Na última semana, lemos o capítulo 10 do Evangelho segundo São Mateus. Nesta segunda-feira da 15ª semana do Tempo Comum, encerramos o sermão com um texto impactante: Mateus 10,34–11,1, que se inicia com um versículo desconcertante: “Não penseis que vim trazer a paz à terra; não vim trazer a paz, mas a espada” (Mt 10,34)...
Essa é daquelas que não cabem nos adesivos de carro ou nas camisetas da fé performática. Jesus aqui desfaz toda tentativa de um cristianismo que se alie aos poderes para manter a ordem, que negocie com os impérios por segurança ou que ache na religião um refúgio da história. A espada que Ele traz não corta carne, mas corta alianças espúrias. É lâmina que separa a verdade da aparência, a justiça da neutralidade, o discipulado da conveniência. Não é paz como ausência de conflito, mas como fruto da justiça (cf. Is 32,17), como bem compreendeu a tradição profética.
Essa espada, portanto, desmascara o que se convencionou chamar de “paz” quando, na verdade, é acomodação. Paz que não incomoda o opressor não é paz, é cumplicidade. Paz que se recusa a ouvir o clamor do pobre é silêncio homicida. Por isso, Jesus provoca cisão. Não porque ama o conflito, mas porque ama demais a verdade para permitir que ela seja diluída na religiosidade inofensiva dos que só falam de amor sem jamais denunciar o ódio institucionalizado. A espada corta não os laços do amor, mas os laços da idolatria que disfarçam opressão de afeto. Como profetizou Ezequiel: “Ai dos profetas insensatos, que seguem seu próprio espírito sem terem tido visões!” (Ez 13,3).
Jesus provoca conflito dentro das casas, porque sabe que ali também se esconde a reprodução das hierarquias e opressões do mundo: o patriarcado disfarçado de tradição, a autoridade imposta como cuidado, a submissão celebrada como virtude. Ele não vem destruir a família, mas purificá-la. O Reino de Deus não se edifica sobre relações adoecidas. Ele desarticula a lógica do sangue como critério absoluto: “Quem faz a vontade de meu Pai é meu irmão, minha irmã e minha mãe” (Mt 12,50). A nova comunidade nasce da escuta e da prática da Palavra — e isso, muitas vezes, causa ruptura com o modelo tradicionalista idolatrado pela extrema-direita, que transforma família em fetiche moral enquanto se cala diante da fome e do genocídio de jovens negros nas periferias.
A cruz é o destino de quem escolhe a fidelidade à verdade. Jesus nunca enganou seus seguidores. “Quem quiser vir após mim, negue-se a si mesmo, tome a sua cruz e siga-me” (Mc 8,34). Mas, em nosso tempo, há quem tente seduzir com um Evangelho sem cruz, com promessas de bênçãos imediatas, riqueza, poder e segurança. A teologia da prosperidade transforma o Deus dos pobres em gerente de banco e o Cristo crucificado em coach de performance. Mas o Cristo que fala em Mateus 10 não tem nenhuma boa notícia para quem busca status. Ele anuncia perseguição, rejeição, perda. E, paradoxalmente, é aí que se encontra a vida. “Se o grão de trigo que cai na terra não morre, permanece só; mas se morre, produz muito fruto” (Jo 12,24).
A vida, na perspectiva do Reino, não é medida pela duração, mas pela doação. Não se trata de “vencer na vida”, mas de entregá-la por algo maior que o ego. Essa é a lógica de Jesus, e foi também a dos mártires. Desde Estevão (cf. At 7,55-60) até os mártires da América Latina — como Dom Oscar Romero, morto por denunciar a violência do Estado contra os pobres, ou Ir. Dorothy Stang, assassinada por defender a floresta e seus povos — a história da fé cristã é marcada por quem ousou perder tudo por causa da justiça. O martírio não é glória nem espetáculo, mas consequência do amor que não aceita negociar a verdade. Esse amor se expressa também na hospitalidade. “Quem vos recebe, a mim recebe” (Mt 10,40). A face de Cristo brilha nos rostos dos pequenos, dos mensageiros sem títulos, dos missionários sem púlpito, dos discípulos que caminham com poeira nos pés e ternura nos olhos. Por isso, o gesto do copo de água (Mt 10,42) é maior do que qualquer megaevento religioso. Não é no palco, mas na cozinha. Não é na performance, mas na partilha. E como já dizia Amós, o profeta camponês: “Aborreço e desprezo vossas festas; não sinto prazer em vossas assembleias. Mas corra o direito como as águas, e a justiça como rio perene” (Am 5,21.24).
A religião que agrada a Deus não é a que canta mais alto, mas a que serve com mais humildade. E aqui é necessário o juízo: há hoje uma tentativa sistemática de transformar o cristianismo em instrumento de poder político, em ideologia de controle social, em justificativa para o armamento, o autoritarismo e a exclusão dos que pensam diferente. É o que o Papa Francisco denunciou com veemência em Fratelli Tutti: “As ideologias populistas, fechadas e agressivas, utilizam a religião como ferramenta de domínio e segregação, em vez de caminho de fraternidade e compaixão” (FT 271).
Jesus parte, então, para pregar nas cidades (Mt 11,1). Não se retira, não foge, não espiritualiza. Vai à vida. Vai aos espaços urbanos onde a fé precisa ganhar corpo. Vai ensinar onde o mercado tenta doutrinar. Vai testemunhar onde a religião institucional se cala. Essa presença urbana e itinerante do Cristo aponta para uma espiritualidade engajada, que não se contenta em salvar almas, mas deseja libertar corpos. Em Evangelii Gaudium, Francisco clama: “A missão é inseparável de uma opção preferencial pelos pobres. Não se trata de assistencialismo, mas de profecia” (EG 198). E é aí, na sequência da espada e da cruz, que Jesus oferece o descanso (Mt 11,28-30). O jugo de Cristo não é o peso das leis humanas, mas a leveza da misericórdia. Não é o jugo da culpa, mas o da liberdade. Não é o peso das obrigações religiosas vazias, mas a responsabilidade da compaixão concreta. O verdadeiro descanso não está em ritos automáticos, mas na comunhão com o Deus da vida. Como diz Isaías, ecoando o coração do Senhor: “Este é o jejum que eu prefiro: romper as cadeias da injustiça, desfazer as cordas do jugo, deixar livres os oprimidos e quebrar todo jugo” (Is 58,6).
A espiritualidade do Reino, portanto, é descanso que liberta — não apenas individual, mas também ecológico, social, político. Como lembra Laudato Si’: “Não haverá uma nova relação com a natureza sem um novo ser humano. Não há ecologia sem justiça” (LS 118). O descanso que Jesus oferece é descanso da opressão, da ganância, do consumo compulsivo, da fé tóxica, do moralismo que mata. É o descanso dos que lutam pela vida com dignidade, dos que sonham com uma terra onde habite a justiça (cf. 2Pd 3,13).
Por fim, essa palavra de espada é também palavra escatológica. Ela nos aponta para um Reino que está próximo, mas ainda não plenamente realizado. A cruz atravessa o tempo, mas a ressurreição nos sustenta na esperança. Como diz Paulo: “Considero que os sofrimentos do tempo presente não se comparam com a glória que há de ser revelada em nós” (Rm 8,18). É essa esperança que nos faz seguir. Não como alienação, mas como firme confiança de que a última palavra não será da violência, do lucro, do ódio, da exclusão, mas do amor que resiste até o fim.
Portanto, que a espada de Cristo corte em nós o que é mentira, e abra espaço para a verdade. Que a cruz nos liberte do egoísmo e nos faça companheiros dos crucificados. Que o copo de água seja nossa liturgia. Que o descanso nos encontre não na fuga do mundo, mas no meio da luta por um mundo mais justo. E que possamos dizer, com os profetas, com os mártires, com os pequenos: "Vinde Senhor, porque é tempo de justiça. Tua espada é nossa esperança, tua cruz é nossa aliança, teu descanso é nossa casa."
DNonato – Teólogo do Cotidiano
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