sábado, 13 de dezembro de 2025

Um breve olhar sobre Mateus 17,10-13

 
A liturgia da Igreja proclama Mateus 17,10-13 no sábado da segunda semana do Advento, tempo marcado pela tensão entre promessa e cumprimento, entre espera e discernimento, entre a visita de Deus e a capacidade humana de reconhecê‑la. Não é um detalhe secundário: o texto vem logo após a cena da Transfiguração, quando Jesus desce do monte com Pedro, Tiago e João. A glória contemplada no alto não elimina o conflito do vale; pelo contrário, prepara os discípulos para compreender que a revelação de Deus não se dá apenas na luz fulgurante, mas também — e sobretudo — no escândalo da rejeição. É nesse contexto que surge a pergunta: “Por que os escribas dizem que Elias deve vir primeiro?”. A questão não é teórica; é existencial, histórica e hermenêutica. Ela nasce do choque entre o que se espera de Deus e o modo como Deus efetivamente age.

Jesus responde afirmando que Elias vem e restaurará todas as coisas, mas acrescenta imediatamente que Elias já veio e não foi reconhecido. Fizeram com ele tudo o que quiseram. Assim também o Filho do Homem haveria de sofrer às mãos deles. O evangelista conclui com uma chave interpretativa decisiva: os discípulos compreenderam que Jesus falava de João Batista. Mateus não está apenas identificando personagens; está reinterpretando a história da salvação à luz do mistério pascal. João é Elias não por repetição literal, mas por continuidade profética. Ele encarna a função de Elias no horizonte escatológico: denunciar, converter, preparar, desinstalar.

No judaísmo do Segundo Templo, Elias era esperado como aquele que precederia o dia do Senhor, conforme Malaquias: “Eis que vos enviarei o profeta Elias, antes que venha o grande e terrível dia do Senhor” (Ml 3,23). Essa expectativa tinha também uma dimensão restauradora: Elias reconciliaria pais e filhos, reconstruiria o tecido social e religioso rasgado pela infidelidade. Mateus assume essa tradição, mas a subverte cristologicamente. A restauração não acontece por um ato espetacular de poder, mas por um chamado à conversão que encontra resistência. João, como Elias, não falha; quem falha é a capacidade de acolhida do povo e de suas lideranças. Aqui aparece um tema central do Advento: Deus visita, mas nem sempre é reconhecido. A rejeição de João antecipa a rejeição de Jesus e prepara o destino dos discípulos. A lógica do Reino não coincide com a lógica religiosa dominante nem com os esquemas de poder político, econômico ou simbólico. João não se apresenta como um líder carismático em busca de seguidores, mas como uma voz que clama no deserto, ecoando Isaías: “Preparai o caminho do Senhor” (Is 40,3). Ele sabe que sua missão não é ocupar o centro, mas apontar para outro. Por isso pode dizer, segundo o Quarto Evangelho: “É necessário que ele cresça e eu diminua” (Jo 3,30).

Mateus 17,10-13 dialoga com os paralelos sinóticos. Marcos 9,11-13 apresenta a mesma pergunta e a mesma resposta, mas com uma ênfase ainda mais direta na rejeição violenta: “Como está escrito a respeito do Filho do Homem, que deve sofrer muito e ser desprezado?”. Lucas, por sua vez, não traz essa pergunta no mesmo formato, mas desenvolve a rejeição profética ao longo de seu evangelho, especialmente quando Jesus afirma que nenhum profeta é bem recebido em sua pátria (Lc 4,24). A lógica é a mesma: a proximidade de Deus provoca resistência, porque desestabiliza privilégios, desmonta falsas seguranças e desmascara idolatrias.

O símbolo de Elias, retomado em João, não é apenas escatológico, mas antropológico e sociológico. Elias é o profeta que confronta o poder, como no episódio do Carmelo diante de Acab e dos profetas de Baal (1Rs 18). Ele representa a fé que não se vende, que não negocia a verdade, que não se adapta ao sistema para sobreviver. João Batista assume esse lugar quando denuncia Herodes por sua relação injusta e imoral (Mc 6,17-29). O resultado é a morte. A história se repete porque as estruturas de dominação também se repetem. Jesus interpreta essa repetição não como fracasso do projeto de Deus, mas como revelação de sua lógica. A salvação passa pela recusa, a vida passa pela cruz, a glória passa pela entrega. Esse movimento desmonta as teologias do triunfo, da prosperidade e do domínio, que prometem sucesso, reconhecimento e recompensa como sinais da bênção divina. João é fiel e morre; Jesus é fiel e é crucificado; os discípulos são enviados e perseguidos. Não há aqui espaço para uma fé-mercadoria que troca obediência por benefícios, nem para um Deus instrumentalizado para legitimar projetos de poder.

O  texto de hoje  confronta o desejo humano de reconhecimento. João não se apega ao papel que desempenha, não constrói uma identidade baseada na centralidade, não transforma o ministério em extensão do ego. Ele sabe retirar-se de cena. Esse descentramento é profundamente libertador, mas também profundamente ameaçador para estruturas clericais e religiosas baseadas no controle, no prestígio e na sacralização de funções. O clericalismo, tantas vezes denunciado pelo magistério recente da Igreja, nasce justamente da incapacidade de “diminuir”, de abrir espaço para a ação de Deus no outro e através do outro. Santo Agostinho, ao dizer que teme o Deus que passa e não é percebido, toca o nervo espiritual do texto. Deus passa na figura de um profeta incômodo, de um Messias sofredor, de discípulos frágeis. Passa nos acontecimentos da história, nos gritos dos pobres, nas crises que desnudam sistemas injustos. A pergunta não é se Deus vem, mas se estamos atentos à sua passagem. A recusa não se dá apenas por incredulidade explícita, mas por indiferença, por acomodação, por apego a esquemas que nos favorecem.

A patrística leu João Batista como ponte entre a antiga e a nova aliança. Orígenes via nele a figura do limite: o último dos profetas e o primeiro das testemunhas. João pertence ao Antigo Testamento por sua linguagem e radicalidade, mas aponta para o Novo por sua função. Ele não é a luz, mas testemunha da luz (Jo 1,8). Essa leitura ajuda a compreender o lugar do cristão na história: não somos a luz, mas somos chamados a testemunhá-la, mesmo quando isso implica desaparecer, perder visibilidade, renunciar a aplausos.

O tempo do  Advento, iluminado por Mateus 17,10-13, é profundamente crítica. Ela denuncia uma religião que espera um Elias espetacular, mas rejeita um profeta real; que espera um Messias glorioso, mas rejeita um Servo sofredor; que deseja restauração sem conversão. A restauração prometida não é cosmética nem institucional, mas relacional, ética e espiritual. Ela passa pela reconciliação, pela justiça, pela verdade. Por isso incomoda.

O  texto ainda  reflete o conflito entre o movimento de Jesus e as lideranças religiosas de seu tempo, mas também fala às comunidades mateanas que experimentavam perseguição e exclusão. Mateus escreve para uma Igreja que precisa entender que a rejeição não invalida sua missão. Pelo contrário, a insere na linhagem dos profetas. Essa consciência impede tanto o vitimismo estéril quanto o triunfalismo ingênuo.

A crítica às teologias do individualismo também emerge com força. João não vive para si, não constrói uma espiritualidade autorreferencial. Sua vida é missão. Ele existe para preparar o caminho de outro. Isso confronta uma fé reduzida a bem-estar pessoal, a consumo espiritual, a experiências religiosas desconectadas da justiça e da transformação social. A fé bíblica é sempre relacional, histórica e comunitária.

O Concílio Vaticano II afirma que a Igreja é, em Cristo, como um sacramento, sinal e instrumento da união com Deus e da unidade de todo o gênero humano (Lumen Gentium, 1). Ser sinal implica não ocupar o lugar daquilo que se sinaliza. O Papa Francisco, em Evangelii Gaudium, denuncia uma Igreja autorreferencial e chama a uma conversão pastoral que devolva centralidade ao Evangelho e aos pobres. Em Fratelli Tutti, recorda que não há verdadeira espiritualidade sem compromisso com a fraternidade e a justiça. 

Mateus 17,10-13, proclamado no Advento, não é um texto de conforto fácil, mas de lucidez espiritual. Ele nos lembra que Deus continua a enviar profetas, continua a visitar seu povo, continua a preparar caminhos. A pergunta decisiva permanece: reconhecemos essas visitas ou repetimos o gesto dos que fizeram com Elias tudo o que quiseram? Estamos dispostos a diminuir para que o Cristo cresça? Estamos preparados para uma fé que não promete sucesso, mas fidelidade?

O Advento, então, deixa de ser mera espera cronológica e torna-se exercício de discernimento. Discernir as passagens de Deus na história, nos conflitos, nas vozes que incomodam. Discernir os apegos que nos impedem de acolher. Discernir se nossa fé é serviço gratuito ou mercadoria religiosa. Como João, somos chamados a abrir a porta e sair, a preparar o caminho e desaparecer, a testemunhar e confiar que a obra é de Deus. É nesse descentramento que a verdadeira restauração acontece.

A descida do monte da Transfiguração é decisiva para compreender a densidade teológica e espiritual de Mateus 17,10-13. No alto, os discípulos experimentam a glória, veem Moisés e Elias conversando com Jesus, escutam a voz do Pai. No vale, encontram a pergunta, o conflito, a rejeição e o anúncio do sofrimento. Mateus constrói deliberadamente esse contraste para educar a fé: a experiência de Deus não dispensa a travessia da história. A revelação não anula o escândalo da cruz, mas o ilumina. Por isso, a pergunta sobre Elias nasce exatamente depois da visão gloriosa. Os discípulos querem entender por que, se Elias apareceu em glória no monte, ele foi rejeitado na história.

A resposta de Jesus articula três tempos: o passado da promessa, o presente do cumprimento e o futuro do sofrimento. Elias vem, Elias já veio, o Filho do Homem sofrerá. Essa tríplice dimensão revela a hermenêutica mateana: a Escritura não é anulada, mas reinterpretada à luz do Cristo. João Batista é lido como cumprimento tipológico de Elias, não por identidade literal, mas por missão e função. Ele vem no espírito e no poder de Elias, como já anunciara o anjo a Zacarias segundo Lucas: “Ele caminhará à frente do Senhor com o espírito e o poder de Elias, para reconduzir os corações dos pais aos filhos” (Lc 1,17). Mateus assume essa tradição e a insere numa leitura pascal da história.

Essa leitura tipológica é fundamental para compreender o símbolo de Elias. Elias é o profeta que vive às margens, no deserto, fora dos centros de poder. É sustentado por corvos, acolhido por uma viúva estrangeira, perseguido pelo rei, ameaçado por Jezabel. Sua experiência profética é marcada pela solidão, pela crise, pelo desejo de morrer, como no Horeb (1Rs 19). João Batista assume esse mesmo lugar simbólico: o deserto, a austeridade, a palavra dura, a denúncia do poder político e religioso. Ambos revelam que a fidelidade a Deus não conduz necessariamente ao sucesso, mas frequentemente ao conflito. Jesus, ao identificar João como Elias, também redefine a expectativa messiânica. O Elias esperado pelos escribas estava associado a uma restauração visível, quase institucional, que reorganizaria Israel segundo esquemas conhecidos. Jesus desmonta essa expectativa mostrando que a restauração acontece de modo paradoxal: pela conversão, pela denúncia, pela rejeição do profeta. O fracasso aparente não é fracasso do projeto de Deus, mas expressão de sua lógica kenótica. Esse é um ponto decisivo para a crítica às teologias da prosperidade e do domínio, que leem a bênção divina a partir de resultados mensuráveis, crescimento numérico, poder político ou influência cultural.

Mateus escreve para uma comunidade ferida, que experimenta rejeição tanto do judaísmo oficial quanto do Império Romano. A figura de João Batista funciona como espelho e consolo: se o precursor foi rejeitado, não é estranho que os seguidores do Cristo também o sejam. Essa consciência histórica impede que a comunidade transforme o Evangelho em instrumento de autopromoção ou em mecanismo de adaptação ao sistema. A fidelidade, não o sucesso, é o critério evangélico.

O texto ainda  revela uma pedagogia do descentramento. João Batista não constrói sua identidade a partir da permanência, mas da transitoriedade. Ele sabe que sua missão tem prazo. Diferente de líderes que se perpetuam no poder, que confundem função com identidade, João reconhece que o sentido de sua existência está em preparar o outro. Essa atitude confronta estruturas clericais e religiosas marcadas pelo apego a cargos, títulos e privilégios. O clericalismo, nesse sentido, não é apenas um problema institucional, mas uma patologia espiritual: a incapacidade de desaparecer para que Deus apareça.  Revelando o medo humano da conversão. Reconhecer Elias em João significaria aceitar o chamado à mudança, ao arrependimento, à revisão de práticas e estruturas. Por isso, é mais confortável negar o profeta do que escutar sua palavra. Esse mecanismo permanece atual: rejeitam-se vozes proféticas acusando-as de exagero, radicalismo ou inadequação, enquanto se preserva uma religião funcional, domesticada e compatível com o sistema.

E aqui temos a  evidência do conflito entre carisma e instituição. João não pertence ao templo, não se submete às lógicas de legitimação oficiais, não negocia sua palavra. Por isso é perigoso. O mesmo acontecerá com Jesus. Mateus mostra que a instituição religiosa, quando absolutiza a si mesma, torna-se incapaz de reconhecer a ação de Deus fora de seus esquemas. Essa crítica atravessa o Evangelho e chega até hoje, quando estruturas eclesiais, por vezes, resistem à conversão pastoral e à escuta do Espírito que fala através dos sinais dos tempos.   São João Crisóstomo observa que João Batista é grande justamente porque sabe desaparecer, porque não retém para si a atenção que pertence a Cristo. Santo Agostinho, ao comentar a figura do precursor, insiste que João representa a Lei e os Profetas, que conduzem até Cristo e depois se retiram. Essa leitura ajuda a compreender que toda mediação religiosa é provisória. Quando se absolutiza, transforma-se em obstáculo.

A  Igreja retoma essa intuição ao afirmar que a Igreja não é fim em si mesma, mas sacramento do Reino. O Vaticano II insiste que a Igreja deve continuamente purificar-se e renovar-se (Lumen Gentium, 8). O Papa Francisco aprofunda essa perspectiva ao denunciar a autorreferencialidade e o clericalismo como deformações do Evangelho. Em chave adventícia, Mateus 17,10-13 convida a Igreja a perguntar-se se está preparando o caminho do Senhor ou ocupando o lugar do Senhor. 

A crítica à fé como mercadoria emerge com força quando se observa o contraste entre João e as lógicas religiosas contemporâneas baseadas em consumo, espetáculo e recompensa. João não promete prosperidade, não oferece soluções rápidas, não vende bênçãos. Sua palavra é exigente, sua vida é austera, seu fim é violento. No entanto, é ele quem Jesus chama de maior entre os nascidos de mulher (Mt 11,11). Essa afirmação desautoriza qualquer tentativa de medir a fidelidade evangélica a partir de critérios mercadológicos. 

Mateus 17,10-13, educa o olhar para reconhecer Deus onde menos se espera. Não na glória contínua, mas na tensão; não no triunfo imediato, mas na fidelidade provada; não na permanência, mas na passagem. Elias vem, Elias já veio, Elias continua vindo em todas as vozes que preparam o caminho do Senhor e são rejeitadas porque desinstalam. O Advento, assim, torna-se tempo de conversão do olhar, do desejo e da fé.

Reconhecer João como Elias implica aceitar que Deus passa por mediações frágeis, humanas e históricas. Implica também aceitar que a missão cristã não é ocupar espaços de poder, mas abrir caminhos; não é garantir sucesso, mas testemunhar a verdade; não é perpetuar-se, mas servir e desaparecer. Nesse horizonte, o texto deixa de ser apenas memória do passado e torna-se critério de discernimento para o presente da Igreja e do mundo. O horizonte escatológico que atravessa Mateus 17,10-13 impede que o texto seja lido apenas como explicação retrospectiva sobre João Batista. Trata-se de uma chave interpretativa para toda a história humana. A pergunta dos discípulos — por que Elias não foi reconhecido? — ecoa em cada tempo histórico como pergunta sobre a incapacidade estrutural das sociedades de acolher aquilo que as desinstala. A recusa do profeta não é acidente, mas sintoma. Revela mecanismos profundos de defesa coletiva contra a verdade que exige mudança 

Desde Platão, sabe-se que o prisioneiro que sai da caverna e retorna para anunciar a luz é rejeitado, ridicularizado e, se possível, silenciado. O profeta bíblico e o filósofo autêntico partilham esse destino: ambos confrontam ilusões socialmente organizadas. João Batista, como Elias, rompe consensos, denuncia autoenganos e revela a distância entre religião e justiça. Por isso, não é apenas incompreendido; é eliminado. O texto de Mateus dialoga com essa estrutura antropológica do conflito entre verdade e poder. Do ponto de vista histórico-crítico, é significativo que Mateus sublinhe a responsabilidade coletiva: “não o reconheceram, mas fizeram com ele tudo o que quiseram”. A forma passiva oculta o sujeito, mas não dilui a culpa. Trata-se de uma violência institucionalizada, legitimada por estruturas políticas e religiosas. João é morto por Herodes, mas com a conivência de elites e pela lógica do espetáculo cortesão. Essa dinâmica reaparece na paixão de Jesus e se perpetua quando sistemas sacrificam vidas em nome da estabilidade, do lucro ou da ordem.

 Portanto, se faz necessário  uma leitura que vá além do moralismo individual. O desprezo pela visita de Deus não se limita a escolhas pessoais, mas se enraíza em culturas, ideologias e modelos econômicos que tornam a conversão inviável. Aqui emerge com força a crítica às teologias que absolutizam o sucesso e naturalizam a desigualdade. Uma fé moldada pela lógica do mercado não reconhece profetas; reconhece apenas gestores religiosos eficientes. João fracassa segundo esses critérios — e exatamente por isso é fiel.

O símbolo do deserto, central na figura de João, possui uma densidade antropológica e espiritual decisiva. O deserto é lugar de despojamento, de escuta, de dependência radical. É o espaço onde caem as ilusões de controle. Israel conhece Deus no deserto antes de conhecê-lo no templo. João escolhe o deserto porque sabe que a conversão não nasce do excesso, mas da falta; não do ruído, mas do silêncio. Essa escolha confronta uma religiosidade urbana, ruidosa e performática, que confunde presença divina com impacto emocional. 

Jesus assume essa herança, mas a radicaliza. Se João prepara o caminho pelo chamado à conversão, Jesus percorre esse caminho até o fim, assumindo o destino do Servo Sofredor anunciado por Isaías. Mateus sugere essa continuidade quando afirma que o Filho do Homem sofrerá como João sofreu. O título “Filho do Homem”, carregado de ressonâncias apocalípticas e humanas, impede qualquer leitura espiritualista da paixão. O sofrimento não é abstração; é histórico, político, corporal.

A teologia da cruz, que emerge implicitamente nesse texto, desmonta a religião do sucesso. O Deus que passa não se impõe pela força, mas se oferece na fragilidade. Por isso, só é reconhecido por quem aceita perder. Santo Inácio de Antioquia já intuía essa lógica quando afirmava que o cristão se torna plenamente discípulo quando participa da paixão de Cristo. A patrística, longe de glorificar o sofrimento em si, reconhece nele o lugar onde o amor se revela sem máscaras.

A liturgia  do Advento  iluminados  por Mateus 17,10-13, adquire assim uma densidade política e social. Esperar o Senhor não é aguardar passivamente um evento futuro, mas discernir as passagens de Deus no presente histórico. Isso exige atenção às periferias, aos desertos contemporâneos, às vozes que clamam fora dos centros de poder. Exige também coragem para reconhecer que muitas vezes a rejeição do profeta se repete dentro da própria comunidade crente. A sociologia da religião ajuda a compreender como comunidades podem neutralizar a profecia transformando-a em memória inofensiva. João Batista é facilmente celebrado depois de morto, assim como os profetas do passado. Jesus denuncia esse mecanismo quando acusa os líderes de construir túmulos para os profetas enquanto rejeitam os vivos (Mt 23,29-31). O texto de Mateus 17,10-13 alerta contra essa tentação: honrar Elias no monte e matar João na história.

A palavra profética funciona como espelho incômodo. Por isso, gera resistência, negação e agressividade. Esse mecanismo é visível tanto em indivíduos quanto em instituições. A violência contra João não é apenas política; é também defensiva. Elimina-se o mensageiro para não enfrentar a mensagem. No campo eclesial, o texto interroga práticas pastorais baseadas em números, visibilidade e eficiência. O critério do Evangelho não é o crescimento quantitativo, mas a fidelidade qualitativa. João reúne multidões, mas não as retém. Jesus forma discípulos, mas aceita vê-los fugir. Essa liberdade em relação aos resultados é sinal de confiança radical em Deus. Onde ela falta, instala-se o controle, o medo e o clericalismo.

Se faz necessário  saber que missão da Igreja não é conquistar espaços, mas gerar processos. Essa intuição, presente em Evangelii Gaudium, encontra eco profundo na figura de João Batista. Ele inicia um processo e aceita não concluí-lo. Prepara o caminho e sai de cena. Essa lógica processual é incompatível com projetos religiosos autoritários e messiânicos.

Aqui se faz uma  crítica às teologias do domínio encontra aqui um ponto decisivo. Se Elias já veio e foi rejeitado, não faz sentido esperar uma intervenção divina que imponha o Reino por força. O Reino cresce como semente, fermento, processo histórico marcado por conflitos. Qualquer tentativa de antecipar a glória eliminando a cruz trai o Evangelho. Ao longo da história, inúmeros homens e mulheres assumiram esse lugar de Elias: vozes que prepararam caminhos, denunciaram injustiças, chamaram à conversão e foram silenciadas. A memória desses testemunhos — de profetas bíblicos a mártires contemporâneos — prolonga a leitura de Mateus 17,10-13 e impede sua domesticação litúrgica.

O Advento, portanto, não é tempo de anestesia espiritual, mas de vigilância crítica. Vigiar significa manter os olhos abertos para as visitas de Deus que não correspondem às nossas expectativas. Significa discernir se estamos reconhecendo Elias quando ele vem ou se continuamos perguntando por ele enquanto o rejeitamos. À medida que o texto se aproxima do mistério da paixão, ele prepara o leitor para compreender que a rejeição não é o fim da história. O sofrimento do Filho do Homem não tem a última palavra. Mas essa esperança não elimina a exigência ética do presente. A ressurreição não justifica a violência contra os profetas; antes, desmascara-a.

Assim, Mateus 17,10-13 torna-se critério permanente de discernimento eclesial e pessoal. Onde há profecia rejeitada, ali Deus passou. Onde há fidelidade silenciosa, ali o Reino se aproxima. O Advento educa para essa percepção fina, capaz de reconhecer Deus não apenas na luz do monte, mas na sombra da prisão de João, no silêncio do deserto, na fragilidade das vozes que ainda hoje preparam o caminho do Senhor.

Para que o texto alcance com precisão o padrão acadêmico de nove laudas, é necessário ainda um último movimento de lapidação: aprofundar alguns eixos bíblicos centrais, equilibrar o ritmo dos parágrafos e reforçar a tessitura escriturística que sustenta toda a reflexão, sem quebrar a organicidade nem introduzir estruturas artificiais. Esse ajuste não acrescenta um novo tema, mas densifica o já presente, fazendo o texto respirar no mesmo compasso da Escritura.

A figura de Elias, reinterpretada por Jesus, atravessa toda a Bíblia como sinal de uma presença divina que não se fixa, mas se desloca. Elias não encontra Deus no terremoto, nem no fogo, nem no furacão, mas no murmúrio de uma brisa suave (1Rs 19,12). Esse dado ilumina profundamente Mateus 17,10-13. O problema não é a ausência de Deus, mas a incapacidade de reconhecê-lo quando ele se manifesta fora do esperado. O mesmo padrão reaparece em Jesus: “Veio para o que era seu, mas os seus não o acolheram” (Jo 1,11). A rejeição não nasce da ignorância, mas da frustração das expectativas.

Mateus insiste, ao longo de seu evangelho, que a história da salvação avança por meio de recusas. José é rejeitado pelos irmãos, Moisés pelo próprio povo, Jeremias lançado na cisterna, Elias perseguido, João decapitado, Jesus crucificado. Esse fio narrativo impede qualquer leitura triunfalista da fé. O Deus bíblico não se impõe, propõe. Não violenta a história, atravessa-a. Por isso, o desprezo pela visita de Deus se torna uma constante pedagógica: revela o estado do coração humano e das estruturas sociais.

Quando Jesus afirma que Elias já veio e não foi reconhecido, ele desloca a questão da cronologia para a ética. O problema não é quando Elias vem, mas como o povo responde quando ele chega. Essa chave hermenêutica vale para todo tempo. A pergunta correta não é “quando Deus virá?”, mas “como reagimos quando Ele passa?”. Essa passagem de Deus acontece, segundo a Escritura, nos pobres, nos pequenos, nos profetas incômodos, nos acontecimentos que desmontam nossas seguranças, como recorda o próprio Jesus em Mateus 25.

A ampliação bíblica permite ainda aproximar Mateus 17,10-13 da tradição sapiencial. O livro da Sabedoria afirma que os ímpios não reconheceram o justo e planejaram sua morte porque sua vida os incomodava (Sb 2,12-20). Esse texto funciona quase como comentário antecipado da rejeição de João e de Jesus. A justiça incomoda porque desmascara. A verdade perturba porque revela a distância entre discurso religioso e prática concreta.

Do ponto de vista do Novo Testamento, a Primeira Carta de Pedro oferece uma chave decisiva quando afirma que não é estranho sofrer por causa da justiça, pois isso significa participar dos sofrimentos de Cristo (1Pd 4,12-14). Essa teologia do sofrimento não legitima a opressão, mas denuncia a violência de um mundo que rejeita a verdade. João não morre porque buscou a morte, mas porque permaneceu fiel. Essa distinção é fundamental para evitar leituras espiritualistas ou masoquistas do texto. O equilíbrio acadêmico do texto exige também explicitar que a rejeição do profeta não anula sua eficácia. Pelo contrário, a palavra profética continua operando mesmo quando o mensageiro é silenciado. Isaías já intuía isso ao afirmar que a palavra de Deus não volta vazia, mas realiza aquilo para o qual foi enviada (Is 55,10-11). João cumpre sua missão plenamente, ainda que termine na prisão. O critério da fecundidade bíblica não coincide com o critério do êxito histórico imediato.

Esse ponto é decisivo para a crítica à fé como mercadoria. Uma religião moldada pelo mercado mede resultados, contabiliza adesões, transforma experiências espirituais em produtos. O Evangelho, porém, mede fidelidade, coerência e verdade. Jesus não relativiza o fracasso aparente de João; ao contrário, o interpreta como sinal de sua autenticidade. Essa inversão de critérios atravessa todo o Sermão da Montanha, onde os bem-aventurados são justamente os pobres, os mansos, os perseguidos (Mt 5,1-12). A ampliação do diálogo com os sinóticos permite ainda recordar que Lucas situa João como aquele que prepara um povo bem disposto para o Senhor (Lc 1,17). Não se trata de preparar estruturas, mas pessoas. Não se trata de construir sistemas religiosos, mas de formar consciências. Essa distinção tem profundas implicações pastorais e eclesiais, sobretudo num contexto em que a fé corre o risco de ser reduzida a pertencimento institucional ou identidade ideológica.

O equilíbrio final do texto se completa quando se reconhece que Mateus 17,10-13 não conduz ao pessimismo, mas a uma esperança lúcida. A rejeição do profeta não impede a vinda do Reino, mas revela seu modo de agir. O Reino cresce como semente lançada na terra, muitas vezes invisível, muitas vezes esmagada, mas irredutível. Essa lógica atravessa as parábolas de Mateus 13 e encontra eco na afirmação paulina de que Deus escolhe o que é fraco para confundir o forte (1Cor 1,27). Assim, o texto alcança seu fechamento teológico e acadêmico: Mateus 17,10-13, proclamado no sábado da segunda semana do Advento, torna-se uma lente para ler a história, a Igreja e a própria vida. Ele denuncia ilusões religiosas, desmonta teologias do poder, desmascara o clericalismo, critica a fé individualista e mercantilizada, e convida a uma espiritualidade do descentramento, da vigilância e da fidelidade.

O Advento, à luz desse Evangelho, não é tempo de fuga do mundo, mas de discernimento profundo. Deus passa. Passa discretamente. Passa nos profetas rejeitados, nos justos silenciados, nos sinais que não brilham. Bem-aventurados os que reconhecem Elias quando ele vem, mesmo sem glória, mesmo sem aplauso. Porque é assim que o Reino se aproxima.

DNonato - Teólogo do Cotidiano 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Obrigado pelo seu comentário.