Complementando essa narrativa, os Evangelhos de Marcos 6,7-13 — proclamado na quinta-feira da 4ª semana do Tempo Comum — e de Mateus 10,5-15 — lido na quinta-feira da 14ª semana do Tempo Comum — apresentam o envio missionário sob perspectivas ligeiramente diferentes. Marcos ressalta a itinerância e a fragilidade dos discípulos, enquanto Mateus enfatiza a autoridade que recebem de Cristo para curar e proclamar a chegada do Reino.
Dessa forma, a liturgia distribui esses textos ao longo do ano, oferecendo um olhar complementar sobre a mesma realidade: a missão é contínua, comunitária, despojada e fundamentada na confiança plena em Deus. Ela desafia a lógica do poder, da riqueza e do individualismo, convocando todos os cristãos a viverem o Evangelho de maneira concreta no cotidiano.
Lucas nos diz que Jesus lhes deu “poder e autoridade sobre todos os demônios e para curar doenças” (Lc 9,1). Esse poder não é militar, não é político, não é domínio; é o mesmo Espírito que já havia ungido Jesus em Nazaré (Lc 4,18-19), para libertar os cativos, abrir os olhos dos cegos e proclamar o ano da graça. É uma autoridade paradoxal: não oprime, mas liberta; não humilha, mas levanta; não acumula, mas reparte. É o oposto da lógica de Herodes, que aparece logo depois no Evangelho, curioso por Jesus mas preso ao próprio poder (Lc 9,7-9).
O envio se dá em duplas, como lembra Marcos (6,7), sinal de que ninguém caminha sozinho. A Escritura já ensinava: “Melhor serem dois do que um só, pois se caírem, um levanta o outro” (Ecl 4,9-10). A verdade precisa de duas testemunhas (Dt 19,15). O próprio Jesus prometerá: “Onde dois ou três estiverem reunidos em meu nome, eu estarei no meio deles” (Mt 18,20). A missão é sempre comunitária, nunca individualismo espiritual. Quem caminha sozinho corre o risco de transformar o Evangelho em projeto pessoal, e não em anúncio do Reino.
Mas a ordem mais desconcertante é esta: “Não leveis nada para o caminho: nem cajado, nem sacola, nem pão, nem dinheiro, nem duas túnicas” (Lc 9,3). Essa palavra faz tremer. Como viver sem garantias? Como caminhar sem reservas? O eco é imediato: o povo no deserto, sustentado pelo maná (Ex 16) e pela água que brotava da rocha (Ex 17). Ali, Israel aprendeu que “nem só de pão vive o homem, mas de toda Palavra que sai da boca de Deus” (Dt 8,3). Os discípulos são chamados a viver da mesma confiança radical. O cajado, símbolo de segurança e defesa, é dispensado. O dinheiro, que dá status e poder, é proibido. A túnica extra, símbolo de reserva e acúmulo, é rejeitada. A missão se faz na pobreza evangélica, que não é miséria, mas liberdade diante das posses.
Aqui se revela a lógica do Reino: a força nasce da fragilidade. Paulo testemunhará: “Quando sou fraco, então é que sou forte” (2Cor 12,10). Pedro dirá ao paralítico na porta do Templo: “Não tenho ouro nem prata, mas o que tenho eu te dou: em nome de Jesus Cristo, levanta-te e anda” (At 3,6). Não é a riqueza que cura, mas a Palavra viva que liberta. A teologia da prosperidade, que faz da fé uma promessa de dinheiro e bens, trai essa essência. Jesus não pediu acúmulo, mas esvaziamento. Não prometeu status, mas serviço. Não ofereceu riqueza, mas o Reino que é justiça, paz e alegria no Espírito Santo (Rm 14,17).
A hospitalidade é parte essencial dessa missão: “Em qualquer casa em que entrardes, ficai nela até partirdes dali” (Lc 9,4). Isso impede que os discípulos busquem conforto ou vantagens, e os ensina a receber com gratidão. A hospitalidade é virtude central na Escritura: Abraão acolheu os três visitantes junto ao carvalho de Mambré (Gn 18,1-8), a viúva de Sarepta partilhou o pouco que tinha com Elias (1Rs 17,8-16), a sunamita ofereceu um quarto para Eliseu (2Rs 4,8-10). No Novo Testamento, Jesus será o hóspede de Zaqueu (Lc 19,1-10) e dos discípulos de Emaús (Lc 24,29-31). A missão depende dessa rede de acolhida, que não é estratégia logística, mas sinal de comunhão.
E se não houver acolhida?
“Sacudi a poeira dos pés em testemunho contra eles” (Lc 9,5). Esse gesto é profético: não é vingança, mas sinal de que a Palavra foi anunciada e rejeitada. Lembra Ezequiel, o sentinela: se não advertir o ímpio, sua morte será cobrada de ti; mas se advertires e ele não se converter, tu te salvarás (Ez 3,18-19). A missão é anúncio fiel, não manipulação. É semear, não controlar a colheita. É testemunhar, não impor.
Do ponto de vista antropológico, o envio sem recursos coloca os discípulos na condição dos pobres itinerantes, daqueles que dependem da solidariedade alheia. Isso desmonta o orgulho humano e ensina que a vida se tece de reciprocidade. Marcel Mauss mostrou que o dom cria laços. A missão, ao depender da hospitalidade, funda vínculos de gratuidade, não relações de mercado. Por isso a mercantilização da fé, tão presente hoje em shows religiosos, templos transformados em empresas e bênçãos vendidas como produtos, é uma negação radical do Evangelho.
O envio é um aprendizado de confiança. Quem sai sem reservas precisa lidar com a ansiedade, com o medo, com a insegurança. É um exercício de fé que transforma. A autossuficiência é desmascarada, e a fragilidade se converte em espaço de encontro com Deus. É no limite que se descobre a graça. É na falta que se aprende a partilhar. É na vulnerabilidade que se reconhece o outro como necessário.
A missão itinerante rompe com a religião do templo e do poder clerical. Não há altar fixo, não há estrutura centralizadora, mas um povo que caminha e anuncia. É a Igreja em saída de que fala o Papa Francisco: não fechada em si mesma, mas aberta às periferias, ferida pelo encontro com o povo, livre da tentação do clericalismo (Evangelii Gaudium, 20; 102). O clericalismo, que transforma pastores em príncipes e comunidades em palcos de poder, é contradito por esse Evangelho que manda sair desarmado, pobre e dependente.
Os Padres da Igreja compreenderam bem. Agostinho advertia: “Não façais do Evangelho um comércio” (Sermo 100). Crisóstomo dizia: “A Igreja não precisa de ouro, mas de almas” (Homilia sobre Mateus). Gregório Magno, em sua Regra Pastoral, recordava que o pastor deve carregar os fracos com paciência. Orígenes, lendo os Evangelhos, dizia que “o discípulo que leva ouro, leva o peso do mundo; mas o que vai vazio, vai cheio de Cristo”. A tradição patrística ecoa o que Jesus disse: de graça recebestes, de graça dai (Mt 10,8).
O Magistério da Igreja não cessou de recordar isso. O Concílio Vaticano II afirmou que a Igreja é missionária por sua própria natureza (Ad Gentes, 2). A Gaudium et Spes (63-66) denunciou os ídolos do consumismo que escravizam o homem. A Evangelii Gaudium (198) insistiu que a Igreja deve ser pobre e para os pobres. A Fratelli Tutti (215) nos convidou a reconhecer que a vida se constrói em encontros e hospitalidade. Tudo converge: o envio dos Doze é paradigma para a Igreja de todos os tempos.
E hoje? Hoje, quando vemos a extrema direita sequestrar símbolos da fé para legitimar ódio e exclusão, o Evangelho nos chama a expulsar os demônios da violência e a curar as feridas do povo. Hoje, quando vemos pregadores digitais vendendo milagres em troca de curtidas, a Palavra nos recorda que a missão não é espetáculo, mas gratuidade. Hoje, quando vemos padres e pastores acumulando riquezas e poder, somos chamados a redescobrir a simplicidade da túnica única e da mesa partilhada.
O que aprendemos com Lucas 9,1-6 é simples e radical: a missão é dom e tarefa, não contrato nem carreira; é serviço, não palco; é confiança, não estratégia; é pobreza, não prosperidade; é encontro, não clericalismo. Ser missionário é estar leve na estrada, com a poeira nos pés, o pão partilhado na mesa, o coração aberto ao outro e a confiança plena em Deus.
Você seria capaz de responder essas 4 perguntas
- Que pesos precisa deixar para caminhar mais livre?
- Que hospitalidades precisa acolher ou oferecer?
- Que demônios precisa ajudar a expulsar?
- Que feridas precisa curar com a força do Evangelho?
A missão não é só dos Doze, mas de cada batizado. Jesus hoje ainda convoca, dá poder e envia. E, como no princípio, não pede que levemos muito; pede apenas que levemos o essencial: Ele mesmo, vivo em nós.
✍️ DNonato – Teólogo do Cotidiano
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