sábado, 31 de maio de 2025

Um olhar no texto de Lucas 24,46-53, Domingo da ascensão

A celebração da Ascensão do Senhor é um momento culminante da missão terrena de Jesus,  temas que ja abordamos no YouTube e nosso  blog que retorna ao Pai não como quem se ausenta, mas como quem inaugura um novo modo de presença entre nós. As leituras deste domingo nos conduzem à contemplação de um Cristo glorificado, que, ao subir aos céus, não nos abandona, mas nos envia a continuar sua obra no mundo.

A primeira leitura (Atos dos Apóstolos 1,1-11) narra a despedida visível de Jesus e o início da missão da Igreja: “Homens da Galileia, por que ficais aqui parados, olhando para o céu?” (At 1,11). O Salmo responsorial (Sl 47[46],2-3.6-7.8-9) entoa a alegria da realeza divina: “Por entre aclamações Deus se elevou, o Senhor subiu ao toque da trombeta!” (Sl 47[46],6), na segunda leitura (Efésios 1,17-23), Paulo nos convida a abrir “os olhos do coração” (Ef 1,18) para reconhecer a esperança à qual somos chamados, contemplando Cristo elevado acima de todo poder, como cabeça da Igreja, “que é o seu corpo” (Ef 1,23).

O Evangelho de Lucas (24,46-53), que refletiremos abaixo.

A missão cristã brota da travessia pascal: paixão, morte e ressurreição de Jesus. O Cristo Ressuscitado não nos envia ao mundo como meros administradores da fé ou burocratas do sagrado, mas como testemunhas do escândalo do amor, que ousou vencer a cruz, o túmulo e todas as estruturas de morte que insistem em se levantar. "Assim está escrito: o Cristo sofrerá e ressuscitará dos mortos ao terceiro dia, e em seu nome serão anunciados a conversão e o perdão dos pecados..." (Lc 24,46-47). E esse anúncio não é um murmúrio neutro; ele é um grito que irrompe contra o pecado estruturado em desigualdade, a idolatria do poder e a religião domesticada que nos tenta aprisionar.

Jesus interpretou sua vida e morte à luz das Escrituras, abrindo a inteligência de seus discípulos para entendê-las (Lc 24,45). Não se trata de uma leitura superficial ou acomodada, mas de uma hermenêutica que confronta os poderes estabelecidos. Como os profetas que o precederam, Jesus não interpretou a Lei para legitimar os poderosos, mas para libertar os pobres. Ele não veio abolir a Lei, mas levá-la à plenitude (Mt 5,17) — a plenitude do amor, da misericórdia, da justiça. A Palavra de Deus, quando lida a partir dos pobres, se transforma em uma espada afiada que corta o falso sagrado: "A palavra de Deus é viva, eficaz e mais penetrante do que qualquer espada de dois gumes" (Hb 4,12). Por isso, a fé não pode ser reduzida a um mero moralismo, a um rito vazio, ou à bênção de projetos políticos que pisoteiam os pequenos. "Este povo me honra com os lábios, mas seu coração está longe de mim" (Is 29,13; Mc 7,6), ressoa como um alerta eterno.

A missão confiada aos discípulos se tece em dois verbos fundamentais: converter e perdoar (Lc 24,47). A conversão (metanoia) não é uma simples troca de religião ou uma adesão a doutrinas, mas uma ruptura radical com o pecado social, com a idolatria do dinheiro, da violência e da mentira institucionalizada. "Ai dos que fazem leis injustas, que escrevem decretos opressores!" (Is 10,1), brada o profeta. O perdão, por sua vez, não é indiferença moral nem reconciliação sem justiça. É uma graça que liberta e reconstrói o tecido humano, esgarçado por um sistema de morte. O Cristo ressuscitado carrega as marcas da crucifixão (Jo 20,27), um sinal indelével de que a ressurreição não é amnésia do sofrimento, mas a memória viva das vítimas e um clamor por justiça histórica.

Como testemunhou Estêvão, primeiro mártir cristão, “eu vejo os céus abertos e o Filho do Homem de pé à direita de Deus” (At 7,56). Cristo exaltado é presença solidária no sofrimento de seus mártires e discípulos perseguidos. Não é ausência, é cumplicidade redentora com os injustiçados.

"Permanecei na cidade até que sejais revestidos da força do alto" (Lc 24,49). A missão nasce do Espírito, e não do poder clerical. Não é a cátedra que legitima o missionário, mas a compaixão transbordante do Ressuscitado. O Espírito não sopra apenas nos sacrários; Ele se faz presente nas ruas, nos acampamentos sem terra, nas favelas, nas prisões, nas escolas em greve, nas cozinhas solidárias. O Pentecostes que se anuncia aqui é libertador e desinstalador. Quando o Espírito se manifesta, "os montes se derretem como cera" (Sl 97,5), os muros de exclusão caem por terra (Ef 2,14), e a religião de aparências desaba. O Espírito não apenas consola — Ele desinstala, desorganiza o templo dos acomodados, derruba os "vendilhões" do sagrado e reergue o povo em marcha.

O Espírito que unge Jesus para evangelizar os pobres (Lc 4,18-19) é o mesmo que envia hoje sua Igreja a libertar, curar e anunciar o ano da graça do Senhor. Não há outro critério de autenticidade.

Essa missão não é tarefa solitária nem monopólio clerical, mas caminho sinodal, onde todos — leigos, mulheres, jovens, povos originários — têm voz. O Documento de Aparecida recorda: “Todos os membros da Igreja, em virtude do Batismo, são discípulos missionários” (DAp 549). A missão não é privilégio de alguns, mas vocação de todos. E continua: “A missão é inseparável do compromisso com os pobres e a transformação da sociedade” (DAp 362). O Ressuscitado convoca uma Igreja que escuta e caminha junto, como corpo ferido e em saída.

Jesus encerra sua missão em Jerusalém, mas não para fixar-se nela, e sim para lançar seus discípulos ao mundo: "Vocês serão minhas testemunhas até os confins da terra" (At 1,8). Jerusalém, um lugar de contradições, representa tanto o centro religioso quanto o palco do martírio — ali onde a religião se corrompeu e silenciou os profetas (cf. Mt 23,37). Hoje, inúmeras Jerusaléns e templos modernos voltaram a crucificar o justo, em nome da moral, da segurança e da economia. Igrejas que apoiam projetos armamentistas, racistas e antissociais tornaram-se Jerusaléns de morte, não lugares de ressurreição. Como na voz de Amós, o Senhor grita: "Eu odeio e rejeito vossas festas, não suporto vossas assembleias litúrgicas (...) em vez disso, que o direito corra como a água, e a justiça como um rio perene" (Am 5,21-24). Celebrar a Eucaristia sem partilhar o pão com os pobres é comer e beber a própria condenação (cf. 1Cor 11,29). A missão brota do altar, mas só se realiza quando o altar se prolonga na mesa dos excluídos.


Neste contexto de sombras e desafios, torna-se urgente recordar as palavras proféticas de Dom Adriano Hipólito: "A aclamação a Cristo Rei só tem sentido se for feita com os punhos cerrados contra todas as formas de opressão." A fé não pode ser domesticada nem convertida em instrumento de dominação. A missão cristã é, antes de tudo, um ato de resistência, uma presença solidária, um compromisso inabalável com aqueles que continuam sendo crucificados pelos sistemas de morte.

A missão cristã exige coragem profética. Em tempos de extrema direita, de fake news religiosas, de manipulação das Escrituras e de cruzadas moralistas contra os direitos humanos, é urgente uma Igreja com os pés descalços e o coração em chamas. A Igreja que Jesus envia não é aliada de imperadores, mas irmã dos pobres. É com eles que se reconhece a presença viva do Ressuscitado: "Tive fome e me destes de comer..." (Mt 25,35). A ressurreição é um grito que irrompe contra o sistema de morte. O Cristo que subiu aos céus não fugiu do mundo, mas o plenificou com a esperança dos crucificados. Onde há povo em luta, onde há comunhão solidária, onde há resistência contra o ódio que insiste em se espalhar, ali está a força que vem do alto.

A Ascensão não é uma evasão; é, na verdade, a própria missão. É olhar para o alto, mas com os pés firmes no chão. É contemplar a glória, mas sem fugir da cruz que a vida nos apresenta. É saber que "nosso combate não é contra carne e sangue, mas contra os principados e potestades deste mundo tenebroso" (Ef 6,12). E, como nos assegura Paulo: "Nada poderá nos separar do amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor" (Rm 8,38-39). A esperança cristã não se esconde nos altares dourados, mas brota nos olhos marejados daqueles que acreditam, ainda que tudo ao redor insista em dizer o contrário. Por isso, não fiquemos "olhando para o céu" (At 1,11), enquanto tantos continuam sendo crucificados pela fome, pela injustiça e por uma religião sem alma. Se somos testemunhas do Ressuscitado, devemos gritar com Isaías: "Quebrar as cadeias da injustiça, repartir o pão com o faminto, acolher os pobres e errantes – esse é o jejum que agrada ao Senhor" (Is 58,6-7).

A missão não acabou. Ela apenas começa. E começa exatamente onde o povo sofre e clama por justiça.

DNonato – Testemunha do Ressuscitado no mundo dos crucificados, Graduado em História, teólogo do cotidiano.




Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado pelo seu comentário.