No contexto histórico, crianças eram quase invisíveis. Não contavam para herança ou estatísticas políticas, não participavam de assembleias ou debates, e sua opinião não tinha peso. Para os líderes da época, deter-se diante de uma criança era perda de tempo. Ainda assim, Jesus rompe essa lógica, acolhendo, abençoando e afirmando que o Reino dos Céus é delas. Na perspectiva paulina, “Deus escolheu o que é fraco no mundo para confundir os fortes” (1Cor 1,27). O gesto de Jesus mostra que o Reino não se mede pelo poder ou status, mas pela abertura, confiança e vulnerabilidade.
A Bíblia apresenta exemplos de crianças desempenhando papéis decisivos na história da salvação. Samuel, ainda menino, servia no Templo e ouvia a voz de Deus (1Sm 3,1-10). Jeremias foi chamado na juventude (Jr 1,6-7), e o próprio Jesus, aos doze anos, dialogava com os doutores no Templo (Lc 2,46-47). Até mesmo no culto comunitário, como em Neemias 8,2-3, crianças participavam da escuta da Lei. O Salmo 8,2 reconhece: “Da boca de crianças e de pequeninos suscitaste louvor para confundir os inimigos”. Isaías proclama que “uma criança os guiará” (Is 11,6), revelando que a infância contém uma força profética e subversiva. Jesus retoma esses ecos ao declarar que delas é o Reino e ao acolher a infância como lugar de revelação e participação plena na vida de fé.
Todavia, a sociedade contemporânea distorce o tempo da infância. A adultização precoce ocorre em múltiplos níveis: redes sociais, publicidade, moda e, infelizmente, religião. Um exemplo recente que chamou atenção foi o caso do “pastor mirim”, um menino treinado por adultos para pregar, realizar gestos de “unção” e até simular glossolalia. Para muitos, parecia “fofo” ou uma prova de espiritualidade; para quem observa com discernimento, é a instrumentalização da infância, transformando crianças em objetos de espetáculo religioso, marketing ministerial e até fonte de lucro. O que deveria ser tempo de brincar, aprender e formar vínculos seguros, torna-se palco de performance. A psicologia alerta para os riscos: confusão de identidade, pressão emocional e espiritualização precoce. A sociologia evidencia que a mercantilização da infância é sintoma de uma cultura de espetáculo, marcada por teologias que medem sucesso pelo retorno material ou status. Paulo adverte contra isso quando fala em 2Coríntios 4,2: “Rejeitamos o que se faz às escondidas, não adulteramos a palavra de Deus”. Efésios 6,4 instrui: “Pais, não provoqueis à ira vossos filhos, mas criai-os na disciplina e instrução do Senhor.” Jesus, ao contrário, impõe as mãos às crianças por amor e não por utilidade, lembrando que o Reino não é comercial, não se compra nem se vende.
O gesto de Jesus se opõe radicalmente a essa lógica. Ele não exige performance nem reproduzir discursos adultos; acolhe e abençoa simplesmente por amor e reconhecimento da dignidade. É um chamado à gratuidade, à confiança e à presença plena. O clericalismo também é denunciado nesta passagem: os discípulos que tentam impedir a aproximação das crianças refletem a mentalidade de controle, de monopólio da mediação divina, que transforma o acesso a Cristo em privilégio de poucos. Como lembra o Papa Francisco na Evangelii Gaudium (n. 47), “a Igreja não é uma alfândega; é a casa paterna onde há lugar para cada um com a sua vida fatigada”. Santo Agostinho observa que a humildade e dependência das crianças são o caminho para entrar no Reino (Sermão 353). São João Crisóstomo adverte que forçar crianças a desempenhar funções que não lhes cabem é roubar-lhes a verdade e plantar hipocrisia. Tertuliano e São Basílio enfatizam que a infância é espaço de graça e aprendizagem espiritual, que deve ser protegido e respeitado.
As Escrituras sublinham a importância da escuta e da abertura infantil: a criança no Templo ouve, reconhece e responde; ela não é apenas futuro, mas presente de Deus no mundo. Jesus afirma que quem não recebe o Reino como uma criança não entrará nele (Mc 10,15; Lc 18,17). Isso desmonta a lógica das teologias distorcidas: a prosperidade, que mede a fé pelo retorno material; o domínio, que impõe poder; o individualismo religioso, que fecha a pessoa em si mesma; e a fé como mercadoria, que transforma o Evangelho em produto ou espetáculo. A criança, frágil e dependente, revela o que é essencial: confiança, receptividade e gratuidade.
O Concílio Vaticano II (Gaudium et Spes, n. 27) recorda que toda violação à dignidade humana, especialmente das crianças, é atentado ao Evangelho. A Fratelli Tutti (n. 115-118) denuncia a cultura do descarte, lembrando que o tratamento dado aos mais frágeis indica a maturidade moral da sociedade. Amoris Laetitia (n. 285-287) reforça a importância de proteger a infância e promover ambientes familiares e comunitários seguros, onde a fé possa ser descoberta gradualmente, sem imposições nem pressões indevidas.
Historicamente, nos primeiros séculos, famílias levavam crianças aos sacramentos e à liturgia para receber bênçãos, não para reproduzir rituais adultos, mas para crescerem na experiência de Deus. Hoje, é preciso restaurar essa sabedoria. As crianças não devem ser mini-pastores, mini-pregadores ou mini-expositores de fé; devem ser acolhidas, ensinadas a ouvir, brincar, confiar e louvar. O Evangelho é lembrança profética de que o Reino começa pelos que o mundo considera pequenos. É desafio a todas as estruturas sociais e eclesiais que manipulam, instrumentalizam ou adultizam crianças.
Mateus 19,13-15 nos chama à conversão do olhar e da ação: permitir que as crianças venham a Jesus, sem filtros, sem pressões, sem projeções e sem transformá-las em mercadoria ou fonte de lucro. É um convite a reconhecer que nelas habita a presença viva do Reino, que nos ensina, corrige e desafia. É um apelo a abandonar práticas de espetáculo, controle e mercantilização da fé. É, finalmente, a lembrança de que a grandeza do Reino se mede pela forma como acolhemos e abençoamos os pequenos, hoje e sempre, permitindo-lhes viver a infância como tempo sagrado, pleno e gratuito, sob o olhar amoroso de Deus.
DNonato - Teólogo do Cotidiano

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