segunda-feira, 22 de setembro de 2025

Um breve olhar sobre Lucas 8,19-21

Lucas nos apresenta, em 8,19-21, uma das passagens mais desafiadoras e transformadoras da pregação de Jesus. O cenário é simples: sua mãe e seus irmãos estão do lado de fora querendo vê-lo, mas não conseguem se aproximar por causa da multidão. Avisado disso, Jesus responde: “Minha mãe e meus irmãos são aqueles que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática”.

Este trecho é proclamado na liturgia, particularmente na terça-feira da 25ª semana do Tempo Comum, e também aparece em celebrações marianas, quando a Igreja reconhece que Maria foi discípula antes de ser mãe, porque acreditou na Palavra e a guardou no coração (cf. Lc 1,38; 2,19). Não há, portanto, desmerecimento de Maria, mas exaltação de sua fé, que a torna paradigma do discipulado.

Para compreender a radicalidade dessa afirmação, precisamos recuperar o pano de fundo linguístico e cultural. O termo “irmãos” na Bíblia não se restringe à ideia moderna de filhos dos mesmos pais. Em hebraico, ’āḥ designa irmãos, primos, sobrinhos, membros do mesmo clã; em grego, adelphós tem uso igualmente amplo. O Antigo Testamento oferece exemplos claros: Abraão chama Ló, seu sobrinho, de “irmão” (Gn 13,8); Jacó é chamado de “irmão” por Labão, seu tio (Gn 29,15); Moisés manda que os primos levem os corpos de Nadab e Abiú, chamando-os de “irmãos” (Lv 10,4); em 2Rs 10,13-14, os parentes de Acazias são chamados de “irmãos”. Assim, quando os evangelhos falam dos “irmãos de Jesus”, não se referem a outros filhos de Maria, mas a parentes próximos, parte de seu clã. Com esse pano de fundo, o ensinamento de Jesus ganha força: os laços de sangue, embora importantes, não são o critério último da pertença ao Reino. Mateus 12,46-50 e Marcos 3,31-35 relatam a mesma cena. João, por sua vez, amplia o horizonte quando, na cruz, Jesus entrega Maria ao discípulo amado: “Eis a tua mãe” (Jo 19,26-27). Ali, nasce uma nova família espiritual, unida não pela carne, mas pela fé.

Essa redefinição da família tem implicações profundas. Na sociedade semita, a família patriarcal era a base da ordem social e religiosa. Honrar pai e mãe era um mandamento estruturante (Ex 20,12). Jesus não o abole, mas o radicaliza: a honra filial não se reduz ao sangue, mas se cumpre no discipulado. Maria, “feliz porque acreditou” (Lc 1,45), é a primeira a viver isso. Exegese e hermenêutica nos ajudam a perceber que esse episódio não é um desprezo pela família biológica, mas uma transfiguração. A nova família de Jesus nasce da escuta e da prática da Palavra. Paulo retomará essa ideia em Gálatas 3,28: “Já não há judeu nem grego, escravo nem livre, homem nem mulher: todos vós sois um só em Cristo Jesus”. O universalismo da fé rompe barreiras de sangue, etnia e status.

A patrística confirma essa leitura. Santo Agostinho dizia: “Maria é mais feliz por ter sido discípula de Cristo do que por ter sido sua mãe” (Sermão 25,7). São João Crisóstomo observa que Jesus não rejeita Maria, mas mostra que sua maternidade verdadeira é a da fé. Santo Irineu, ao falar de Maria como “nova Eva”, afirma que ela gera vida não apenas pela carne, mas pela obediência da fé.

O Magistério da Igreja segue essa linha. O Concílio Vaticano II, em Lumen Gentium 58, recorda que Maria avançou na peregrinação da fé, unida a seu Filho até a cruz. João Paulo II, na Redemptoris Mater (n. 20), descreve sua maternidade espiritual como modelo para a Igreja. A Gaudium et Spes 24 lembra que “o ser humano só se realiza no dom sincero de si mesmo”, princípio que fundamenta a verdadeira família espiritual. A Evangelii Gaudium (n. 113) insiste que todos somos chamados a ser discípulos missionários, e a Fratelli Tutti (n. 95) denuncia os muros que excluem, em contraste com a fraternidade universal proposta pelo Evangelho.

Aplicando à nossa realidade, esse texto de Lucas é uma denúncia contra as falsas concepções de família e fé que circulam hoje. A teologia da prosperidade transforma a fé em mercado, reduzindo a família espiritual a sócios de um empreendimento religioso. A teologia do domínio instrumentaliza a Palavra para justificar poder político e patriarcal, em contradição com a lógica de Jesus. O individualismo moderno cria muros de isolamento sob o lema “minha família primeiro”, negando a fraternidade universal. O clericalismo, denunciado tantas vezes pelo Papa Francisco, também fere a família espiritual: coloca ministros como donos da Igreja, e não como irmãos a serviço.

Do ponto de vista psicológico, a mensagem de Jesus liberta de um fechamento neurótico em vínculos de sangue que podem se tornar tóxicos e aprisionadores. Do ponto de vista sociológico, rompe com estruturas patriarcais excludentes e abre para uma comunidade inclusiva. Filosoficamente, desafia o individualismo possessivo, apontando para uma ontologia relacional: o ser humano só existe no encontro, no laço, no dom. Antropologicamente, mostra que a identidade não se constrói apenas por herança biológica, mas por uma pertença simbólica, espiritual e comunitária.

Essa palavra é também profética diante do uso político de Maria por setores ultraconservadores e de extrema-direita, que a reduzem a bandeira de guerras culturais. Maria não é instrumento de manipulação ideológica, mas ícone da fé que se abre ao novo de Deus, mãe de uma família sem fronteiras.

No horizonte escatológico, a redefinição de família encontra sua plenitude. O Apocalipse 21,3 anuncia: “Eis a tenda de Deus com os homens: Ele habitará com eles, eles serão o seu povo, e Ele será o seu Deus”. A família espiritual se consuma na comunhão definitiva, quando toda lágrima será enxugada e a fraternidade será plena.

Assim, o texto de Lucas 8,19-21 não relativiza a família biológica, mas aponta para além dela. Chama-nos a viver como irmãos e irmãs em Cristo, construindo uma comunidade onde a Palavra é ouvida e praticada. E nos questiona: estamos vivendo a fé como parentesco espiritual, ou reduzindo-a a consumo religioso e identidade cultural? A resposta de Jesus continua ecoando hoje: sua família são aqueles que escutam a Palavra e a põem em prática. Essa é a verdadeira revolução evangélica, que desconstrói exclusivismos e inaugura uma nova humanidade.

DNonato - Teólogo do Cotidiano 

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