Inteligência artificial e sabedoria do coração: para uma comunicação plenamente humana
Queridos irmãos e irmãs!
A evolução dos sistemas da chamada «inteligência artificial», sobre a qual já me debrucei na recente
Mensagempara o Dia Mundial da Paz, está a modificar de forma radical também a informação e a comunicação e, através delas, algumas bases da convivência civil. Trata-se duma mudança que afeta não só aos profissionais, mas a todos. A rápida difusão de maravilhosas invenções, cujo funcionamento e potencialidades são indecifráveis para a maior parte de nós, suscita um espanto que oscila entre entusiasmo e desorientação e põe-nos inevitavelmente diante de questões fundamentais: O que é então o homem, qual é a sua especificidade e qual será o futuro desta nossa espécie chamada homo sapiens na era das inteligências artificiais? Como podemos permanecer plenamente humanos e orientar para o bem a mudança cultural em curso?
A
partir do coração
Antes
de mais nada, convém limpar o terreno das leituras catastróficas e dos seus
efeitos paralisadores. Já há um século Romano Guardini, refletindo sobre a
técnica e o homem, convidava a não se inveterar contra o «novo» na tentativa de
«conservar um mundo belo condenado a desaparecer». Ao mesmo tempo, porém, com
veemência profética advertia: «O nosso posto é no devir. Devemos inserir-nos
nele, cada um no seu lugar (...), aderindo honestamente, mas permanecendo
sensíveis, com um coração incorruptível, a tudo o que nele houver de destrutivo
e não-humano». E concluía: «Trata- se – é verdade – de problemas de natureza
técnica, científica e política; mas só podem ser resolvidos passando pelo
homem. Deve-se formar um novo tipo humano, dotado duma espiritualidade mais
profunda, duma nova liberdade e duma nova interioridade». [1]
Neste
tempo que corre o risco de ser rico em técnica e pobre em humanidade, a nossa
reflexão só pode partir do coração humano. [2] Somente dotando-nos dum olhar
espiritual, apenas recuperando uma sabedoria do coração é que poderemos ler e
interpretar a novidade do nosso tempo e descobrir o caminho para uma
comunicação plenamente humana. O coração, entendido biblicamente como sede da
liberdade e das decisões mais importantes da vida, é símbolo de integridade e
de unidade, mas evoca também os afetos, os desejos, os sonhos, e sobretudo é o
lugar interior do encontro com Deus. Por isso a sabedoria do coração é a
virtude que nos permite combinar o todo com as partes, as decisões com as suas
consequências, as grandezas com as fragilidades, o passado com o futuro, o eu
com o nós.
Esta
sabedoria do coração deixa-se encontrar por quem a busca e deixa-se ver a quem
a ama; antecipa-se a quem a deseja e vai à procura de quem é digno dela
(cf. Sab 6, 12-16). Está com quem aceita conselho (cf. Pr 13,
10), com quem tem um coração dócil, um coração que escuta (cf. 1 Re 3,
9). É um dom do Espírito Santo, que permite ver as coisas com os olhos de Deus,
compreender as interligações, as situações, os acontecimentos e descobrir o seu
sentido. Sem esta sabedoria, a existência torna-se insípida, pois é
precisamente a sabedoria que dá gosto à vida: a sua raiz latina sapere associa-a
ao sabor.
Oportunidade
e perigo
Não
podemos esperar esta sabedoria das máquinas. Embora o termo inteligência
artificial já tenha suplantado o termo mais correto utilizado na
literatura científica de machine learning (aprendizagem
automática), o próprio uso da palavra «inteligência» é falacioso. É certo que
as máquinas têm uma capacidade imensamente maior que os seres humanos de
memorizar os dados e relacioná-los entre si, mas compete ao homem, e só a ele,
descodificar o seu sentido. Não se trata, pois, de exigir das máquinas que
pareçam humanas; mas de despertar o homem da hipnose em que cai devido ao seu
delírio de omnipotência, crendo-se sujeito totalmente autónomo e
autorreferencial, separado de toda a ligação social e esquecido da sua condição
de criatura.
Realmente
o homem sempre teve experiência de não se bastar a si mesmo, e procura superar
a sua vulnerabilidade valendo-se de todos os meios. Partindo dos primeiros
instrumentos pré-históricos, utilizados como prolongamento dos braços, passando
pelos meios de comunicação como extensão da palavra, chegamos hoje às máquinas
mais sofisticadas que funcionam como auxílio do pensamento. Entretanto cada uma
destas realidades pode ser contaminada pela tentação primordial de se
tornar como Deus sem Deus (cf. Gen 3),
isto é, a tentação de querer conquistar com as próprias forças aquilo que
deveria, pelo contrário, acolher como dom de Deus e viver na relação com os
outros.
Cada
coisa nas mãos do homem torna-se oportunidade ou perigo, segundo a orientação
do coração. O próprio corpo, criado para ser lugar de comunicação e comunhão,
pode tornar-se instrumento de agressão. Da mesma forma, cada prolongamento
técnico do homem pode ser instrumento de amoroso serviço ou de domínio hostil.
Os sistemas de inteligência artificial podem contribuir para o processo de
libertação da ignorância e facilitar a troca de informações entre diferentes
povos e gerações. Por exemplo, podem tornar acessível e compreensível um
património enorme de conhecimentos, escrito em épocas passadas, ou permitir às
pessoas comunicarem em línguas que lhes são desconhecidas. Mas simultaneamente
podem ser instrumentos de «poluição cognitiva», alteração da realidade através
de narrações parcial ou totalmente falsas, mas acreditadas – e partilhadas –
como se fossem verdadeiras. Basta pensar no problema da desinformação que
enfrentamos, há anos, no caso das fake news [3] e que hoje se serve da deep
fake, isto é, da criação e divulgação de imagens que parecem perfeitamente
plausíveis mas são falsas (já me aconteceu a mim também ser objeto delas), ou
mensagens-áudio que usam a voz duma pessoa, dizendo coisas que ela própria
nunca disse. A simulação, que está na base destes programas, pode ser útil
nalguns campos específicos, mas torna-se perversa quando distorce as relações
com os outros e com a realidade.
Já
desde a primeira vaga de inteligência artificial – a das redes sociais –
compreendemos a sua ambivalência, constatando a par das oportunidades também os
riscos e as patologias. O segundo nível de inteligências artificiais geradoras
marca, indiscutivelmente, um salto qualitativo. Por conseguinte é importante
ter a possibilidade de perceber, compreender e regulamentar instrumentos que,
em mãos erradas, poderiam abrir cenários negativos. Os algoritmos, como tudo o
mais que sai da mente e das mãos do homem, não são neutros. Por isso é
necessário prevenir propondo modelos de regulamentação ética para contornar os
efeitos danosos, discriminadores e socialmente injustos dos sistemas de
inteligência artificial e contrastar a sua utilização para a redução do
pluralismo, a polarização da opinião pública ou a construção do pensamento
único. Assim reitero aqui a minha exortação à «Comunidade das Nações a
trabalhar unida para adotar um tratado internacional vinculativo, que regule o
desenvolvimento e o uso da inteligência artificial nas suas
variadas formas». [4] Entretanto, como em todo o âmbito
humano, não é suficiente a regulamentação.
Crescer
em humanidade
Somos
chamados a crescer juntos, em humanidade e como humanidade. O desafio que temos
diante de nós é realizar um salto de qualidade para estarmos à altura duma
sociedade complexa, multiétnica, pluralista, multirreligiosa e multicultural.
Cabe a nós questionar-nos sobre o progresso teórico e a utilização prática
destes novos instrumentos de comunicação e conhecimento. As suas grandes
possibilidades de bem são acompanhadas pelo risco de que tudo se transforme num
cálculo abstrato que reduz as pessoas a dados, o pensamento a um esquema, a
experiência a um caso, o bem ao lucro, com o risco sobretudo de que se acabe
por negar a singularidade de cada pessoa e da sua história, dissolvendo a
realidade concreta numa série de dados estatísticos.
A
revolução digital pode tornar-nos mais livres, mas certamente não conseguirá
fazê-lo se nos prender nos modelos designados hoje como echo chamber (câmara
de eco). Nestes casos, em vez de aumentar o pluralismo da informação, corre-se
o risco de se perder num pântano anónimo, favorecendo os interesses do mercado
ou do poder. Não é aceitável que a utilização da inteligência artificial
conduza a um pensamento anónimo, a uma montagem de dados não certificados, a
uma desresponsabilização editorial coletiva. A representação da realidade
por big data (grandes dados), embora funcional para a gestão
das máquinas, implica na realidade uma perda substancial da verdade das coisas,
o que dificulta a comunicação interpessoal e corre o risco de danificar a nossa
própria humanidade. A informação não pode ser separada da relação existencial:
implica o corpo, o situar-se na realidade; pede para correlacionar não apenas
dados, mas experiências; exige o rosto, o olhar, a compaixão e ainda a
partilha.
Penso
na narração das guerras e naquela «guerra paralela» que se trava através de
campanhas de desinformação. E penso em tantos repórteres que ficam feridos ou
morrem no local em efervescência para nos permitir a nós ver o que viram os
olhos deles. Pois só tocando pessoalmente o sofrimento das crianças, das
mulheres e dos homens é que poderemos compreender o caráter absurdo das
guerras.
A
utilização da inteligência artificial poderá proporcionar um contributo
positivo no âmbito da comunicação, se não anular o papel do jornalismo no
local, antes pelo contrário se o apoiar; se valorizar o profissionalismo da
comunicação, responsabilizando cada comunicador; se devolver a cada ser humano
o papel de sujeito, com capacidade crítica, da própria comunicação.
Interrogativos
de hoje e de amanhã
E
surgem, espontâneas, algumas questões: Como tutelar o profissionalismo e a
dignidade dos trabalhadores no campo da comunicação e da informação, juntamente
com a dos utentes em todo o mundo? Como garantir a interoperabilidade das
plataformas? Como fazer com que as empresas que desenvolvem plataformas
digitais assumam as suas responsabilidades relativamente ao que divulgam daí
tirando os seus lucros, de forma análoga ao que acontece com os editores dos
meios de comunicação tradicionais? Como tornar mais transparentes os critérios
subjacentes aos algoritmos de indexação e desindexação e aos motores de
pesquisa, capazes de exaltar ou cancelar pessoas e opiniões, histórias e
culturas? Como garantir a transparência dos processos de informação? Como
tornar evidente a paternidade dos escritos e rastreáveis as fontes, evitando o
para-vento do anonimato? Como deixar claro se uma imagem ou um vídeo retrata um
acontecimento ou o simula? Como evitar que as fontes se reduzam a uma só, a um
pensamento único elaborado algoritmicamente? E, ao contrário, como promover um
ambiente adequado para salvaguardar o pluralismo e representar a complexidade
da realidade? Como podemos tornar sustentável este instrumento poderoso, caro e
extremamente energívoro? Como podemos torná-lo acessível também aos países em
vias de desenvolvimento?
A
partir das respostas a estas e outras questões compreenderemos se a
inteligência artificial acabará por construir novas castas baseadas no domínio
informativo, gerando novas formas de exploração e desigualdade ou se, pelo
contrário, trará mais igualdade, promovendo uma informação correta e uma maior
consciência da transição de época que estamos a atravessar, favorecendo a
escuta das múltiplas carências das pessoas e dos povos, num sistema de
informação articulado e pluralista. Dum lado, vemos assomar o espetro duma nova
escravidão, do outro uma conquista de liberdade; dum lado, a possibilidade de
que uns poucos condicionem o pensamento de todos, do outro a possibilidade de
que todos participem na elaboração do pensamento.
A
resposta não está escrita; depende de nós. Compete ao homem decidir se há de
tornar-se alimento para os algoritmos ou nutrir o seu coração de liberdade, sem
a qual não se cresce na sabedoria. Esta sabedoria amadurece valorizando o tempo
e abraçando as vulnerabilidades. Cresce na aliança entre as gerações, entre
quem tem memória do passado e quem tem visão de futuro. Somente juntos é que
cresce a capacidade de discernir, vigiar, ver as coisas a partir do seu termo.
Para não perder a nossa humanidade, procuremos a Sabedoria que existe antes de
todas as coisas (cf. Sir 1, 4), que, passando através dos
corações puros, prepara amigos de Deus e profetas (cf. Sab 7,
27): há de ajudar-nos também a orientar os sistemas da inteligência artificial
para uma comunicação plenamente humana.
Roma
– São João de Latrão, 24 de janeiro de 2024.
[Francisco]
[1] Cartas
do Lago de Como (Brescia 52022), 95-97
[2] Em
continuidade com as anteriores
Mensagens para o Dia Mundial das Comunicações Sociais, dedicadas a «encontrar
as pessoas onde estão e como são» (2021), «escutar
com o ouvido do coração» (2022) e «falar
com o coração» (2023).
[3] Cf. Mensagem
para o LII Dia Mundial das Comunicações (2018): «“A verdade vos tornará
livres” (Jo 8, 32). Fake news e jornalismo
de paz».
[4] Mensagem
para o LVII Dia Mundial da Paz: 1 de janeiro de 2024, 8.
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