sábado, 10 de maio de 2025

Um outro olhar sobre João 10,27-30

“As minhas ovelhas escutam a minha voz, eu as conheço e elas me seguem. Eu lhes dou a vida eterna, e elas jamais se perderão. Ninguém vai arrancá-las da minha mão.” (Jo 10,27-28)

Neste 4º Domingo da Páscoa, somos convidados a ouvir a voz do Bom Pastor, que chama suas ovelhas pelo nome. Em meio à agitação do mundo, Ele nos oferece um espaço de acolhimento e cuidado, onde a sua voz se faz presença viva, chamando-nos à vida plena.

Também chamado de Domingo do Bom Pastor, este dia nos oferece as seguintes leituras no calendário litúrgico dominical:

  • Primeira Leitura: Atos dos Apóstolos 13,14.43-52
  • Salmo Responsorial: Salmo 99(100),2.3.5 (R. 3ac)
  • Segunda Leitura: Apocalipse de São João 7,9.14b-17
  • Evangelho: João 10,27-30

É a partir do Evangelho de João que queremos refletir neste domingo, escutando a voz do Bom Pastor que nos chama pelo nome e nos conduz à vida eterna. Texto que  nós  já refletimos  no texto Um Olhar  sobre  João 10,27-30 e no vídeo Reflexão: Boa Nova de Jesus Cristo segundo São João 10,27-30. Domingo do Bom Pastor.  

As palavras de Jesus ecoam em uma sociedade que, cada vez mais, substitui pastores por gestores, e o cuidado por controle. Mas o Pastor que a liturgia nos apresenta não é apenas um líder eficaz ou um bom administrador de rebanhos. Ele é aquele que conhece, chama pelo nome e dá a vida – não apenas teoricamente, mas na carne da cruz.

A imagem do Pastor está entranhada nas páginas da Escritura como fio condutor da ternura divina. Davi, o pastor que protegia as ovelhas do pai Jessé (1Sm 17,34-35); Moisés, que apascentava o rebanho quando recebeu o chamado de Deus (Ex 3,1); o próprio Jacó, pastor exilado e abençoado (Gn 31,38-40). O pastoreio, na Bíblia, é serviço humilde, não é poder. É exposição à ameaça para preservar a vida do outro. No capítulo 34 de Ezequiel, Deus denuncia os maus pastores que se apascentam a si mesmos e promete que Ele mesmo cuidará do seu rebanho. Em Jesus, essa promessa se realiza.

O pastor que Jesus nos apresenta não é aquele que governa com poder ou controle. Ele é aquele que se faz vulnerável, que nos conhece intimamente e se oferece por nós. Em tempos onde a figura do líder se confunde muitas vezes com a do gestor, a figura do Bom Pastor nos desafia a redescobrir o verdadeiro sentido de liderança: não no domínio, mas no serviço.

O Salmo 99 nos convida a servir com alegria, reconhecendo que somos d’Ele, seu povo e ovelhas de seu rebanho. Escutar a voz do Bom Pastor é reconhecer que não somos donos do rebanho. A missão pastoral não é monopólio clerical, tampouco palco para vaidades. Como o Documento de Aparecida (CELAM, 2007) afirma: “O pastor deve discernir, animar e sustentar a fé do povo, que é o verdadeiro sujeito eclesial.” (DAp, 371). A liderança pastoral deve brotar da vida do povo, não de sua manipulação.

A figura de Jesus como ovelha e pastor é retomada em Ap 7,17: “O Cordeiro será o Pastor.” Paradoxo revelador. O pastor que conduz é o mesmo que se imola. A autoridade d’Ele nasce do serviço, não da força. Da doação, não da coerção. Jesus não é um líder distante, mas o Pastor que conhece as feridas das ovelhas e as carrega nos ombros. Ele não impõe sua vontade, mas nos chama suavemente, oferecendo-nos o alívio da sua presença.

Isso contrasta com a imagem que alguns cultivam hoje: um Cristo armado, beligerante, identificado com poder, violência, nacionalismo e masculinidade tóxica. Essa distorção do Bom Pastor — como se empunhasse uma arma em vez de carregar a ovelha nos ombros — fere o Evangelho em sua essência.

Não é à toa que a polarização política tenta sequestrar a figura de Jesus. De um lado, a extrema direita o reduz a defensor da ordem, da moral tradicional, da propriedade, blindando privilégios. De outro, parte da esquerda, em algumas de suas expressões mais ideológicas, o transforma em mero símbolo da luta de classes, esvaziando seu mistério salvífico. Ambos os extremos erram ao instrumentalizar o Cristo. Ele não cabe em partidos nem bandeiras. Seu Reino não é deste mundo, mas transforma este mundo profundamente.

A eleição do Papa Leão XIV, em 9 de maio de 2025, oferece um novo impulso à reflexão sobre o pastoreio. Em tempos de crise, o novo Papa, com sua formação agostiniana e experiência de serviço aos pobres, lembra-nos que o pastor verdadeiro é aquele que, como o Cordeiro, se imola em favor do povo. Ele é chamado a liderar com humildade, não com força. Leão no nome, mas chamado à mansidão do Cordeiro. Que se inspire nos grandes papas Leões: o I, defensor do povo; o XIII, profeta da Doutrina Social da Igreja.

O Papa Francisco, cuja ausência ainda é sentida, nos deixou palavras luminosas sobre o pastoreio. Em sua exortação Evangelii Gaudium, escreveu: “O pastor deve ter o cheiro das ovelhas.” Francisco não falava de forma simbólica apenas. Caminhava entre o povo, ouvia o grito dos pobres, confrontava estruturas de morte. Sua voz permanece como eco do Bom Pastor entre nós.

Também ressoa aqui a voz de Desmond Tutu, arcebispo anglicano sul-africano e símbolo da luta contra o apartheid, que afirmou: “Se você é neutro em situações de injustiça, você escolheu o lado do opressor.” Sua frase ilumina o pastoreio cristão como denúncia profética, não como neutralidade covarde. O Bom Pastor não foge diante do lobo. Ele se expõe, como Jesus. E sua missão é libertar o povo, não domesticá-lo.

Neste domingo, ao celebrarmos também a vocação das mães, podemos traçar um paralelo profundo: maternidade e pastoreio se encontram na mesma lógica – a da entrega silenciosa e fecunda. Mãe e Pastor verdadeiros não vivem para si. Alimentam, choram, esperam, sustentam. O amor pastoral deve ser como o de mãe: gratuito, fecundo, vigilante. Não por acaso, a tradição da Igreja recorre à imagem de Deus com amor de mãe (Is 66,13; Os 11,1-4). A Igreja, mãe e mestra, não pode perder essa ternura.

Hoje, escutemos de novo a voz que nos chama pelo nome

Que tipo de ovelha temos sido?

E, se porventura andamos perdidos, que bom saber: Ele jamais deixará de nos procurar.

O Pastor verdadeiro não é aquele que grita, mas aquele que conhece. Não é o que se impõe, mas o que serve. Não é o que arma o rebanho, mas o que se desarma por ele. E as ovelhas, ao escutarem sua voz, reconhecem nele a verdade, a vida e o caminho.

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DNonato – Leigo católico, graduado em História; uma ovelha enlameada,  às vezes confundida com pastor, no rebanho do Bom Pastor.




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