é um clamor que Deus escuta” (Medellín, Justiça, 1). A Eucaristia, portanto, não pode ser alienante, mas precisa abrir os olhos para os crucificados de hoje.
A advertência de Tiago continua atual: “Vede: o salário dos trabalhadores que ceifaram os vossos campos e que foi retido por vós clama, e o clamor dos ceifeiros chegou aos ouvidos do Senhor dos Exércitos” (Tg 5,4). Não há adoração verdadeira se ela não denuncia a injustiça e não se traduz em solidariedade concreta com os explorados. Fé e justiça caminham juntas, como a cruz e a ressurreição.
A fé de Pedro, apesar de seus fracassos, torna-se o modelo de nossa resposta. Como ele, também nós negamos, fugimos, dormimos no Getsêmani. Mas também podemos voltar e dizer: “Tu sabes tudo; tu sabes que te amo” (Jo 21,17). O Senhor não busca perfeição, mas entrega sincera.
Adorar Cristo na Eucaristia é reconhecer que Ele continua a se dar por nós. É também nos comprometer com os crucificados da história: os famintos, os desempregados, os jovens sem perspectiva, os idosos abandonados. Pois “o que fizestes a um desses, a mim o fizestes” (Mt 25,40). Nossa adoração precisa gerar compromisso, como em Isaías: “Eis-me aqui, envia-me!” (Is 6,8).
---
DNonato – Leigo católico, graduado em História, vivendo o sacerdócio comum dos fiéis
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigado pelo seu comentário.