“Se o mundo vos odeia, sabei que, antes de vós, odiou a mim.” (Jo 15,18)
Este versículo é mais do que uma advertência. É um chamado à fidelidade radical. Jesus alerta seus discípulos de que o caminho do Reino não se alinha com os valores deste mundo. A fé cristã autêntica não busca aplausos, mas se enraíza na cruz, símbolo de escândalo (cf. 1Cor 1,23), resistência e amor não domesticado. O ódio do mundo não é acidente de percurso, mas resposta à luz que incomoda as trevas (cf. Jo 3,19-20). A rejeição é a marca do discipulado fiel.
Jesus não promete estabilidade institucional, ascensão social ou hegemonia cultural. Pelo contrário: “Sereis odiados de todos por causa do meu nome” (Mt 10,22). E Paulo reafirma com clareza: “Todos os que quiserem viver piedosamente em Cristo Jesus serão perseguidos.” (2Tm 3,12). A opção pelo Evangelho é opção pela contramão, pelo confronto com os poderes que, ontem e hoje, se sustentam sobre a injustiça.
Historicamente, os mártires não foram mortos por defenderem doutrinas, mas por denunciarem estruturas opressoras. Jesus foi crucificado por dizer que o Templo havia se tornado um “covil de ladrões” (Mt 21,13), por curar em dia de sábado (Mc 3,1-6), por afirmar que “os publicanos e as prostitutas vos precedem no Reino de Deus” (Mt 21,31). Não morreu por ser “religioso”, mas por ser profundamente humano — e, por isso mesmo, profundamente divino.
A Igreja dos mártires sempre foi uma Igreja pobre, peregrina e profética. Dom Helder Câmara perguntava: “Quando dou comida aos pobres, me chamam de santo. Quando pergunto por que eles são pobres, me chamam de comunista.” A perseguição nasce da denúncia. E como denunciamos, hoje, um sistema global onde 1% da população concentra quase metade da riqueza do planeta?
A antropologia social ensina que todo grupo tende a rejeitar o que não compreende ou ameaça sua coesão. O discípulo de Jesus é, por definição, um “estrangeiro e peregrino” (Hb 11,13). Ele não se molda ao esquema deste mundo (cf. Rm 12,2). Ele não consome o que todos consomem, não odeia os inimigos, não busca o primeiro lugar. Isso o torna estranho. Ser cristão é, hoje, ser exilado cultural. A cultura do capital, do descarte e da meritocracia não compreende o louvor da partilha, da mansidão e da gratuidade.
A cruz de Cristo não é instrumento de opressão, mas de libertação. No entanto, o cristianismo muitas vezes foi cooptado por interesses de classe, nacionalismo e poder. O Papa Francisco denuncia o clericalismo como uma das maiores pragas eclesiais: “O clericalismo esquece que a visibilidade e a sacramentalidade da Igreja pertencem a todo o povo de Deus e não apenas a uns poucos eleitos.” (EG 102). Clericalismo é idolatria do cargo, é o anti-Evangelho disfarçado de piedade. Quando ministros ordenados se tornam corretores da fé a serviço de elites, eles traem o Cristo pobre e perseguido. Quando o altar se transforma em palanque ideológico e os sacramentos em instrumentos de controle, perdemos o Espírito. Onde há aliança entre púlpito e autoritarismo, há apostasia.
Essa é a denúncia profética que o Magistério latino-americano fez desde Medellín: “A Igreja deve denunciar, a partir da fé e do Evangelho, tudo aquilo que destrói o ser humano e ameaça sua dignidade.” (Medellín, Justiça, n. 3). Puebla foi ainda mais incisiva ao afirmar que há “estruturas de pecado que geram miséria, exclusão e morte” (Puebla, 28). A Igreja que caminha com os pobres será sempre incômoda para os que lucram com a injustiça.
A extrema-direita radical, com sua retórica de ódio, armamentismo, xenofobia e racismo, representa uma grave distorção do cristianismo. Usar o nome de Jesus para justificar políticas excludentes é profanação. A mesma cruz que hoje aparece em comícios e slogans políticos foi a cruz usada pelo Império para eliminar um subversivo galileu que lavava os pés dos pobres e acolhia pecadoras. “Ai dos que chamam ao mal bem e ao bem mal!” (Is 5,20).
Jesus se colocou sempre ao lado dos descartados. Tocou leprosos, defendeu adúlteras, acolheu estrangeiros. O Reino que Ele anunciou é incompatível com o neoliberalismo que transforma tudo em mercadoria. “Não podeis servir a Deus e ao Dinheiro” (Mt 6,24) é uma sentença. Não há conciliação possível entre o Evangelho e um sistema que tolera a fome de muitos para sustentar o excesso de poucos.
A Conferência de Aparecida denuncia: “A idolatria do mercado e do dinheiro nega a dignidade da pessoa humana” (DAp 395). O Papa Francisco, no mesmo espírito, afirma com veemência: “Essa economia mata” (EG 53). Quem ousa denunciar isso será perseguido. Mas o silêncio diante dessas estruturas é cumplicidade.
A perseguição não é sinal de derrota, mas de autenticidade. Como nos lembra Paulo: “Somos entregues à morte por causa de Jesus, para que também a vida de Jesus se manifeste em nossa carne mortal.” (2Cor 4,11). Não estamos sós. O Espírito anima a resistência. A memória dos mártires nos guia: Dom Oscar Romero, profeta da América Latina, assassinado enquanto celebrava a Eucaristia; Martin Luther King, morto por sonhar com justiça racial; Irmã Dorothy Stang, tombada por defender a floresta e os pobres do Pará
“Felizes os perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus.” (Mt 5,10). Ser odiado pelo mundo, quando se vive o Evangelho, não é maldição. É sinal de bem-aventurança.
DNonato – Graduado em História, teólogo do cotidiano, indigente do sagrado.
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