domingo, 14 de dezembro de 2025

Um breve olhar sobre Mateus 21,23-27

O Evangelho de Mateus 21,23-27, proclamado na segunda-feira da segunda semana do Advento, não aparece por acaso no itinerário litúrgico deste tempo. O Advento, mais do que um intervalo devocional que antecede o Natal, é uma escola espiritual de espera lúcida, de vigilância crítica e de discernimento profundo. Ele não nos prepara para acolher um Deus genérico, moldado por hábitos religiosos, nem um Messias funcional aos interesses do poder político, econômico ou clerical. Ao contrário, educa o coração e a consciência para reconhecer a origem das vozes que orientam nossa fé, nossas práticas e nossas decisões concretas.

Nesse horizonte, a pergunta dirigida a Jesus no Templo — “Com que autoridade fazes estas coisas?” — deixa de ser apenas um embate entre Jesus e as lideranças religiosas de seu tempo e se transforma numa interrogação que atravessa os séculos. Ela chega até nós, comunidades crentes do hoje, como um espelho incômodo: quem, de fato, esperamos neste Advento? De onde procede a autoridade que guia nossas escolhas, sustenta nossos valores e define nossos compromissos? Entre a autoridade que nasce do poder instituído e aquela que brota da fidelidade ao projeto de Deus, o Advento nos coloca diante de uma decisão que não é teórica, mas existencial.

Jesus entra no Templo e ensina. Esse detalhe, aparentemente simples, carrega enorme densidade simbólica. O Templo, em Mateus, é o coração religioso, econômico e político de Israel. Não é apenas um espaço de culto, mas o centro de legitimação do poder, da pureza ritual, da arrecadação, das alianças com Roma. Ensinar ali é reivindicar autoridade. E Jesus o faz sem credenciais oficiais, sem pertencer às elites sacerdotais, sem o selo das escolas rabínicas reconhecidas. Por isso a pergunta dos sumos sacerdotes e anciãos não nasce de uma busca sincera pela verdade, mas de uma tentativa de enquadramento: é preciso saber se Jesus pode ser controlado, rotulado, neutralizado.

A pergunta “quem te deu tal autoridade?” revela uma concepção de religião profundamente marcada pelo status, pela hierarquia e pela autorização institucional. A autoridade, nesse esquema, não brota da verdade nem do serviço à vida, mas do cargo, da linhagem, do reconhecimento do sistema. Jesus, ao perceber a armadilha, não responde diretamente. Ele desloca o eixo da questão e coloca João Batista no centro do debate: “O batismo de João vinha do céu ou dos homens?”. Com isso, Jesus revela que o verdadeiro problema não é Ele, mas a incapacidade de discernir a origem da autoridade profética.

João Batista surge, então, como chave hermenêutica do texto. João não pertence ao Templo, não ocupa cargo oficial, não se beneficia do sistema religioso. Ele vem do deserto, espaço bíblico da travessia, da purificação e da ruptura com as estruturas opressoras. O deserto é o lugar onde Israel reaprende a depender de Deus e não de suas seguranças (cf. Dt 8). João se inscreve na longa tradição profética que sempre incomodou o poder. Como Amós, que é expulso do santuário por não fazer parte da corte (cf. Am 7,10-17), como Jeremias, acusado de traição por denunciar a falsa segurança religiosa (cf. Jr 26), João encarna uma autoridade que nasce da fidelidade ao chamado e da coerência entre palavra e vida.

Os líderes religiosos sabem exatamente o que está em jogo. Reconhecer João como profeta significaria admitir que Deus fala fora dos esquemas oficiais e, pior ainda, reconhecer que eles próprios rejeitaram essa voz. Negar João, por outro lado, significaria enfrentar o povo, que o reconhece como profeta. Diante desse impasse, eles escolhem a saída mais confortável: “não sabemos”. Essa resposta não é sinal de humildade, mas de cálculo. É o silêncio estratégico de quem prefere perder a verdade a perder privilégios.

Aqui o evangelho toca numa ferida ética profunda. O “não sabemos” é a linguagem da neutralidade cúmplice. É a recusa de se posicionar quando a verdade exige conversão. A Carta de Tiago afirma com clareza: “Quem sabe fazer o bem e não o faz, comete pecado” (Tg 4,17). O silêncio, nesse caso, não é ausência de palavra, mas escolha consciente pela manutenção do status quo. Quantas vezes também nós, hoje, preferimos não saber para não precisar mudar? Quantas vezes chamamos de prudência aquilo que, na verdade, é medo de perder lugar, prestígio ou segurança?

Jesus, então, responde: “Também eu não vos direi com que autoridade faço estas coisas”. Não se trata de evasão, mas de juízo. Quem não reconhece a verdade quando ela se manifesta não está apto a recebê-la em plenitude. A autoridade de Jesus não pode ser explicada nos termos de um sistema que já perdeu a capacidade de escuta. Como afirma Mateus no final do Sermão da Montanha, o povo reconhecia que Ele ensinava “como quem tem autoridade, e não como os escribas” (Mt 7,29). Sua autoridade não se impõe pelo medo, mas se revela pela força da verdade que liberta.

Os evangelhos sinóticos preservam essa mesma cena com pequenas variações. Marcos 11,27-33 situa o confronto logo após a expulsão dos vendilhões do Templo, deixando claro que a questão da autoridade está ligada à denúncia de um sistema religioso transformado em mercado. Lucas 20,1-8 sublinha que Jesus ensinava o povo e anunciava a Boa Nova, reforçando que sua autoridade nasce do serviço à vida. Em todos os casos, a pergunta sobre a autoridade revela o conflito entre carisma e instituição, tema recorrente na história religiosa. Esse embate pode ser compreendido à luz da tensão entre carisma e estrutura. O carisma nasce da experiência fundante, da força simbólica que mobiliza consciências. A instituição é necessária para organizar, mas corre sempre o risco de absolutizar suas formas e sufocar o espírito. Quando a instituição deixa de servir à vida, passa a servir a si mesma. É nesse momento que o profeta se torna incômodo.

O texto revela o medo profundo da perda de controle. A identidade das autoridades religiosas está colada ao cargo que ocupam. Reconhecer João significaria admitir que erraram, que resistiram à ação de Deus. Para evitar essa dor, escolhem a negação. Trata-se de um clássico mecanismo de defesa: quando a verdade ameaça a imagem que construímos de nós mesmos, preferimos negar a realidade. O evangelho nos pergunta se nossa fé é suficientemente madura para suportar a verdade que nos desinstala. Mateus 21,23-27 denuncia toda forma de fé baseada no autoritarismo religioso. A autoridade de Deus não se confunde com poder, dominação ou sucesso. Por isso esse texto confronta diretamente as teologias da prosperidade e do domínio, que associam a bênção divina ao crescimento numérico, ao acúmulo de bens e à influência política. João não tem nada disso. Jesus também não. Ambos terminam perseguidos e mortos. Segundo a lógica do mercado religioso, seriam fracassados; segundo o Evangelho, são a revelação mais autêntica de Deus.

A fé transformada em mercadoria é sempre uma fé que exige credenciais visíveis, resultados mensuráveis e obediência cega. Jesus desmonta essa lógica ao se recusar a legitimar sua autoridade nos termos do sistema. Ele não vende sua palavra, não negocia sua missão, não transforma Deus em produto. Isso confronta também o individualismo religioso, que reduz a fé a uma experiência privada, desconectada da justiça, da responsabilidade social e do sofrimento histórico dos pobres. O clericalismo, entendido como apropriação da autoridade espiritual para fins de domínio, é frontalmente desmascarado por esse evangelho. O Concílio Vaticano II recorda que todo o povo de Deus participa do sensus fidei e é chamado a discernir a ação do Espírito (cf. Lumen Gentium, 12). O Papa Francisco denuncia o clericalismo como uma perversão da autoridade, pois transforma o serviço em privilégio e o ministério em poder. Em Evangelii Gaudium, ele afirma que uma fé autêntica implica sempre o desejo de transformar a realidade à luz do Reino.

 Orígenes afirmava que João é a voz que prepara, mas Cristo é a Palavra; rejeitar a voz é fechar-se à Palavra. Santo Agostinho insistia que a verdadeira autoridade nasce da verdade que habita em Cristo e ressoa no coração humano quando este não está endurecido. João Crisóstomo via nesse episódio a denúncia de uma religião que, por medo do povo e do poder, perde a coragem da verdade.

O Confronto no Templo antecipa o destino de Jesus. Questionar sua autoridade é o primeiro passo para eliminá-lo. A cruz não é um acidente, mas o resultado lógico de uma autoridade que desmascara as estruturas injustas. Por isso esse texto não é apenas uma catequese sobre o passado, mas um chamado à conversão no presente. E Mateus 21,23-27 nos obriga a perguntar: de onde vem a autoridade que orienta nossas escolhas? Do Evangelho ou do mercado? Da consciência iluminada pela Palavra ou do medo de perder pertencimento? Do serviço ou do domínio? O Advento nos coloca em estado de vigília, lembrando que esperar o Messias é permitir que Ele desestabilize nossas falsas seguranças.

Antes de chegar a esse ponto decisivo, o evangelho ainda nos convida a olhar com mais atenção para o próprio Jesus no interior do Templo. Ele não responde como alguém acuado, nem como quem teme perder espaço. Sua serenidade revela uma liberdade interior profunda. Jesus não depende do reconhecimento das autoridades para ser quem é. Aqui há um ensinamento espiritual decisivo: quando a identidade está enraizada na relação com Deus, a necessidade de aprovação perde sua força. Isso confronta diretamente uma religiosidade baseada na validação externa, tão comum hoje, em que ministérios, lideranças e até comunidades inteiras vivem reféns de números, visibilidade e prestígio.

Nesse sentido, a pergunta sobre a autoridade revela também uma antropologia implícita. O ser humano religioso pode construir sua identidade a partir do chamado ou a partir do cargo. Quando o cargo se torna fundamento da identidade, qualquer questionamento é vivido como ameaça existencial. É por isso que as autoridades reagem com medo e cálculo. A fé, então, deixa de ser caminho de libertação e se transforma em mecanismo de autopreservação. Jesus, ao contrário, vive uma liberdade que nasce da filiação: Ele sabe de onde vem e para onde vai (cf. Jo 8,14). Essa consciência o torna incontrolável.

A ciência histórica ajuda a compreender ainda mais a radicalidade desse gesto. O Templo de Jerusalém, no tempo de Jesus, era também um centro financeiro. As elites sacerdotais estavam profundamente ligadas à aristocracia local e ao poder romano. Questionar a autoridade religiosa significava, inevitavelmente, questionar um sistema econômico e político. Por isso, a pergunta dirigida a Jesus não é apenas teológica; é uma tentativa de neutralização política. A fé que Jesus anuncia ameaça os alicerces de um sistema que se alimenta da desigualdade e da sacralização do poder. Essa dimensão histórica ilumina o modo como o evangelho continua atual. Sempre que a fé se alia de forma acrítica aos poderes econômicos e políticos, ela perde sua capacidade profética. Sempre que líderes religiosos se tornam gestores do sagrado a serviço de interesses particulares, repetem o gesto daqueles que perguntaram a Jesus com que autoridade Ele falava, não para aprender, mas para silenciar. O evangelho nos obriga a perguntar se nossas comunidades são espaços de discernimento ou de reprodução de privilégios.

Do ponto de vista pastoral, esse texto desafia profundamente a formação da consciência cristã. Não basta repetir fórmulas de fé ou defender tradições se não somos capazes de discernir a ação de Deus na história concreta. O sensus fidei, recordado pelo Concílio Vaticano II, não é uma opinião subjetiva, mas a capacidade do povo de Deus de reconhecer a voz do Espírito quando ela se manifesta, mesmo fora dos esquemas esperados. Ignorar essa dimensão é reduzir a fé a um sistema fechado, incapaz de conversão.

A filosofia ajuda a perceber que a pergunta sobre a autoridade é, no fundo, uma pergunta sobre o fundamento da verdade. Vivemos tempos em que a verdade é frequentemente subordinada ao interesse, à ideologia ou ao lucro. Nesse contexto, o “não sabemos” das autoridades religiosas encontra eco em discursos contemporâneos que relativizam tudo para não assumir compromissos éticos. O evangelho, porém, insiste que a verdade não é neutra. Ela exige posicionamento, escolha e, muitas vezes, ruptura.

Essa ruptura tem um custo. João Batista pagou com a vida. Jesus também. O martírio, aqui, não é buscado como heroísmo, mas assumido como consequência de uma fidelidade radical. Isso questiona profundamente uma espiritualidade do conforto, que promete bênçãos sem cruz, glória sem entrega, Reino sem justiça. O seguimento de Jesus, como lembra Mateus em outros momentos, passa pela disposição de perder para ganhar, de morrer para viver (cf. Mt 16,24-26).

A tradição patrística insistiu que esse texto não deve ser lido apenas como denúncia das autoridades do passado, mas como advertência permanente à Igreja. Santo Agostinho alertava que o maior perigo não vem dos inimigos externos, mas da corrupção interna da fé quando ela se acomoda ao poder. Orígenes lembrava que a Palavra de Deus continua sendo interrogada em cada geração: ela será acolhida ou será submetida a critérios que a esvaziam?

Nesse horizonte, o Advento se revela como tempo privilegiado de purificação do olhar. Esperar o Messias é desaprender as falsas imagens de Deus que legitimam opressões e reaprender a reconhecer Sua presença nos sinais humildes da história. João aponta para um Deus que não se deixa domesticar; Jesus encarna esse Deus que entra no Templo, mas não se submete ao Templo. Essa tensão é constitutiva da fé bíblica.

No fim, a pergunta permanece aberta e ecoa como juízo e promessa: a autoridade que seguimos vem do céu ou dos homens? A resposta não se dá apenas com palavras, mas com a vida. É essa respostaque decide que tipo de fé vivemos, que tipo de Igreja construímos e que tipo de humanidade ajudamos a formar.

DNonato - Teólogo do Cotidiano 

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