- A Paz Inquieta do Ressuscitado: Um Chamado Profético
- 1ª leitura: Atos dos Apóstolos 15,1-2.22-29;
- Salmo 66(67),2-3.5.6 e 8 (R. 4);
- 2ª leitura: Apocalipse de São João 21,10-14.22-23
- Evangelho João 14,23-29
"Deixo-vos a paz, dou-vos a minha paz" (Jo 14,27) que nos ajuda a pensar, que paz é essa que Jesus nos oferece?
Certamente não é a Pax Romana, imposta pela força das espadas, sustentada por muros de exclusão e pela opressão dos povos. Não é o silêncio dos cemitérios, nem a estabilidade ilusória que nasce da injustiça e da conformidade. A paz de Cristo é o shalom bíblico: uma plenitude relacional que abarca a reconciliação integral entre Deus, a humanidade e toda a criação (cf. Is 32,17; Sl 85,10-13). É uma justiça restaurativa que não se contenta com a ausência de conflito, mas clama por dignidade onde a morte quis fazer morada.
O Cristo Ressuscitado, nos domingos anteriores, aparece aos discípulos desejando a paz: no primeiro dia da semana, ao entardecer, com as portas fechadas por medo (Jo 20,19); depois a Tomé, que duvida e precisa tocar as feridas (Jo 20,26); e aos caminhantes de Emaús, que, desiludidos, partem rumo à fuga (Lc 24,13-35). Em todas essas manifestações, a paz anunciada não é calmaria conformista, mas alento para os que caminham na noite escura da história. Essa paz ressuscitada é dom e missão, consolo e envio, presença e incômodo. O Ressuscitado não anestesia consciências; ele as desperta com o sopro do Espírito.
Como nos lembra o profeta Isaías, o Messias é o "Príncipe da Paz" (Is 9,6), e seu reinado será de "paz sem fim" (Is 9,7), fundamentado na justiça e no direito. Não se trata, portanto, de uma emoção confortável, mas de uma vocação profética que nos impulsiona à ação. É a paz de Jeremias (Jr 6,14), que denuncia os falsos profetas que “tratam superficialmente a ferida do meu povo, dizendo: ‘Paz! Paz!’, quando não há paz.”
O contexto joanino, marcado por perseguições externas, cisões internas, medo e desorientação na comunidade cristã primitiva, encontra eco perturbador em nossa própria realidade contemporânea. A Palavra de Deus ressoa hoje em uma sociedade fraturada pela desigualdade estrutural, corroída por ideologias de exclusão e ódio, e frequentemente capturada por uma extrema direita fundamentalista que manipula símbolos religiosos para sustentar projetos de poder, violência simbólica e dominação
Estamos diante de um fenômeno perigoso: a transformação do cristianismo em ideologia política, associando a fé ao controle moral, ao autoritarismo e à intolerância. Essa captura da fé pela lógica do mercado e do militarismo reatualiza o farisaísmo denunciado por Jesus (cf. Mt 23), que impõe fardos pesados sem mover um dedo para ajudar. Não se pode servir a Deus e ao poder (cf. Mt 6,24). Jesus promete o envio do Paráclito – o Defensor, o Consolador, o Espírito da Verdade (Jo 14,26). Este não é um espírito dócil à ordem vigente, que se acomoda às injustiças ou abençoa o status quo. Pelo contrário, é um sopro transformador que desinstala, que incomoda, que convoca à missão e à denúncia. Como em Pentecostes, Ele nos empurra para fora dos espaços de medo (At 2), para anunciar com ousadia o Reino. A antropologia bíblica entende shalom como bem-estar coletivo, harmonia social e comunhão plena entre Criador, criatura e criação. É uma paz com nome e endereço: paz no campo espoliado, na favela marginalizada, no quilombo ameaçado, no corpo ferido das vítimas da fome, da negligência e da violência. É a paz que se manifesta na "justiça que corre como um rio e a retidão como um ribeiro perene" (Am 5,24).
A filosofia política crítica, de inspiração kantiana e pós-marxista, também nos ajuda a compreender que a paz verdadeira é fruto de estruturas justas, não apenas de boa vontade individual. Paulo Freire afirmava que “a paz é fruto da justiça e não da acomodação”. Hannah Arendt denunciava os perigos do totalitarismo e da banalização do mal, sempre que a cidadania se cala diante da violência institucionalizada.
Este ano marca os 10 anos da encíclica Laudato Si’, um grito profético do Papa Francisco que denunciou o colapso ambiental como sintoma evidente de um colapso espiritual e ético. A paz verdadeira não será possível enquanto continuarmos a destruir os ecossistemas e a descartar vidas humanas como lixo. A justiça climática é inseparável da justiça social.
Neste horizonte de esperança e desafio, ressoa a homilia de início do pontificado do Papa Leão XIV, o cardeal Robert Francis Prevost, que no último 18 de maio assumiu o ministério petrino. Suas palavras ecoam como continuidade encarnada do Evangelho pascal: “Esta é a hora do amor! Olhem para Cristo e aproximem-se Dele. A paz cristã é caminho de solidariedade entre os povos e reconciliação com a terra ferida.”
Ao evocar o amor como bússola da paz, Leão XIV denuncia com elegância, mas com firmeza, os sistemas que promovem o medo do diferente e erguem os muros do preconceito. Sua fala não é neutra; é profundamente comprometida com a causa do Reino. Ele fala de uma Igreja que não se curva à extrema direita que, em diversas partes do mundo, tenta transformar o cristianismo em ideologia de dominação, pureza étnico-moral e exclusão. Leão XIV recusa também os vícios do clericalismo e da autorreferencialidade eclesiástica, quando lembra que o Papa é antes de tudo “irmão e servo da fé”, e não gestor de dogmas ou senhor de palácios. Seu gesto simbólico de não se instalar nos aposentos pontifícios tradicionais é um sinal de uma Igreja que deseja descer dos tronos e subir ao calvário dos povos.
A teologia da paz, que perpassa os profetas do Antigo Testamento até o Apocalipse, exige uma conversão estrutural e um compromisso radical com a justiça. A Nova Jerusalém descrita por João (Ap 21,10-14.22-23) não é uma miragem celestial distante, mas uma proposta política e espiritual para o aqui e agora. Ela surge onde a justiça floresce, onde os portões se abrem à diversidade e à acolhida, onde não há templo porque Deus habita diretamente no povo (cf. Ap 21,3), em cada pessoa e em cada relação fraterna. Mas, para que ela emerja, é preciso denunciar e derrubar as Babilônias modernas: os sistemas financeiros desumanos que geram miséria, os altares do consumo desenfreado que destroem a criação, os púlpitos do moralismo excludente que condenam em vez de acolher. Como alertava o teólogo alemão Johann Baptist Metz, a fé cristã deve manter viva a “memória perigosa” do Crucificado, que questiona todos os poderes estabelecidos.
Dizia Dom Pedro Casaldáliga, profeta latino-americano da esperança encarnada e da luta pela libertação: “A paz que o mundo promete é a paz do cemitério. A paz que Jesus nos dá é a paz da luta, da entrega, do amor que não recua.” Essa é a paz que perturba os acomodados e consola os crucificados. Não é tolerância passiva diante da injustiça, mas resistência amorosa e ativa que se manifesta em gestos concretos de solidariedade.
Jesus nos chama à fidelidade que se faz morada de Deus. E essa fidelidade não se mede por discursos vazios ou por uma fé meramente intelectual, mas por gestos concretos de amor e serviço (cf. Mt 25,31-46). Somos templos do Espírito Santo (1Cor 6,19), e esse Espírito nos envia aos caminhos da vida, não às vitrines da ostentação religiosa. Ele clama contra uma espiritualidade de aparência, que mascara a ausência de compaixão com reverências estéreis e liturgias vazias (cf. Is 1,11-17).
Como diz o Papa Francisco na Evangelii Gaudium: “Não podemos viver numa eterna sexta-feira santa.” A ressurreição não é apenas um consolo para a dor, mas uma rebelião contra toda forma de morte que assola a humanidade e a criação. Cada gesto de solidariedade, cada ato de partilha, cada denúncia profética contra a injustiça é Páscoa. Cada justiça conquistada é uma pedra removida do túmulo da história.
Neste último domingo da Páscoa, invoquemos com ousadia e fé:
Vem, Espírito da Verdade! Sopra sobre os desertos do nosso tempo: sobre a Igreja que teme a profecia e se apega ao poder, sobre os governos que oprimem os pobres e desconsideram a vida, sobre os povos que se esquecem de sonhar e de lutar por um mundo mais justo. Faz de nós morada do Ressuscitado, santuário do amor revolucionário, fermento de um mundo novo, onde a vida plena seja para todos. Arranca de nossas mãos os ídolos do comodismo e da indiferença, rasga as liturgias vazias de sentido e de compromisso, purifica os altares da conveniência e da hipocrisia. Não queremos uma paz de fachada, que silencia as vítimas e abençoa a injustiça, mas o shalom que transforma a história, que incomoda e que liberta.
Queremos amar com gestos concretos, viver com os pés na terra ferida e os olhos fixos no Reino que vem, construindo-o dia a dia. Ensina-nos a guardar a Palavra de Jesus: não como doutrina decorada e estéril, mas como caminho de justiça, ternura, compaixão e partilha.
E que um dia, entre lágrimas enxugadas e feridas curadas, possamos reconhecer a Nova Jerusalém nascendo entre nós, em cada ato de amor que transforma o mundo.
DNonato – Graduado em História, teólogo do cotidiano e um sonhador da Paz.
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