“Comer o Corpo, beber o Sangue: entre o escândalo e a comunhão”
“Minha carne é verdadeira comida, e meu sangue, verdadeira bebida” (Jo 6,55). Estas palavras de Jesus ressoaram como um escândalo para seus ouvintes e, em muitos sentidos, continuam a desafiar nossas concepções. Em um tempo veloz, marcado pela cultura do descartável e acirrado por polarizações, Cristo nos oferece a simplicidade do pão e do vinho, carregando consigo uma verdade absoluta: sua presença real, total e viva.
A comunhão transcende a mera formalidade de um rito; ela se configura como um ato de profunda transformação e, ousaria dizer, revolucionário. Diante de uma sociedade assolada pela fome – tanto a material quanto a de significado –, a Eucaristia nos confronta com uma realidade divina: Deus se faz alimento, não para uma elite, mas para a totalidade da humanidade. O Evangelho, nessa perspectiva, não tolera privilégios, pois o mesmo Cristo se doa tanto ao conservador quanto ao progressista, ao indivíduo de direita quanto ao de esquerda, ao santo e ao pecador que busca o arrependimento.
Essa universalidade da Eucaristia ganha contornos ainda mais desafiadores quando observamos o panorama sociológico atual. Vivemos em um mundo fragmentado, onde até mesmo os discursos de fé correm o risco de serem instrumentalizados por ideologias políticas. Alguns se apropriam seletivamente de valores morais, enquanto outros enfatizam a justiça social de maneira excludente. Contudo, a Eucaristia possui o poder de desarmar esses extremos. Aquele que comunga em espírito e verdade não pode, em coerência, excluir o seu semelhante da mesa da fraternidade. Ecoando as palavras do Papa Francisco, “Na Eucaristia, o Senhor nos dá a graça da comunhão e nos pede para a vivermos na fraternidade.” A persistente polarização que fragmenta até mesmo as comunidades eclesiais serve como um doloroso indicativo de uma insuficiente interiorização do Mistério que celebramos.
Nessa mesma linha de reflexão, o Documento de Aparecida nos recorda a força motriz da Eucaristia, que “impulsiona à solidariedade com os mais pobres e à conversão social” (DAp 258). A Eucaristia, portanto, não nos convida a tomar partido em disputas ideológicas, mas sim a nos deixarmos conduzir pelo Cristo que se despojou de sua glória para se fazer pobre, servo e, derradeiramente, o pão que nutre a vida do mundo (Jo 6,51). A sabedoria profética de Dom Pedro Casaldáliga ecoa essa verdade ao afirmar que “A Eucaristia será sempre subversiva enquanto for memória do Jesus que se fez pão, partiu o pão, e foi comido para a vida do mundo.”
Olhando para as raízes da fé cristã, as primeiras comunidades vivenciavam uma prática religiosa intrinsecamente ligada à partilha e ao serviço mútuo. Os Atos dos Apóstolos nos revelam uma realidade onde “entre eles não havia necessitados, pois repartiam conforme a necessidade de cada um” (At 4,34-35). Essa lógica do Reino, fundamentada na fraternidade e na igualdade essencial, representa uma profunda subversão da lógica do lucro e do poder que molda o mundo.
A profundidade desse mistério da unidade é magistralmente capturada nas palavras de Santo Tomás de Aquino, que afirmava que “nada é mais eficaz contra a divisão do que o Sacramento da unidade”. São João Paulo II, na encíclica Ecclesia de Eucharistia (n. 35), complementa essa visão, advertindo que “A Eucaristia cria comunhão e educa para ela.”
Em nosso tempo presente, marcado por transições e incertezas, a eleição do Papa Leão XIV surge como um sinal da contínua condução da Igreja pelo Espírito Santo. Para muitos, sua escolha representa um chamado à escuta atenta, ao discernimento sereno e à urgente superação das polarizações que também afligem o corpo eclesial. Que sua liderança nos inspire a reencontrar na Eucaristia o cerne da vida cristã, priorizando não a rigidez das ideologias, mas a mensagem transformadora do Evangelho; não o espírito de partidarismo, mas o Pão partilhado que nos constitui como Igreja – una, santa, católica e apostólica.
Nesse sentido, celebrar a Eucaristia sem um sincero esforço de reconciliação com o próximo, sem um compromisso genuíno com aqueles que carregam as feridas da história, inevitavelmente a transforma em um rito esvaziado de seu significado mais profundo. Jesus se entrega por inteiro e, em reciprocidade, espera de nós entrega e compromisso. Sua advertência ressoa com clareza: “Se, ao trazeres a tua oferta ao altar, ali te lembrares de que teu irmão tem alguma coisa contra ti, deixa a tua oferta diante do altar e vai primeiro reconciliar-te com teu irmão; só então vem apresentar a tua oferta” (Mt 5,23-24).
Diante do abismo da polarização que se manifesta entre esquerda e direita, ortodoxos e progressistas, moralistas e militantes, a Eucaristia nos convoca a uma mesa comum. Nesta mesa, a dignidade não é uma questão de mérito individual ou de alinhamento ideológico, mas um dom universal, pois todos somos alcançados pela mesma e infinita misericórdia divina.
Comer o Corpo e beber o Sangue do Senhor é, portanto, um ato de profunda abertura, um deixar-se transformar por sua presença viva. Não se trata de uma questão de merecimento prévio, mas de uma humilde disposição do coração. Como sabiamente nos lembrava o Cura d’Ars: “Não somos dignos, mas precisamos.”
E talvez, neste tempo de tantas divisões, a grande profecia da Eucaristia seja justamente esta: o convite radical a sentar-se à mesma mesa, permitindo que o Pão da vida nos refaça, pela graça, irmãos novamente.
DNonato – Leigo católico, graduado em História, vivendo o sacerdócio comum dos fiéis
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